Márcia Intrabartollo

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

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Mais perto da lua

Noite dessas fui abduzida para outro planeta. Justo eu, que nunca gostei de histórias de viagens interplanetárias, realidade paralela, catástrofes e coisas assim. Só via o céu quando passava noites no mato e, sem mais o que fazer, me deitava olhando a lua, a via Láctea, o Cruzeiro do Sul, a estrela Dalva e milhares de estrelas… Aí pensava em como seria morar em uma delas ou no planeta vermelho.

Agora isso: abro os olhos, ando pelo apartamento. Tudo parece igual, mas está diferente. Os extraterrestres reproduziram meu habitat como fazemos nos zoológicos, mas foram além, porque todo o meu entorno é o mesmo e minha mãe continua morando no mesmo lugar.

Só que estou enjaulada. Daqui não posso sair. Segundo me informaram por uma tela onde os ETs surgem cheios de cena, posso quebrar a regra da quarentena que me impuseram por causa de um invasor, mas arcarei com as consequências. E porque não posso sair, não vejo outras pessoas a não ser meu marido, que foi abduzido junto.

Temo e aprendo. Faço ginástica, cozinho com os suprimentos que me deixaram e há uma ordem de que tenho que manter 1 metro distância de quem quer que eu eventualmente cruze, se me rebelar.

Aprendo e temo. Não sei como viverei igual a antes disso se tenho aprendido a viver de outro jeito. Também não sei quando me devolverão para a Terra, se ela ainda será a mesma e nem mesmo se existirá. O mais grave: não sei se quero ser devolvida.

Estou gostando de ficar aqui, tirando as ameaças e os perigos do lugar. Consigo manter contato virtual com as pessoas que amo, rezo, mas não preciso trabalhar fora, cumprir compromissos sociais, encontrar os conhecidos sem afinidade comigo, experimentar a comida do restaurante novo, ser medida dos pés à cabeça. Vivo. Não preciso ir a cabeleireiro, terapeuta, shopping, massagista, cardiologista, contador. Não preciso ir ao banco.

E tudo se adapta. Cortam-se os excessos, tiram-se as influências. Neste planeta eu ouço menos barulho. Sempre gostei de silêncio.

Restringiram-me. Não posso mais bater perna. Viajar não pode. Nem abraçar, o que é ruim, mas por outro lado é bom porque dá mais vontade e encontram-se outros caminhos. A rigor, nem falar sozinha é permitido, pois gotículas de minha saliva ficarão no ar e isso é ruim para quem vem depois.

Tudo isso tem me deixado calma. Posso estudar uma porção de coisas que sempre quis sem ter pressa e faço isso pelo celular, que mantiveram e tem ótima conexão interestelar.

Devo fazer tudo devagar para que o tempo passe. E o tempo passa.

Durmo bem, rio, ouço músicas. Parece que estou voltando a ser criança.

Aliás, quando eu era menina, cismei de descobrir qual era a distância entre a Terra e a Lua. Passava tardes sentada no jardim tentando resolver esse problema.

Um dia, olhando uma figura da Terra e da Lua, tive a ideia: medi o diâmetro da Lua com a régua da escola. Digamos que tenha dado 1 centímetro. Medi a distância entre ela e a Terra. Digamos que tenha dado 5 centímetros.  E concluí que eu estava a 5 luas de distância da Lua.

Agora eu poderia calcular quanto tempo levaria para ir de caminhão até lá. E depois teria de descobrir por qual estrada.

Só porque estou abduzida nessa réplica do meu território, e com tempo, pude lembrar do meu sonho infantil de querer morar na Lua. Lá eu estaria mais perto daquilo que me faltava e eu nem sabia o que era. Nem sei ainda, mas estou com mais esperança do que nunca.

