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‘O Primeiro Homem’: cara a cara com a Lua

por Elcio Thenorio

 Quiçá não, mas tudo indica que um dia teremos de extrapolar, exorbitar, sair da Terra para povoar outros mundos. Essa é uma ideia recorrente do imaginário da humanidade que perpassa autores de escolas tão distintas quanto as de Julio Verne e Isaac Asimov. E não sem razão: enquanto a população mundial cresce a assustadores 0,33% ao ano, projetando uma população de 9 bilhões de almas para 2050, a área do planeta segue imutável em seus escassos 510 milhões de quilômetros quadrados, aí inclusas as águas e as terras inabitáveis.

Nosso berço no cosmo é limitado e já dá claros sinais de que desse limite nos aproximamos a uma velocidade perigosa. Porém, as ameaças à permanência humana na Terra não vêm apenas da superpopulação, mas também da ignorância do homem, perfeitamente retratada na recente retirada de seus países do acordo de não-proliferação nuclear pelos presidentes dos Estados Unidos e da Rússia, duas potências armadas até os dentes. Talvez, quem sabe, nós mesmos diligentemente cuidemos de destruir nossa nave-mãe.

Diante desse quadro funesto, ou talvez movido apenas por sua ancestral e inescapável compulsão pela aventura – ou ambos – o ser humano trata de preparar suas opções de partida. Missão intrincada, que exige a exploração das fronteiras da tecnologia e do mais criativo engenho humano. Lançar-se no vácuo, cobrir distâncias astronômicas, singrar as solitárias vastidões desconhecidas do espaço é um dos maiores desafios já enfrentados pela espécie humana, que até aqui tem se saído relativamente bem. Mas a duras penas.

Para que chegássemos só até ali vidas se perderam, anos de empenho viraram pó em tentativas frustradas, somas incontáveis de dinheiro foram gastas para que discretos avanços fossem feitos. Da reunião desses esforços obtivemos até agora alguns resultados, dos quais dois se destacam: uma sonda não tripulada, a Voyager 1, ultrapassou os limites do Sistema Solar e hoje, a 17 bilhões de quilômetros do Sol, é o objeto mais distante já feito pelo homem. E seis missões Apollo, tripuladas, pousaram sobre a Lua.

“O Primeiro Homem” é a história da primeira delas que deu certo.

O filme acerta em mesclar as dificuldades técnicas enfrentadas por engenheiros e astronautas da NASA, a agência espacial norteamericana, com o drama pessoal vivido pelo comandante da Apollo 11, o primeiro homem a pisar na Lua, Neil Alden Armstrong. Escolhido dentre outros pilotos navais por sua calma diante de situações adversas, Armstrong lidava com a perda de uma filha enquanto seu nome era cogitado para ocupar o assento principal. E tudo se dava em meio a um frenesi, causado pela corrida espacial na qual levava vantagem a arquiinimiga União Soviética, que houvera sido a primeira a colocar em órbita tanto um artefato, o satélite Sputnik 1 (outubro de 1957), quanto o primeiro ser vivo, a cadela Laika, a bordo do Sputnik 2 (novembro de 1957) – e ainda o primeiro homem, Yuri Gagárin, a bordo da nave Vostok 1 (abril de 1961). (“A Terra é azul” disse ele).

Estamos em 1969 e, oito anos antes, o então presidente John Fitzgerald Kennedy proferira seu profético discurso “Vamos à Lua”, no qual praticamente prometera que os Estados Unidos realizariam tal proeza “nesta década”. Realizá-la antes dos anos 70 era, portanto, uma questão de honra nacional para os americanos. Mas a corrida contra o relógio cobrava seu preço: em janeiro de 1967, durante os testes do Programa Apollo, três astronautas morreram carbonizados com o foguete ainda no solo, quando um incêndio destruiu a cabine de comando.

Em meio à comoção causada por essa perda, Armstrong, obrigado pela mulher, tem de enfrentar a dura realidade de contar aos filhos que papai pode nunca mais voltar. É um momento pungente que faz refletir sobre a divisão psicológica pela qual devia estar passando aquele pai-herói. Mas este era um homem obstinado, que não recuaria diante do medo, da dor ou da perda. E eis que já é hora do embarque! Todos a bordo, desresce a contagem regressiva, ativam-se os gigantescos motores do Saturno V, foguete que leva na ponta o módulo Apollo, e cheia de combustível e esperança a imensa nave se eleva no ar…

Três dias de viagem claustrofóbica e tem início o processo de alunissagem: enquanto o módulo de comando circunda o satélite natural da Terra, o módulo lunar, chamado Eagle, desprende-se e desce à superfície. E então o primeiro drama: com apenas 2% de combustível restante, Armstrong ainda não encontra um terreno propício ao pouso, que só se dá nos derradeiros segundos antes da tragédia. “Houston, o Eagle pousou!”, diz. Abre-se a escotilha e estamos cara a cara com a Lua! É quando o comandante desce pela escada e, ao pisar no poeirento solo lunar, profere a frase histórica: “Um pequeno passo para o homem, um gigantesco salto para a humanidade”.

Pequeno passo… gigantesco salto… Tudo muito relativo quando se trata de viagens espaciais. Este feito fantástico cobriu a ínfima distância de um segundo-luz. Quase nada quando se sabe que a estrela mais próxima, Alpha Centauri, está a quatro anos-luz, ou trinta e oito trilhões de quilômetros, da Terra. Na velocidade atingida pela Apollo 11, de 8.300km/h a viagem até lá levaria mais de quinhentos e vinte mil anos. Mas, sendo o universo o mistério insondável que é, tudo é possível. Talvez se descubram formas de vencer esta lonjura com as quais hoje nem sonhamos. Afinal, o principal já foi feito: Armstrong deu o primeiro passo.

