Acidente

Lembro de ver o sinal vermelho por milésimos de segundo… a visão embaçada de um carro… Escuro… Dor.

O impacto das costas no asfalto me tira o ar. Tusso muito para puxá-lo e recupero uma respiração sôfrega de engasgada.

Passos. Gritos.

Um gelo imenso cresce na boca do estômago e um gosto de sangue me vêm à boca.

“Água. Preciso de água”, ouço minha voz dizer.

“Alguém busca água pra ela”, um homem grita.

“De jeito nenhum”, proíbe uma voz de mulher. “Está tudo bem”, agora pra mim. “Sou enfermeira. Não se mexa”.

Chega outra – também enfermeira. As duas se ajudam na retirada de meu capacete sem perigo. Improvisam-me algum tecido de travesseiro.

Choro. Odeio-me. “Por que fui deixar o carro na garagem para dar carga na bateria arriada da moto?

Pedem o número de meu marido. Ouço a enfermeira Patrícia ligar. Entendo que ele duvida – despachou-me de carro de Jaú – e mando explicar a “péssima decisão”.

Soluço de medo. Não por mim. Não tenho dores… ainda. Adivinho o desespero de meus pais, do Márcio…

“Meu Deus, o que eu fui fazer?! ”, choramingo alto sem noção de vergonha.

As lágrimas lavam a visão do céu emoldurado de galhos e folhas de árvore. Não me deixam olhar dos lados, mas ouço o burburinho de gente rodeando.

Um policial me pergunta o que ocorreu. Confesso.

Choro. Odeio-me. Tenho medo.

O policial se apieda de minha preocupação com o Márcio na estrada.

“Qual o número de seu marido? Pode deixar que eu acalmo ele”, oferece-se numa voz compassiva, que admiro agradecida.

Colocam meu celular ao ouvido. Minha irmã mais velha questiona, irada, a “péssima escolha”. “Eu sei, eu sei…”, soluço humilhada.

Choro. Tenho medo.

O celular de novo. Virginiana (como eu), a outra irmã pede calma com voz de mãe (que é). Avisa que já escalou quem busque a moto. “Tudo vai ficar bem”, ordena com autoridade que é dela.

Choro.

Não me lembro de quanto me perguntaram ou respondi nos 40 minutos que o socorro demorou pra chegar. Confusa, autorizei me levarem para a UPA.

Enquanto me instalam na maca ouço o cumprimento de Edilson – o cunhado de minha irmã – que chegou para resgatar a moto.

Ao me levantarem do chão, ouço meu próprio urro de dor como se de dentro de um túnel.

Na ambulância, maldigo cada buraco do asfalto.

Já não penso em nada mais além da dor.

Na chegada à UPA a visão querida do cunhado Batista. Compartilho a preocupação com os pais e ele me acalma.

Na sala de acidentados, respondo perguntas idênticas a diferentes pessoas de branco. Suporto injeções e manipulações na sala de raios X.

Uma hora de espera e descubro que vão me transferir de novo, desta vez para o hospital de meu convênio.

Na saída para a nova ambulância, minha irmã Liz me dá a mão. Estendo-lhe meu celular e solto um urro de dor no estender do braço.

Reconheço a anjinha Vivi – secretária na redação onde trabalho – ordenando providências.

No trajeto, novos e numerosos solavancos de buracos no asfalto.

“Que dor, meu Deus!”.

Choro. Odeio a cidade esburacada.

Chego ao Hospital São Francisco. Liz já me espera na Emergência – calma, confiante, mãe.

Novas perguntas respondidas a pessoas de branco. Novas manipulações. As dores nos membros são indescritíveis.

Chegam os anjos Vivi e Elielton, do RH da empresa. Vão-se pelo mesmo lado em que, instantes mais tarde, sorvo a visão de Márcio chegando calmo, carinhoso, acolhedor, envolvendo-me numa nuvem de prazer e alívio.

Choro. Sinto dores. Ele me mima. Mas precisa sair para tomar providências burocráticas.

Começo a sentir dores no estômago vazio – almoçaria no refeitório da empresa. Em seguida, uma ducha invisível de gelo me escaneia dos pés à cabeça e minha visão falha.

“Vou desmaiar”, aviso alto, enquanto sinto meu corpo perder-se numa tremedeira involuntária. Uma náusea violenta sacode meu peito em esgares de vômito. Parece que vomitarei para sempre.

Enfermeiros se arvoram. A médica corre pra mim gritando ordens. Pessoas de branco me cercam. Uma agulha injeta na veia do meu braço esquerdo uma solução qualquer que faz todo o processo parar instantaneamente.

A médica decide minha transferência para a sala de observação, para onde meus parentes não podem me acompanhar.

Ali me aguardam solitárias horas de espera, entrecortadas por dolorosas escalas em salas de raios X e ressonância.

Passo o tempo em rezas, pedindo por meus pais, por Márcio, por mim. Barganho com Deus. Prometo que, saindo dessa sem sequelas permanentes, aguento tudo o que vier.

Tenho o segundo daqueles ataques de vômito e ondas de gelo, novamente interrompido com a tal solução na veia. Desta vez a tremedeira não passa.

“É a dor”, comenta um enfermeiro com o outro, como se eu não estivesse ali.

Márcio consegue autorização para me ver. Finge não se impressionar com a tremedeira e me diz carinhos ao ouvido. Sai.

Quando o ortopedista finalmente chega para me ver já estou há oito horas sofrendo com fome e dores, sem direito a anestesia – compromete a avaliação, explicaram.

Mais manipulações. Dores insuportáveis e a terceira daquela crise de gelo-vômito-tremedeira.

Decide-se por cirurgia naquela noite mesmo e sigo para a preparação.

Na mesa de operações, quase choro de gratidão ao sentir o sedativo avançando por minhas veias para trazer o sono sem sonhos, que rouba a passagem do tempo.

Quando acordo na sala de recuperação, o rosto de Márcio – que desafiou proibições para estar ali – é o primeiro que vejo.

Já não sinto medo.