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

‘Todos os dias é um vai e vem…’

por Márcia Intrabartollo   

O casalzinho se foi carregando quatro malas enormes e chegou na outra parte da América só com isso, os longos cabelos lisos dele e os olhos de rolinha dela. Ela começará a dizer “I love you”, como ele faz há tempos. Seus pés dançantes logo acharão um lugar para ensinar seu tango, fato que me atrevo a contestar de leve: brasileiros ensinando tango reforçará a ideia de que Buenos Aires é a capital do Brasil.

‘Brasileiros ensinando tango reforçará a idéia de que Buenos Aires é a capital do Brasil’

Podia ser frevo, mas quem sou eu para dar palpites? A vida é que vai ensinar aos dois o novo ritmo e passo, e a nós também, que ficamos aqui com parte da vida que eles deixam para trás.

Diz o Chico Buarque que “chega a roda viva e carrega o destino para lá”, mas retifico sua composição: carrega o destino para lá e para cá. Nós, aqui, teremos a sensação de sermos um pouco eles, aguando suas plantas, temperando a comida com seus condimentos, como se de repente tivéssemos entrado em uma casa habitada da qual pudéssemos dispor como quiséssemos, desde que mantendo a salvo os discos.

Herdamos orquídeas, rosa do deserto e um pé de erva-doce com botões. Veio um saquinho plástico com um pouco de cúrcuma fresca e uma caixa de temperos que levei no colo. O carro se perfumou de mercadões. A pimenta preta. A canela em pó. A páprica, o orégano, o chimichurri.

No Carnaval, fritamos o anis-estrelado antes de pôr o cogumelo na panela. Ficou bom. Coloquei cravo em pó no leite quente para aproveitar o frescor das chuvas. Nem sei se estou fazendo certo. Estou cintilando nossas comidas de Cintia, a de cabelos escorridos. As flores do pé de erva-doce nasceram loiras como o Paulo. Ponho água nas plantas torcendo para que fiquem saudáveis e floresçam, e eu possa mandar fotos para San Diego e alegrá-los. Está tudo bem.

Ontem tiramos o pó dos discos, acomodamos a coleção de Chico Buarque, Belchior, Milton, Clube da Esquina e tantos outros em um armário. Vimos que alguns devem ter sido anteriormente de outras pessoas, desconhecidos que agora compõem nosso mosaico musical. Encontros e despedidas, não é Milton? “E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”.

Meu bem vai comprar na José Bonifácio o cabo para a caixa de som que ficou sobre uma antiga mesa de costura, que, por sua vez, também herdamos de quem precisou abrir mão para se mudar. Quando a vitrola funcionar, porei, de vez em quando, os discos de tango para que as plantas matem a saudade do casalzinho. Tocarei um disco diferente por dia e pensarei que as vibrações daquelas músicas chegarão a todos aqueles a quem pertenceram.

“A plataforma dessa estação é a vida”, tocará. A vida que voa, circula, muda de mãos, se embrica, se esfrega nas outras e faz intersecções.

Enquanto eu escrevia, eles cruzavam, aventureiros, o Atlântico.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina mundo afora e aprendiz de escritora

Para onde as mulheres podem fugir?

por Márcia Intrabartollo.    

Para onde  as  mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir?

Para onde as mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir levando pelas mãos seus filhos e sem formação que lhes permita ganhar o sustento?

Quando me imagino no lugar de uma delas, me vejo sonhando com um condomínio de casas em que as mulheres pudessem viver por um tempo e que fossem recebidas por assistentes sociais, advogadas e psicólogas capazes de lhes orientar sobre os aspectos legais de uma separação, lhes dessem cursos de capacitação profissional, intermediassem empregos. Para ficar tudo ótimo, o condomínio teria uma estrutura de creche junto. Ah, e tinha que ter interfone com porteiro para evitar que os maridos as tirassem da paz. Já inventaram isso?