Elcio Thenorio é jornalista, concurseiro e um amigão

Morre Uma Estrela

por Cleido Vasconcelos

Antes de mais nada, seria de bom tom de minha parte avisar que eu sou super a favor da pirataria. Acredito que é através dela que derrubaremos a hegemonia midiática, tanto baixando músicas e filmes de grátis, quanto produzindo e postando em plataformas digitais, músicas e filmes. Com isso, a industria cultural cairá na real e passará a fornecer conteúdo, se nao de graça (patrocinado), pelo menos por um preço bem acessivel. Preço este que vai fazer com que eu tenha preguiça de baixar filme, procurar legenda, ver se tá sincronizada e resolva assistir por streaming. A conclusão de tudo isso será que as estrelas morrerão enquanto star system tradicional de hollywood. Nada mais de fazer um filme por ano e ficar coçando e gastando os zilhões de dolares que ganhou com ele. Morre uma estrela e nasce uma atriz do proletariado. Aquela com carteira assinada com contrato CLT e longe de sonhar com algum tipo de aposentadoria antes dos 120 anos de botox, preenchimentos e pilates.

Posto tudo isso neste prólogo, seria mais de bom tom ainda dizer, de minha parte, que eu paguei R$18,90 para assistir este filme pelo serviço de streaming do iTunes. Sim, sim, eu sou uma dessas pessoas que baixavam filme enlouquecidamente, mas que parou bastante com isso pq tem mais preguiça de procurar uma legenda que funcione e uma cópia digna de qualidade, do que de pagar o streaming. Se bem que 18, 90 eu acho muuuito caro e, por incrível que pareça, isso pode ter ajudado a influenciar no resultado final do que eu achei sobre este filme.

Já teve quatro versões de Nasce uma Estrela, eu procurei lá no google, eu só vi a da década de 1970 com a Barbra Streisand e essa agora. Confesso, não sou muito fã de musicais. Quando é um musical igual a este em que a pessoa é uma cantora e só canta nas horas que ela está cantando eu ainda dou conta. Mas aqueles em que alguém tá almoçando e diz, Me passa a salada? E o outro responde, A salada? E já sai cantando e sobe em cima da mesa e os garçons dançam sincronizados, eu tenho muuuuuuuuita dificuldade em dar conta. A exceção desta minha regra fica com Sweeney Todd do Tim Burton, Hair do Milos Forman, Moulin Rouge do Braz Luhrman e The Wall do Alan Parker.

“E a Lady Gaga vcs sabem né? Ela é foda! Mais do que isso, ela é fodástica”

Eu me lembro que eu meio que gostei da versão da Barbra de 1976, apesar de estar no apogeu de minha juventude pré-universitária roquenrol alternativo pink floyd psicodelico progressivo futurista e músicas da Barbra Streisand nao ser lá o que uma pessoa como eu era naquela época gostar de ouvir. Então, nunca me empolguei muito com os nascimentos das estrelas no interior das Nebulosas.

Mesmo assim, resolvi assistir esta nova versão por três motivos. Primeiro que falaram muito bem dela. Segundo pq minha filha insistiu muito e passou as férias inteiras querendo que eu assistisse pagando o streaming da apple tv. E finalmente e o mais importante, pq tinha a Lady Gaga. E a Lady Gaga vcs sabem né? Ela é foda! Mais do que isso, ela é fodástica. Admiro a estratégia dela de começar cantando com vestidos feitos de carne fresca e outras exotices e terminar (por enquanto) gravando um disco com o Tony Benett só com standards do cancioneiro norte americano e arrasar e mostrar pra todos a puta voz que ela tem e a cantora que ela é. Então la fui eu ver o filme, com o pequeno agravante de ter pago 18,90 e isso me deixar meio q desconfortável e intolerante para aquilo que eu nao tolero.

Gostei muito do começo do filme, intimista, a maneira com eles se conhecem, a boate e a homenagem ao fiel público drag da lady. Chorei com ela cantando La Vie en Rose, chorei quando ele chama ela ao palco. Mas depois, a fonte secou. Achei o filme beeeeem comprido. E acho q ele tem uma barriga fenomenal no meio que faz vc pensar de tempos em tempos em que hora que o carinha lá vai conversar com o Kurt Cobain. Outra coisa que ajudou bastante e eu ja tinha avisado vcs no inicio deste texto, é que eu não suporto muito estas canções norte-americanas que são feitas pra ganhar o oscar de melhor canção e ganham quando não tem algum desenho da disney no páreo. Eu não gosto do jeito que a Lady Gaga canta no filme, das canções. Aquilo nao me emociona. Gosto mais das músicas do começo que o ensebadinho (alguém podia passar um pó compacto naquele moço roqueiro please?) canta. Não sei, nao sei se foi os 18,90, mas nao shipei o casal. Entendo até que o moço se beber nao case é bonito e precisava dar uma estragadinha no visual dele pra ficar mais outsider roquenroll. Entendo também que é o mesmo filme de sempre de hollywood para ganhar oscar que quando ganha a gente diz, Ah, é filme de oscar, por isso ganhou! Entendo tb que é um filme que arrebatou milhões de gente e de dinheiro e que, por isso, é um excelente produto da industria a que pertence. Mais entendo ainda que é uma história que, a essa altura do campeonato, já é arquetípica e que essa versão nada mais é que the same old story atualizada para as gerações atuais (reparem por exemplo que, agora, o nascimento de uma cantora também envolve coreografia intensa com as bailarinas de palco). O final é bonito pois ele consegue evitar a overdose de melação post mortem que se costuma derramar nos filmes deste estilo de hollywood. O close no rosto dela suave e triste conseguiu recuperar, pra mim, uns quatro pontos na escala Cimino’s Portal do Paraíso de flopagem de películas.