Quando eu era criança, fui vizinha de uma família por muito tempo. Pai, mãe e três filhas. O marido sofria de alcoolismo e era o provedor da casa. Ele era ótimo em matemática, apesar de ter frequentado pouco a escola.  A mulher era doce e sensível, ótima mãe, católica e cuidava da casa e das crianças com os parcos recursos que ele lhe dava, apesar de ter os bolsos cheios de notas.

Morávamos em um loteamento, desses em que cada um constrói sua própria casa. A deles era um primor de bom gosto e capricho e tinha uma especificidade: de lá saiam sons o tempo todo. Saíam berros, xingamentos, barulhos de coisas se quebrando. Saíam “Ais”, saiam “Para”! Eu sentia a vibração daquela vida opressiva chegando até meu quarto. Tínhamos que aumentar o volume da televisão para não ouvir as brigas diárias.

Eu vi o dia em que a polícia chegou depois da mulher ter usado o telefone da minha casa para chamá-la. O marido tinha batido nela e dado uma surra na menina maior. Ela até suportaria se fosse só com ela, mas com a menina ele não podia ter mexido. Vi os policiais perguntarem o que ela tinha feito para que ele perdesse o controle daquele jeito e fiquei intrigada com esse outro jeito de ver quem era culpado.

Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo aquele sofrimento porque não tinha para onde correr. Mesmo achando que era pecado, ela se separaria dele se tivesse para onde ir. Mas nenhum dos seus muitos irmãos e irmãs achavam que em briga de marido e mulher se deve meter a colher. Os irmãos dele achavam que estava tudo certo. E nós e os outros vizinhos percebíamos como tínhamos uma vida harmoniosa em comparação com a vida dos outros.

 

“Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo
aquele sofrimento porque não tinha para onde correr”

 

Teria sido tão fácil se a família tivesse se unido para alugar uma casa para elas (ou acolhê-las) e por uns  meses tivessem passado um aperto a mais para lhes dar comida – só até que ela engrenasse como costureira, crocheteira, passadeira, já que era boa de trabalho…

Teria sido tão fácil se algum advogado vizinho tivesse se disposto a  orientá-la sobre o processo de separação, que lhe renderia pensão alimentícia…

Mas ninguém se envolveu. Nem mesmo nas duas vezes em que elas fugiram para a casa dos parentes e depois de uns dias foram mandadas embora porque eles não tinham como sustentar quatro bocas. Ninguém, tampouco, se interessou por ele.

Estou falando de um caso fácil: família de classe média, em um bairro de classe média, com marido que tinha como dar pensão, crianças saudáveis e educadas, mulher com condição de trabalhar. Um caso fácil em que nem assim houve solidariedade. Bastaria apoio. Uma mão forte para amparar aquela fragilizada mãe, que achava que sem o marido não conseguiria alimentar as crianças.

Dirão alguns que ela podia ter se separado assim mesmo. Falar com base em sua própria formação, personalidade e condição é fácil! O fato é que o medo e a opressão paralisam, e o fato maior é que ninguém é solidário a ponto de se envolver realmente, de cuidar da vítima.

Ela só conseguiu se separar do marido quando as filhas começaram a ganhar uns troquinhos como vendedoras.

Por que não vejo casas de apoio para receber mães acuadas, aquelas do meu sonho? Por que não vejo mulheres de sucesso e muita grana capitanear um projeto que propicie esse apoio, assim como jogadores de futebol apoiam escolinhas de jogadores, assim como os cantores sertanejos apoiam o Hospital do Câncer?

Eu, você, os parentes, os vizinhos, iniciativas privadas, o poder público… por que ninguém dá a essas mulheres a condição de fuga?

‘Poderia me perdoar’ rende assunto

por Márcia Intrabartollo

Seja precavido, recomende a seus amigos que assistam “Poderia Me Perdoar?”… e assista você também. Isso pode salvá-los. No dia que em que estiverem juntos e o assunto começar a faltar, essa dica do Palavreira será valiosa.

É que o filme que tem indicações em três categorias do Oscar 2019 – Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro Adaptado – é um dos favoritos no quesito “rende assunto”.

O roteiro é a adaptação do livro homônimo sobre a escritora Lee Israel, famosa das décadas de 80 e 90 que, em um revés da vida, virou sua casaca para o legalmente incorreto e passou a vender supostas cartas de celebridades a colecionadores.

O filme perpassa, então, temas diversos: ética, mercado de trabalho na meia idade, os impactos desesperadores da perda do poder aquisitivo, solidão, bloqueios criativos, relações de afeto com animais, simbioses nas amizades, busca de reconhecimento, perdão, recomeços…

A atriz Melissa MacCarthy, que interpretou a protagonista, surpreendeu com sua atuação dramática, sendo comediante. Teve a seu favor uma direção e roteiro que conseguiram fazer com que a anti-heroína conquistasse o público, e também o ator Richard E. Grant, que encarnou muito bem Jack, o amigo meio oportunista da escritora, e pode sim emplacar como Melhor Ator Coadjuvante.

A ironia da indicação está em Melissa MacCarthy brigar pela Oscar de Melhor Atriz ao mesmo tempo em que corre o risco de ser escolhida como a Pior Atriz por sua atuação em Crimes em Happytime. Isso mesmo. O prêmio humorístico Framboesa de Ouro, aquele que faz paródia com o Oscar e celebra os piores filmes e performances do ano, dará a Melissa essa chance, amargura, publicidade ou piada pronta. Se for eleita nos dois prêmios, igualará Sandra Bulock, que conseguiu tal feito em 2010.

A vida se imbricou com a arte e a embelezou ainda mais, relativizando o que é ser bom profissional, misturando comédia e drama, mostrando-se como é, com altos e baixos… é a vida imitando a arte ou a arte imitando a vida?

Opino que o filme Poderia me Perdoar? surpreende pelo enredo e atuações, mas se leva um tantinho arrastado, e em algum momento parece perder o timming. No entanto, eu consegui sentir o cheiro do apartamento sujo de Lee Israel e até poderia ter limpado de minhas mãos a poeira dos papéis velhos.

Se para mim, acima de tudo, um filme vale a pena se faz pensar, qualquer outro deslize, eu posso perdoar.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, aprendiz de escritora, peregrina mundo afora e amiga querida

Passarinha, suricata ou um ventilador

Acordei de madrugada e me dei conta de que aquela era a 28ª cama diferente em que dormia nos últimos 28 dias, e a última. Não havia mais o que andar. Na manhã seguinte pegaríamos o caminho de volta ao Brasil.

Depois de ter passado por beliches, camas de campanha e de solteiro, a 28ª era de casal, como a primeira, e de certa forma essa situação fechava o ciclo. A mesma colega do primeiro dia dormia comigo, mas diferente da noite em Aosta em que tremi de medo, agora eu pensava na guinada que minha vida dera: estava “grávida”.

As estrelas me viam como um pontinho na cama de um B&B em Siena, na Itália, em um dos cinco continentes, na Terra, que pouco representa no Universo. Eu era nada mais do que um pó perdido de felicidade porque estava em uma cidade medieval incrível e tudo tinha dado certo. Não havia conseguido vencer o medo, mas o domara; não havia conseguido ser engraçada, mas estava mais leve; minha rigidez se movera só alguns milímetros, mas foi a brecha para uma expansão. E tinha pego barriga, estava prenhe daquela outra “eu”.

Fechei os olhos e me lembrei de dois dias antes, quando deixamos San Gimignano para trás. Andávamos de madrugada por uma cidade que se conservava igual há séculos, e eu pensava se outros peregrinos que pisaram aquele chão de 63 anos antes de Cristo tinham se metamorfoseado.