Mesmo assim, não consigo ver um acréscimo que este filme possa ter feito às outras versões da mesma história. Mas aí eu me pergunto, Existe realmente a necessidade, em um filme, de se acrescentar algo na história do cinema? Um filme não pode ser apenas entretenimento? E eu respondo, Sim, um filme pode ser apenas um filme. E digo mais, sempre que eu começo a pensar nisso é pq o filme realmente não me arrebatou. Pois, lembre-se, eu não gosto de musicais, não gosto destas musicas que se cantam em duplas estilo jane e herondy e eu ainda paguei pra ver este aqui. Assisti completamente contaminado pelos meus proprios juízos de gosto e preconceitos. Portanto, pessoas queridas, o problema de eu ter achado tudo meio que meia boca inteira, com certeza, é meu e não do filme.


Cleido Vasconcelos
é artista visual, performer, professor e cinéfilo

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‘Vice’ vale cada indicação

por Thiago Roque     

O diretor Adam McKay colecionou elogios com “A Grande Aposta”, filme que destila sarcasmo e referências pop para explicar como os Estados Unidos quebraram financeiramente em 2008. Entre explicações sobre o quase incompreensível mercado norte-americano e definições econômicas criadas para serem inteligíveis, um elenco pra lá de competente mostrava como o cinismo, a ganância e o imediatismo criaram uma crise sem precedentes na terra do Tio Sam

Bom, “Vice” repete e melhora a fórmula na maneira de apresentar os fatos – agora, sobre a história e as histórias que cercam Dick Cheney, famoso político republicano que foi vice-presidente no governo George W. Bush (2001-2009).

Primeiro, os cortes de cena e as referências explicativas surgem mais equilibrados, com mais timing e menos exagero cinematográfico – tem uma cena com os protagonistas num jogral shakespeariano que é prova viva disso.

Segundo, o elenco à disposição entrega atuações pra lá de convincentes – Christian Bale arrasa em todas as fases de Dick; Amy Adams também faz por merecer cada elogio na pele de Lynne Cheney; e Sam Rockwell entrega um Bush-filho caricato e tão imbecil que é impossível não se divertir.

Christian Bale arrasa em todas as fases de Dick

Não à toa, os três estão indicados ao Oscar – Bale como Melhor Ator, Adams como Melhor Atriz Coadjuvante e Rockwell como Melhor Ator Coadjuvante. O estilo de McKay trouxe as indicações para Melhor Filme, Diretor, Roteiro Original e Edição. De quebra, o longa completa suas oito chances da estatueta dourada com Melhor Maquiagem e Penteado – igualmente merecido, aliás.

Ah, é verdade, quase me esqueci: “Vice” vale cada indicação.
Muito por trazer à tona os mandos e desmandos de um vice-presidente que, nos bastidores, se recusou a ser um mero espectador da política norte-americana. E o fez por causa de sua trajetória: um jovem problemático, beberrão, que estagiou com figuras mais folclóricas do que competentes no Congresso dos Estados Unidos e foi, pela lealdade, se mantendo nas entranhas do poder em busca de uma redenção que nunca mereceu. Deixou como legado um gabinete pautado pela falta de transparência, a atuação pós-ataques do 11/9, a desnecessária Guerra do Iraque e, acredite, a gênese do Estado Islâmico.

Não bastasse todo esse menu político como espinha dorsal, Christian Bale coloca a película em outro patamar cinematográfico falando pouco e sendo muito. Conforme vai perdendo cabelo e ganhando (muito!) peso, distribui um sem-número de poses, sorrisos e trejeitos que parecem ter sido forjados com o personagem – ao ponto de, numa cena, um diálogo de Cheney com a mulher é feito durante a escovação dos dentes! E o único discurso mais longo do personagem é um mea-culpa ao avesso no melhor estilo “House of Cards”, mas já no final da fita.

“não é um filme fácil, de humor sandleriano e que vai entregar
a você uma biografia completa e mastigada do político republicano”

E ao mesmo tempo em que humaniza o político impopular (aqui, entram as cenas com a filha Mary), Bale mostra o motivo de Cheney ser uma pessoa tão criticada e tão pouco querida pela sociedade. E acredite: nada sobrevive à necessidade de ser relevante – nem mesmo o próprio Dick Cheney. Qualquer chance de torcer pelo político é encerrada logo depois de você pensar em simpatizar com ele, fique tranquilo(a).

Mas não se engane: “Vice” não é um filme fácil, de humor sandleriano e que vai entregar a você uma biografia completa e mastigada do político republicano – e isso pode jogar contra o sucesso do longa. Prepare-se para receber recortes da história de Dick Cheney – logo no começo, o diretor avisa que ele o elenco fizeram o melhor possível.

Talvez o suficiente para você clamar pelo “Volta, Temer”.

 

Thiago Roque é jornalista, cinéfilo e dono de um humor “ogro” engraçadíssimo!

‘Green Book’, o filme

por Évanes Pache.    