Agora também é muito cedo e desperto do primeiro sono de volta ao Brasil. Meu marido dorme. Fecho os olhos e San Gimignano volta: lá o céu enluarado estaria mudando de cor, passando de carbono a um azul Bic, com nuances cor-de-rosa. Uma ou outra padaria já começaria a abrir, enquanto grandes arbustos verdes já estariam se revelando nas muralhas.

É bonito ver a mudança de geografia, o sol nascer, o dia se pôr. A gente passa, o dia passa, o tempo passa, tudo vai mudando e a gente pensa que está igual. Daqui para frente, serão só lembranças e os cuidados com essa bebê que fica sendo constantemente gerada e parida. Chegará o dia em que só haverá sombra da Márcia anterior.

Para mim, a peregrinação pela Francígena foi um ritual de passagem. Eu andava frustrada com a comodidade que tinha dado para minha vida. Mantinha presa em uma torre a passarinha que eu sonhara ser. Naquele março de 2017, abri a porta da gaiola, pus uma mochila nas costinhas dela e mandei-a passear.  Foi para a Itália disposta a renascer.

Quando já tinha se passado um ano, meu sobrinho disse que pareço uma suricata. Uma semana depois, minha enteada afirmou que eu lembro um ventilador de piso. Dá na mesma… passarinha, suricato ou ventilador, um ou outro fica retinho e girando a cabeça de lá para cá, tentando dar conta de tudo.

Fiquei orgulhosa de passar essa imagem pois parece que estou conseguindo “ter o pasmo essencial que tem a criança, se ao nascer, percebesse que nascera deveras”. O Fernando Pessoa fala bem lindamente dessas coisas, mas, Lucas e Nágila, vocês foram tão certeiros e modernos que vou preferir as definições de vocês. Ganharam o dia, agora me aguentem…

Sigo em frente, e é para valer.


Queridos leitores que acompanharam carinhosamente a série Pé Dá Letra,

amigas peregrinas Adriana, Kele, Regiane, Renata, Sheila e Vera,

Silvia Pereira, que me abriu este valioso espaço no Palavreira,

minha mãe e meu amor:

agradeço a todos pelo apoio na minha jornada de autora!

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a última crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Eu Vi Gigantes, clique aqui.

 

Eu Vi Gigantes!

Quero me redimir da culpa de ter usado o nariz do Pinocchio para contar algumas histórias. Saibam que se misturei realidade com mentirinhas foi unicamente com a boa intenção de imprimir nelas um pouco da magia que permeava nossos passos. E já que estamos na penúltima crônica da série, vou revelar a vocês uma verdade sólida.

Eu vi Gigantes. Juro por tudo o que é mais sagrado.

Acharão que estou de brincadeira, mas não. Saibam que eles foram o acontecimento mais real e forte de tudo o que foi contado até agora. São mais vastos que os Apeninos, e têm nomes de mortais comuns: Karl e Vincent.

Karl jantou conosco em Chatillon e andamos juntos por dois trechos. Quando falou de nós em uma de suas postagens, disse ter dúvidas se éramos um grupo de brasileiras ou uma banda. Isso porque ele testemunhou momentos em que estávamos animadíssimas para cantar e dançar enquanto andávamos.

Karl é um Gigante inglês de presumíveis 65 anos, casado e pai de uma paratleta acometida por paralisia cerebral. Ao aposentar-se, impôs a si mesmo o desafio de andar 3.200 quilômetros de Windsor (Reino Unido) até Atenas (Grécia) para, com tal feito, angariar recursos para duas instituições: Cancer Research UK e Chance for Childhood. Andar por caridade era o que fazia por ali. Com posts e vídeos, chamava a atenção dos seus seguidores. Um Lord!

Diante de um coração tão generoso, fiquei miúda. Diante de alguém com um propósito tão forte de doação, que cede e faz pelo outro, pensei no quanto é possível se expandir.

Foi o primeiro Gigante. Veio para ensinar.

Como os semelhantes se atraem, não demorou para o segundo gigante juntar-se a nós.

O Vincent era um holandês que apareceu do nada no trecho de Vèrres. O lógico seria que nos ultrapassasse e seguisse seu rumo. Devia ter uns 30 anos ou nem isso. Depois explicou que reduziu seu ritmo ao mínimo porque estava precisando da alegria que tínhamos de sobra. Isso fez com que andasse conosco um dia e meio, até desistir de nossa lerdeza.

Vincent era o Gigante maior porque estava lutando por sua própria vida. Tinha uma doença grave que o obrigava a tomar medicamentos diariamente, pois seu intestino não absorvia os nutrientes. Ele podia passar mal a qualquer momento, mas estava andando sozinho e percorria cerca de 50 km por dia.

Tinha fé –  muita fé – de que se saísse da Holanda e seguisse até Jerusalém, abrindo mão da medicação no trajeto, se curaria.

Você já olhou nos olhos de alguém de pupilas pretas que brilham quando diz que tem fé de que vai se curar enquanto anda, prescindindo dos remédios, arriscando-se a não ter socorro caso passe mal? Já sentiu que sua alegria efêmera podia ser um bálsamo para alguém vivendo tamanho drama pessoal? Já torceu intensamente para que o Deus dos Gigantes ouvisse aquelas preces?

Mais uma vez, diante de um coração tão valente quanto aquele, fiquei miúda. Diante de alguém com o forte propósito de defesa de sua vida, que enfrenta os problemas e age por si mesmo, pensei no quanto é possível expandir-se.

Foi o segundo Gigante. Veio para ensinar.

Pinocchio, aqui a magia deu-se por outras vias. Conhece Belchior, seu filho de carpinteiro? Dizia ele que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Deve ter visto gigantes também.

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a nona e penúltima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Carta para a Menina Helena, clique aqui.

 

Carta para a Menina Helena

Um dos quadros integrantes da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017

A Helena é filha da Marina, que é filha da Sheila, que é irmã da Adriana, e ambas filhas da Maria José.

Uma linhagem de mulheres (fortes!).

A Sheila e a Adriana são peregrinas, gostam de andar pelo mundo. Isso começou em 2014, quando trilharam o Caminho de Santiago e a Helena era ainda uma bebezinha. Não entendia direito de ausências.

Mas o tempo passou – criança cresce rápido – e quando as duas irmãs resolveram trilhar a Via Francígena, em 2017, a menina precisou ser preparada para entender a falta da avó naquela casa sempre tão cheia de Sheila.

Na tarde em que chegamos a Fornovo, a Sheila e a Helena se falaram por Skype. A Sheila disse:

“Olha, Helena, a vovó está te mostrando a paisagem daqui. Tem montanhas, tem ovelhinas lá embaixo. Já já a vovó vai dormir, porque aqui são 10h da noite, Helena!”

Mas a Helena já sabia muito bem que pra ser noite o céu tem que estar escuro.

“Vovó Sheila, você errou. Agora não são 10h da noite. Eu estou vendo, ainda é de dia, vovó. Você não vai dormir agora!”

Puxa, a singeleza das crianças!

É claro que a Sheila explicou que no lugar onde ela estava o dia corria diferente, não escurecia naquele horário. E foi então que a Helena pediu um presente daquele lugar exótico.

A Sheila já vinha pensando nisso. Por toda a cidade que passava, procurava um presente para a Helena e outro para decorar a casa nova da Marina. Não achava nada que fosse interessante o suficiente, que coubesse na mochila e não pesasse.

Passados uns dias, chegaram a Lucca, uma das cidades medievais mais turísticas da Itália. Lá a Sheila encontrou o presente da Helena e o guardou bem guardadinho para entregar a ela na volta para casa.

O mais bonito mesmo foi como uma exposição de quadros, com que cruzou inesperadamente, inspirou a Sheila a escrever uma cartinha para a neta, que postou via Face.