Fiz questão de ir para o cinema virgem de opiniões, com a mente livre de adjetivos. Escolhi o filme sem ler a sinopse e sem saber exatamente do que se tratava. Nas primeiras cenas pensei: 

“Putz, mais um personagem machista, racista, mal educado com aquele olhar obsoleto que, pra mim, não cabe mais no mundo”.

Foi se descortinando um roteiro clássico de Hollywood e eu já estava quase me arrependendo de estar ali.  

Green Book” conta um pouco sobre a vida do pianista Donald Shirley e mostra, com uma história real que ocorre nos anos 1960, que é possível transformar padrões e formas de atuar no mundo.

Ao longo do filme, e da jornada do herói vivida pelo personagem Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), experimentei momentos de tensão, de compaixão, de empatia, que me levaram à gargalhadas e também, às lágrimas. O diretor e roteirista americano, Peter Farrely, compôs climas emocionais com pontos de virada que me levaram a uma entrega à história.

NO PÁREO: Mahershala Ali e Viggo Mortensen concorrentem, ambos, a prêmios de interpretação no Oscar deste ano

“Green Book” cativa e ativa a memória sobre alguns modos de desumanização ainda atuais. Traz a caricatura das ruas quando propõe um personagem principal que despreza qualquer delicadeza, que conhece apenas o cenário onde as relações são espaços para exercitar um universo interno rude, estúpido e deselegante. 

Falo isso porque acho importante assumir todo o meu preconceito e intolerância sobre os preconceituosos e intolerantes. Me exercito muito para não deixar isso me tomar, mas a verdade é que ainda me toma.

Gosto de pensar que podemos ser tragados pela gentileza com doçura e firmeza ao mesmo tempo. No filme, essa forma pessoal de pensar e desejar a vida se realiza. Tudo de um jeito sutil e envolvente. As emoções do espectador são conduzidas de um jeito fino e doce. 

“Green Book” fala sobre criar vínculos, sobre parceria, de real interesse e sobre se importar de verdade com o outro. Fala de uma amizade que se constrói de forma autêntica e com uma afetividade desinteressada. Isso tudo de maneira delicada e divertida, sem cair em clichês panfletários. 

O filme não tem parafernálias técnicas. O que me encantou foi a maneira gentil de mostrar um recorte dolorido da vida de Donald Shirley e a beleza de ser humano.

 

Évanes Pache é jornalista, especialista em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz e palavreira sensível

Extravagância e sensibilidade

por José Eduardo Gomes de Carvalho      


O filme mais ambicioso do grego Yorgos Lánthimos, ou, ao menos, o destinado a chegar a um público mais amplo, é um antigo projeto sobre a rainha Anne Stuart, sob cujo reinado Inglaterra e Escócia se unem depois de um transformador período para que possa nascer a atual Grã-Bretanha, com todas suas mazelas. A época de “A Favorita” não podia ser mais turbulenta, incluindo uma guerra secular com a França, tema secundário durante a trama. O que o espectador precisa ter em consideração, porém, é que o próprio Lánthimos relativizou a precisão histórica em suas entrevistas sobre a produção. Não é uma aula de história e, sim, um panorama humano sobre os costumes de uma época.

“Não é uma aula de história e, sim, um panorama humano sobre os costumes de uma época”

A britânica Olivia Colman personaliza Anne, uma mulher de saúde frágil, que comandava o país a partir de seus aposentos reais, onde recebia, com os devidos filtros de seus interlocutores, informações sobre o conflito contra os franceses. Uma íntima amiga e confidente da rainha, Sarah Churchill, é o termômetro do exercício de poder e quem, desde sua capacidade para cooptar a monarca utilizando seus diversos dotes, mexe com as estruturas da corte. A personagem é encarada por Rachel Weisz em uma de suas mais brilhantes interpretações, o que não surpreende. Mas há um terceiro vértice do triângulo palaciano exclusivamente feminino, protagonizado por Abigail Masham, prima distante de Sarah, que sabe perfeitamente como escalar com solidez a pirâmide social. É interpretada por Emma Stone, enquadrada com soberba fluidez na trama, do alto de um perfeito sotaque britânico. A frugal atriz, que já se vestiu de namoradinha da América em várias ocasiões, enfim cumpriu um pós-doutorado.

 

BRIGA BOA: Olivia Colman, Emma Stone e Rachel Weisz concorrem, as três, a Oscars de interpretação neste ano

A força de poder na Grã-Bretanha de então emanava das mulheres, um aparente anacronismo histórico que ajusta com mais precisão a lenda de que o poder feminino era uma ilusão nos tempos aristocráticos. As mulheres sabiam e podiam mandar. Tal realidade surpreendeu o próprio Lánthimos ao esmiuçar a história curta e intensa de Anne e de suas lugares-tenentes. O trabalho do diretor foi estruturar o enredo para que se centrasse na vida pessoal – e nos métodos – dessas três mulheres no centro de decisões da monarquia. O diretor grego admitiu que não ampliou sua precisão histórica para se concentrar no espaço entre o mental e o físico onde se escondem os principais segredos de alcova de uma corte em tempos agitados, o que resultou em uma obra sobre as relações entre poder e convivência, entre ambição política e afeto.

Loucos paradoxos

A rivalidade entra Sarah e Abigail não tarda em surgir, como ponta de lança da trama para que uma delas ocupe o posto de favorita da rainha, cada uma a sua maneira. O resultado é um paradoxo que alterna o sutil e o contundente para revelar três majestosas interpretações, em torno de marcantes relacionamentos humanos que jogam com amor e poder em um insólito universo de domínio feminino para a época. Para tanto, o diretor grego não hesitou em carregar no latente clima de homossexualidade que permeia o filme, para ressaltar o relacionamento humano em si, ainda que tenha cometido outra imprudência histórica – os estudiosos do período não são suficientemente convictos de que Anne Stuart se tratasse de uma homossexual.

“O resultado é um paradoxo que alterna o sutil e o contundente para revelar três majestosas interpretações”

O encontro interpretativo das três atrizes revela interessantíssimos confrontos, de onde brota esse espaço íntimo no qual se jogam importantes questões no aspecto pessoal de uma época tão estudada no nível das consequências histórico-sociais, mas pouco esmiuçada nas questões ligadas às relações humanas. Ou seja, ao mesmo tempo em que se manejava o destino de um país, as favoritas montavam um incendiário duelo emocional em torno da rainha, alternando o sublime e o perverso, o vale-tudo descarado e a sutileza das pequenas armadilhas emocionais da nobreza. Tudo isso em um período, o século 18, no qual as cortes europeias viam como a sexualidade – e em alguns casos a promiscuidade – era um componente nevrálgico das relações palacianas em torno ao poder político e aos mecanismos de expansão das nações.

O diretor exagera bastante nas tomadas com grande angular e no contra plongée, além de abusar da espetacular trilha sonora como apoio ao suspense ou à tensão em determinados momentos argumentativos. É claro que Bach e Schubert caem com perfeição no ambiente palaciano, mas há uma certa overdose sonora no balanço final (que ninguém se espante, inclusive, com “Skyline Pigeon”, de Elton John, nos letreiros de encerramento – é só mais um anacronismo).

O fato é que, por dominar plenamente o ofício, Lanthimos passa um pouco da linha em seus excessos com a câmera, utilizando técnicas de publicidade, um ambiente que profissionalmente conhece bem, e de peças musicais, algo ligado à sua formação no mundo do espetáculo, que inclui uma participação importante na montagem do show de abertura na Olimpíada de Atenas/2004. São virtudes que o recomendam, nunca desabonam, mas que deixam o filme por momentos um pouco espesso, elevando além da conta a sensação térmica de extravagância em determinadas cenas. O principal, porém, a obra conseguiu: retratar o caudaloso ambiente palaciano da chamada “Inglaterra profunda” com transparência e sensibilidade, sem abrir mão de matizes de crueldade, ironia e tragédia. Aliás, esse foi o segundo maior mérito de Lánthimos – o primeiro, obviamente, foi reunir três atrizes excepcionais.

 

José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, cinéfilo, corintiano roxo e amigo para todas as horas

Fui ali ser feliz…

Saiu.

Foi assim, sem aviso ou despedida, que ela não mais voltou.

Antes, havia revelado para poucos que estava muito doente. Sofria de ódio. Disse que era uma dor infame que lhe aplacava todos os dias e que não sabia se começava nela ou se era algo que vinha no ar.

Na memória vinham cenas de momentos em que havia se sentido depreciada e diminuída, excluída e desamparada. Disse que essa dor foi, e é, terrível e que gerava nela algumas reações (não era bonito).

Contou ainda outros episódios em que suspeita onde pode ter ocorrido a contaminação. Mensagens. Foram muitas mensagens e posts.

Às vezes, contou ela, “podia perceber algo diferente em meu corpo ao ler. Meus olhos abriam mais do que o necessário, sentia um aperto no peito e o estômago ardendo. Travava os dentes e notava as narinas com abas mais abertas.”

Mas achou que não era nada. Com o tempo foi perdendo alguns movimentos. Ir e vir já não era tão fácil. Se sentia um tanto acuada. A voz começou a se tornar mais fraca. A garganta doía, a cabeça pesava e seu grito ficou mudo.

Perdeu coisas, como pessoas que chamava de amigos. Outras que chamava, parentes. Gente que não se importou com as dores que lhe causavam.

Confusa, não sabia se o que sentia vinha de fora ou de dentro. No primeiro momento, estava certa de que a contaminação havia lhe tomado inadvertidamente. Ela se sabia saudável e tinha todos os exames em dia.

Ingênua, não havia notado que o vírus do ódio é algo que vem programado em todos e que é sistêmico. Atinge fortemente, nesse momento, todo o país, quiçá o planeta, e faz parte de uma faceta humana.

Depois de algum tempo, ela se deu conta de que a doença que tomava como sua já era uma epidemia e os jornais falavam sobre vários casos de morte. Todos os dias as notícias traziam situações de ataques e contaminações.

A dor foi se ampliando e, aos poucos, se tornando insuportável.

Num domingo de sol, já torpe e surda, veio a decisão inadiável. Rompeu com os grilhões do medo de não fazer parte do sistema e saiu.

Determinada, decretou: Vou ser feliz!

P.S. 1: Pensou em si mesma. No entanto, a decisão agravou os sintomas de alguns. Episódios de inveja aguda foram relatados ao ouvirem-na cantar suas raízes: “Quem é que sobe a ladeira, do curuzu? […] Não me pegue não, não, não / Me deixe à vontade / Não me pegue não, não, não / Me deixe à vontade / Deixe eu curtir o Ilê / O charme da liberdade / Como é que é? / Deixe eu curtir o Ilê / O charme da liberdade.”

P.S. 2: Terminou dizendo: “Fui. Beijo, me liga”.

 

 

Évanes Pache é jornalista e especialista em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz


 

Crônica da seção Palavreiros, do blog, que traz colaborações de convidados com temas livres. O convite é extensivo a todos que gostam de “palavrear” a vida na forma escrita.