Dizia assim:

Quadro integrante da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017, que mostra o nariz comprido do Pinocchio

“Minha linda Helena,

Hoje a vovó visitou a cidade do Pinocchio de verdade!

Ele nasceu e viveu num pequeno povoado que pertence à região de Lucca, chamado Collodi. Aqui em Lucca, onde a vovó está, tem Pinocchio pra todo lado, em diversos tamanhos e formatos… muito lindinhos!

 Ahh… e tem muitas torres altas, parecidas com a torre da Rapunzel, acredita?

Então, resolvi subir em uma e descobri uma exposição com quadros do Pinocchio (muitos pintados por um artista local, com várias cenas da história do menino de madeira).

Fotografei alguns quadros só para você!!!

Tenho certeza que você verá essas e outras maravilhas do mundo com os seus lindos olhos amendoados um dia… muitos beijinhos.”

Diz a Marina que Heleninha adorou!

O curioso é isso: ser criança para fazer as coisas de adulto, e depois de adulto ver a vida com olhos de criança. Naqueles dias, tantas vezes, ao nadarmos no riacho, arrumarmos nossas lancheiras, brincarmos de mapa, vestirmos nossos uniformes ou jantarmos varadas de fome após chegarmos sujas em casa, alcançamos o estado de graça de voltarmos no tempo.

 

 

Esta é a oitava crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de  Pontremoli a Lucca, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, A Vareta do Diabo, clique aqui.

A Vareta do Diabo (uma ficção delirante)

“Sheila, prefiro ir com você pela floresta, não com elas pela estrada”.

“Ótimo. Vamos ver qual equipe chega primeiro a Pontremoli!”

“Elas, claro. É muito mais fácil ir pela estrada. Você sabe o caminho?”

“Fotografei este trecho do guia do alemão. Diz que é bem marcado, basta seguir as indicações.”

“Mas já faz tempo que a gente está andando e não vi nenhuma placa da Via Francígena.”

“O caminho é este mesmo, não teve outra trilha cruzando.”

“O que diz o guia?”

Trilha na floresta entre Berceto e Pontremoli, úmida, perfumada, a mais linda.

“Deixa ver… diz que alguns quilômetros depois da cidade de Berceto encontra-se o portal do parque floresta, que faz a divisa com a Toscana. Já fizemos isso. Depois segue-se por um bosque de árvores altas e então passa-se por uma pequena casa.”

“Acabamos de passar pela ruína de uma casa. Seria essa?”

“Deve ser. Depois há um mirante e a seguir um riacho. Depois do riacho começa a área dos cogumelos Funghi Porcini, que dão muito por aqui.”

“Olha lá na frente, Sheila, é o riacho! Se os cogumelos vierem depois, estamos no caminho certo! Nunca vi Funghi Porcini…”

“Ei, Márcia, que riacho bucólico! Vamos tirar umas fotos? Olha… na árvore tem uma placa dizendo que colher cogumelos dá prisão. Que horror!”

“Um exagero! Tem tanto cogumelo aqui que mais parece uma plantação! Iuhuu, estamos no caminho certo!”

“Não disse? A certeza me deu fome. Vamos parar para lanchar?”

“Já comi  todo o meu lanche andando. O que eu preciso agora é de um banheiro.”

“Os cogumelos estão aí pra isso, Márcia.”

“Pra lanchar? Está doida? Não viu que dá prisão?”

“Eu quis dizer que dá para fazer de banheiro na região deles!”

“Tem razão. Vou até onde sua vista não me alcance.”

“Marcinhaaaa… por que está demoraaaando?”

“Não estou ouvindo direeeeito!”

“Está tudo bem?”

“Ótimo, Sheiloca!”

“Ótimo… onde já se viu? Como pode ser ótimo?”