Quem são eles?

Em algum momento, lá onde as tribos nômades começaram as batalhas por territórios, aprendemos um conceito equivocado que até hoje guia a humanidade. Nós OU eles. E nós somos sempre os bons, nós somos sempre os certos, nós somos os melhores e mais bem intencionados. Nós somos os escolhidos que sabem o caminho melhor do que os outros.

Bad news!

Assim como não existe jogar o lixo fora porque não existe fora desse planeta, não existem eles.

Eles todos somos nós. E todos nós temos as mesmas necessidades de pertencimento, de amor, de compreensão, carinho, de conexão.

Todos nós temos necessidade de nos sentirmos respeitados.

O mundo está em convulsão. Terremotos, manifestações de indignação e revolta, tempestades, inundações, vulcões acordando… e um clima extremamente tenso no ar.

Isso acontece no panorama externo para que tenhamos atenção ao interno. A violência interna (e tudo o mais que estiver guardado em nós) gera a violência externa. Quando nos alimentamos de cenas, palavras e pensamentos violentos criamos essa atmosfera. Isso é lei, uma lei hermética chamada ressonância.

Não importa se acreditamos ou não. Lei é lei. Como a lei da gravidade, não vemos e, para que ela aconteça, não precisa acreditar. O que está em cima está embaixo, assim como o que está dentro está fora.

Como disse uma amiga (Andrea Honaiser) hoje em seu post, “tem horas que, se não existe nada de bom a acrescentar, melhor calar”.

Nesses tempos acirrados entre o bem e o mal, entre bandidos e mocinhos, vejo a exaltação da violência feita sem a menor responsabilidade nas redes sociais. Conhecidos, amigos, parentes, que antes não verbalizavam suas posições extremas se regozijam ao rivalizar com outras pessoas, muitas vezes, apenas para destilar ódio e vingança. Têm um prazer em inferiorizar o outro, em apontar as falhas, diminuir, em se colocarem como os certos da história seja ela qual for.

Bad news! Não existem “eles”.

“Eles” todos somos nós.

 

Évanes Pache é jornalista e especialista em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz


 

Crônica da seção Palavreiros, do blog, que traz colaborações de convidados com temas livres. O convite é extensivo a todos que gostam de “palavrear” a vida na forma escrita.

Mãe solteira procura…

“Mãe, compra um suco?”. Já viram o preço de um copo de suco num restaurante comum? Em Brasília, custa em média R$ 6 o copo.

“Mãe, compra cartas Pokémon?”. Depois que passou a febre das figurinhas da copa, ele voltou a fuçar a caixa que guarda mais de 200 cartas desses bichinhos esquisitos.

“Mas, mãe, só custa R$ 6”. Paro, respiro, penso e tento explicar que é quase o valor de uma passagem de ida para o trabalho. O ticket de metrô em Brasília custa R$ 5.

Dias atrás, ele chorou quando me despedi para ir ao trabalho. Pedi calma. “Logo as coisas se resolvem e consigo organizar melhor a logística para ter mais tempo”, disse eu.

Há dois anos deixei o jornalismo para trabalhar como artista em eventos. Passei a ter mais flexibilidade de horário, porém, abri mão de certos luxos. Deixamos o carro, evitamos comer em restaurantes, quase não compramos roupas. Cinema é raro. Viagens nem se fala.

O primeiro mês foi surpreendente. Recebi melhor do que quando era jornalista. No segundo, não foi tão bom, mas o primeiro mês compensou. Daí para frente, só malabarismo com a vida. Alguns meses tranquilos, outros uma corrida contra o tempo para conseguir o suficiente para pagar as contas.

Quando percebi estava trabalhando mais do que trabalhava antes como jornalista. Eventos nos fins de semana e escolas durante a semana. Isso porque o aluguel aumentou, a conta de luz subiu, a vizinha que dividia a internet desistiu por conta da péssima qualidade do serviço da Vivo, além da compra no supermercado que ficou mais cara.

“Mãe, minha cabeça está doendo.”

“Leva no oftamo”, aconselham.

“Mãe, tem um dente nascendo por cima do outro.”

“Ixi, vai precisar de aparelho de dentes”, ressaltam.

“Mãe, não consigo respirar.”

“Puxa, é alergia!”, afirmam.

“Tô pirando”, desabafo.

“Psiquiatra, nêga. Remédio ajuda. Tem convênio?”, perguntam. Imagina! Convênio? Desde quando isso faz parte da realidade de um autônomo?

Há meses tento uma brecha de tempo para enfrentar a fila do SUS e marcar tantas consultas.

Dia desses ele chorou de novo quando me despedi para ir dar aulas.

“Filho, eu preciso pagar as contas. Temos que nos ajudar”, expliquei. E entrei no metrô, cabeça a mil. Parei na frente da escola. Travei. Naquele dia eu iria trabalhar 8 horas, com crianças do berçário e do maternal. Já tentou conseguir a atenção de crianças de 1, 2 anos? E de várias delas ao mesmo tempo? Tentou?

Da mesma forma que eu, elas estão ali por falta de opção. Na verdade, preferiam estar em casa com seus pais, num ambiente seguro e confortável e não sendo obrigadas a fazer atividades de circo, inglês, nutrição, música, pintura, colagem, massinha, etc, por tempo integral. “Pelo amor de Deus, são bebês”, gritei internamente… e não entrei na escola.

Voltei para o metrô e surpreendi meu filho em casa. Com olhos cheios de lágrimas, ele gritou: “Mãe! Não acredito. Você voltou”.

Não é de cortar o coração? Avisei na escola que não poderia continuar o trabalho. Chorei e questionei o sistema. “Não existe outra forma. Você tem que aceitar!”, afirmaram. Bati o pé, gritei, dormi e acordei… “Quem vai pagar o suco, presentear com a carta Pokémon, pagar os aparelhos de dentes, os remédios da alergia? Quem?”.

Bem, sou mãe solteira (sem pensão), jornalista com dez anos de experiência, artista com dois anos de erros e acertos. Sou idealista e questionadora. Estou à procura de um emprego que me permita ter tempo para o meu filho e ainda assim ter condições de pagar além do básico. Temas como feminismo, igualdade, direitos humanos, pedagogia alternativa e arte me interessam. Você, empregador ou empregadora que se interessa por esse perfil ou conhece alguém que se interesse, entre em contato.

Acho que não é pedir demais… É?

Carol Oliveira
Jornalista, artista e mãe solo

 

Esta crônica integra a série “Vozes que pariram“, deste blog de crônicas, que tira da invisibilidade histórias de lutas de mães com o objetivo de provocar debate, reflexão e, quiçá, mudanças de mentalidade que melhorem as relações. Envie sua contribuição para silviapereira@palavreira.com.br se conhecer uma história que promova o objetivo do projeto.

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Sou uma mãe ‘do caralho’

Voz a quem pariu (apresentação da série)

Sou uma mãe ‘do caralho’!

Eu me formei jornalista aos 22 anos. Viajei para Europa para um intercâmbio de dois anos, com o intuito de me especializar e ter mais oportunidades na minha profissão.  No entanto, em apenas três meses de aventura eu descobri que estava grávida e decidi voltar para o Brasil.

Os anos seguintes foram de muita luta. Tentava conciliar estudo para concurso com trabalho e cuidados com a cria. Sentia muito cansaço, ansiedade, preocupação.

Trabalhei na Câmara dos Deputados, em alguns ministérios como assessora de imprensa. Aguentei humilhações e assédio sexual. Tinha que deixar meu filho tempo integral na creche.

Eu não tinha muita motivação, nem energia para ir além. O pai biológico do Miguel havia decidido não participar e colocou a culpa em mim por eu ter decidido voltar ao Brasil.

No Brasil, retomei uma relação com um ex, que insistiu em formarmos uma família – eu, ele e meu filho (ainda na barriga).

Durante os primeiros aninhos do Miguel, mesmo com esse companheiro, era eu quem acordava todas as madrugadas (afinal não podia exigir muito de alguém que escolheu ser pai de um filho de outro).

Quem pagava escola e comprava remédio e roupas e brinquedos era eu. Quem deixava na creche e buscava, era eu. Quem abriu mão de especialização, academia, fui eu.

O “pai” fazia muay thai, musculação, cursos, natação, trabalhava em dois empregos.

O pai biológico, nem sinal. Enviei uma foto do Miguel com 1 ano e 6 meses. Ele pediu: “não faça mais isso. Sofro quando vejo”. Nunca mais enviei.

O “pai” tinha carro (dado pelo pai) e moto. Eu andava cerca de 20 minutos com Miguel no colo e no sol para deixá-lo na creche. Um dia perguntei a ele por que não me emprestava o carro e ele ia de moto para o trabalho. Ele respondeu: “Porque você tem que lutar por suas próprias coisas”.

Na época, eu trabalhava como assessora de imprensa por míseros R$ 2 mil, com um deputado corrupto que pedia todo dia, em tom de “brincadeira”, que eu chupasse seu pau. Isso na frente de todos os assessores, que riam (aliás, ele foi preso por suspeita de estupro em seu Estado e solto por falta de provas).

Eu chegava em casa chorando e esse companheiro dizia: “você tem que correr atrás de outro emprego. Não posso fazer muito por você”.

Ainda fiquei dois anos nesse gabinete (enquanto procurava por outro emprego), “aprendendo a lidar”, como me diziam para fazer.


O “pai” tinha carro (dado pelo pai) e moto. Eu andava cerca de
20 minutos com Miguel no colo e no sol para deixá-lo na creche


Um dia, entre amigos, esse companheiro, para se vangloriar, falou em voz alta que sua renda estava em torno de R$ 10 mil. Eu fiquei chocada, porque eu não sabia nada sobre. Eu pagava metade do nosso aluguel, da nossa alimentação, R$ 800 reais de creche e, quando saíamos, metade da conta.

Eu fiquei tão triste e me sentindo tão imbecil que fui embora de casa sem dizer nada.

Até hoje ele pega Miguel em suas folgas. Claro que depois do seus esportes, viagens e trabalho. Por uns três anos, após eu pedir, ele pagou por algumas atividades extras do Miguel. Depois que casou, sua esposa o proibiu e também pediu que ele diminuísse o contato. Ele aceitou e me disse: “não me casei no papel para separar”.

Opiniões sobre esse caso existem milhares. A maioria “ME” julgando.

O que sei é que sou uma mãe “do caralho”, que evolui à medida que a energia vital deixava.

Ontem Miguel passou o dia com o “pai”, que permiti estar na vida dele só por ele, meu filho, que o ama muito e até adoeceu quando tentei afastar.

Não tive bom exemplo de avô (era um louco, violento, alcoólatra, escroto do caralho). Tive um pai extremamente desequilibrado (e ainda assim, sofro horrores com a sua falta). Não tive a oportunidade de oferecer um bom exemplo de pai para meu filho, mesmo ele dizendo para as pessoas que tem dois.

E no fim dessa história toda, ainda sei que a maior parte dos questionamentos será a respeito da minha conduta e não desses trastes.

Desejo parabéns a todas as mulheres que abdicaram de especializações, de saúde com o corpo, de viagens e momentos para si com o intuito de cuidar dos filhos.

E aos pais que são pais de verdade, que compartilham a responsabilidade ao invés de “ajudar”… vocês não fazem mais que a obrigação.

 


Carol Oliveira é mãe orgulhosa do Miguel

 

 

‘Voz a quem pariu’

A intenção da série “Vozes que pariram“, deste blog de crônicas, é tirar da invisibilidade histórias de lutas de mães, para provocar debate, reflexão e, quiçá, mudanças de mentalidade que melhorem as relações. Clique na foto da mãe com bebê para ler o texto de apresentação e envie sua contribuição se conhecer uma história que promova o objetivo deste projeto.

Tão simples que parece complicado

José Eduardo Gomes de Carvalho*

A ansiedade digital do século 21 fez da gente comum que sonha em ser feliz um alvo fácil para processos estressantes de sobrevivência, que geram pessoas crispadas e agressivas – e, portanto, infelizes. Daí que é automático concluir que a busca pela felicidade mais parece uma lenda. E o próximo passo é virar mito.

A desenfreada procura do ser humano pelo prazer e pela satisfação, ou pela felicidade, enfim, é tão antiga quanto a descoberta do fogo. É verdade que, em certos momentos de nossa vida, falar de felicidade parece um delírio diante dessa necessidade de terminar cada dia, cada mês, mas retomar essa busca sistematicamente pode ser uma saída para os males imediatos, nem que seja por míseros instantes.

Sábios pré-socráticos, filósofos de todas as correntes, acadêmicos e religiosos de vários matizes tentaram ao longo dos séculos dimensionar e tornar palpáveis fórmulas de felicidade, segredos da busca pela realização pessoal e pela convivência feliz. Foram esforços, na maioria, em vão, incluindo as peripécias dos milhares de picaretas da autoajuda, praga típica do mundo contemporâneo, instantâneo e fugaz.

Pois um psicólogo norte-americano, Daniel Gilbert, desconstrói alguns dogmas e derruba barreiras seculares para elaborar um plano de felicidade que não requer habilidades especiais nem grandes posses materiais. Gilbert, além de tudo um exímio argumentador, não se baseia em suposições, mas em minuciosos estudos de comportamento que tornaram as conclusões de suas pesquisas um conjunto de observações com alicerces na Ciência e não em pirotecnias impalpáveis.

PhD em Princeton e professor de Harvard, 60 anos, este pesquisador que abomina os manuais de autoajuda transformou-se num concorridíssimo consultor internacional de vários segmentos, em especial depois do mais lido de seus inúmeros livros publicados, que no Brasil, aliás, recebeu um título empapado de autoajuda, “O que nos faz felizes” (Editora Campus-Elsevier). No original se chama “Tropeçando na Felicidade” (Stumbling on Happiness).

Gilbert não faz suposições nem análises subjetivas. Seus levantamentos são diretos, atingem os alvos sem muito trololó, como a pesquisa com cinco mil pessoas de todas as idades e classes sociais que respondiam coisas como “o que faria você feliz neste exato momento?”, após um telefonema de surpresa – no trabalho, de madrugada, durante as férias. Para o cientista, não se trata de desprezar o que já foi feito por grandes cérebros da história. Ele preza demais, por exemplo, as distintas correntes hedonistas, que basicamente defendem a “felicidade que é simples”, a realização do indivíduo com as coisas básicas a seu alcance e sem nenhum malabarismo financeiro. Mas pondera que os estudos acadêmicos do mundo moderno, individualista e tecnológico, foram revelando, nem sempre para o bem, as atitudes de pessoas de todas as idades, crenças e situações sociais.

Do ponto de vista científico, que é o que interessa a Gilbert, é possível detectar perfeitamente, com os instrumentos à disposição dos estudiosos, o que é o conceito de bem-estar que mais se aproxima do mundo real. E as conclusões apontam para um panorama de surpreendente simplicidade para que a maioria das pessoas se sintam de fato felizes.

Nos resultados da equipe do especialista, quatro pontos são levantados como fundamentais para se atingir um estado seguro de felicidade: exercício físico, conversas/reuniões com amigos, música e sexo. São atividades que elevam corpo e espírito a um patamar de satisfação suficiente para compensar, com lucro, as mazelas da vida e abrir caminho para o equilíbrio pessoal.

Todos os outros itens eram de alguma forma ligados aos temas principais, tais como viajar, passear e conversar com os filhos, curtir os animais de estimação, consumir a comida preferida.

Do escopo da pesquisa não constavam questões nem respostas de alta especificidade, mas coisas como dinheiro, poder/prestígio, uma casa na praia, consumo exagerado ou um carrão da moda pouco apareceram quando as pessoas se referiam à felicidade duradoura.

Nas conclusões do grupo de Daniel Gilbert, o que ficou de mais representativo foi que todos os quatro requisitos para ser feliz podem ser atingidos a custo zero. Ao contrário, ficaram em segundo plano grande parte dos prazeres efêmeros/materiais, estes, sim, que podem custar o olho da cara.

Trata-se da velha diferença entre ter e ser. Tão escandalosamente simples que até parece complicado. É ou não para se pensar?

 

* José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, “explorador do mundo”, mentor e amigo para toda a vida


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’