“Cheguei!  Sheila, você precisa ir para ver o que eu vi. Mais pra frente aparecem uns cogumelos super diferentes…”

“Estou comendo. Só quero ver esse ovo gostoso dentro do meu pão.”

“Você só pensa em comer… Mas se eu te contar o que vi, você vai correr para lá…”

“Não quero saber, está proibida. Preste atenção, temos uma longa descida e então avistaremos a cidade. Mas vamos passar por uma pedreira onde será preciso cuidado porque diz que tem muitas pedras soltas e o tempo está fechando.”

“Ok. Pra frente é que se anda. Fui.”

“Ih, comi com tanta fome que estou ameaçada de ter um piriri.”

“Vai nos cogumelos e aproveita para ver os que eu vi…”

“Marcinha, você comeu algum cogumelo? Porque parece que está tendo barato… já disse que não vou voltar para trás…”

“Não comi, mas não tiro aqueles da cabeça. Vamos voltar, Sheila, você tem que ver…”

“Não vou subir tudo isso de volta só porque você quer.”

“Você devia ver… eles têm um formato…”

“Do quê?”

“Formato ereto.”

“Você deve estar delirando…”

“Veja com seus próprios olhos. Têm formato fálico!”

“Não vou voltar, papo findo. Se perdi a oportunidade de ver, paciência. Já descemos uns três quilômetros e não vou subir de volta.”

“É que eu me arrependi de não ter aproveitado os cogumelos, e você podia mesmo voltar lá comigo.”

“Eles não podem ser comidos. Que insistência!”

“Não quero comer, Sheila, quero cheirar… é uma oportunidade de ouro.”

“Ah! E por que não fez isso quando estava lá?”

“Porque estava ocupada, mas acho que o cheiro deles me pegou…”

“Eu não vou cafungar cogumelos, já estamos na pedreira! E se concentra para não escorregar nessas pedras. Acho que essa história de cheiro deixou você biloló, Márcia. Até melhorei só de rir das suas asneiras. O que você fez com os cogumelos, afinal?”

“Quer saber mesmo? Eles me fizeram lembrar do maldito João, aquele sacana que me traía com a Silvia que estudou com a gente?”

A imagem diz quase tudo

“Como esquecer?”

“Fiquei com tanta raiva da imagem do João me atrapalhando em um lugar tão perfeito, que arranquei o cogumelo e o pisoteei com vontade, até ver que ele ficou bem esmagado. Descarreguei toda a minha raiva nele e estou me sentindo vingada!”

“Que nojo de você! Parece um bicho… onde já se viu? Não dava para controlar sua raiva por uma coisa que já rolou há tanto tempo? E ainda fica insistindo em voltar…”

“É que o cheiro que ele exalou me provocou… você é muito certinha, credo!”

“Não sou. Tanto que se fosse para eu me vingar do Abílio por causa daquela loirinha que ele arrumou, eu precisaria de uma faca para fazer picadinho do cogumelo. Que ódio dele! Estou considerando voltar…”

“Ah, só que agora estamos chegando em Pontremoli e já começa a pingar!”

“Você não regula bem. Márcia. Primeiro você quer voltar, e quando eu concordo você puxa o breque…”

“Você que enrolou! Sabe que eu sou diversão garantida, devia ter voltado…”

“Só eu sei! Márcia, queria combinar uma coisa com você. É sério. Essa história tem que morrer aqui. Não quero que você conte por aí, podem pensar mal da gente…”

“Posso publicar no blog Palavreira, vai fazer sucesso!”

“Não brinca, não. É segredo nosso. Vamos, Marçoca, já está anoitecendo.”

“Essa já é a rua do hotel. Olha o luminoso dele à direita!”

“Boa. Vamos atravessar! Escapamos da chuva por pouco.”

A bela Pontremoli, vista da ponte.

“Sheila, fica aí fazendo o check-in que eu já vou para o banho.”

(…)

“Você demorou muito nesse banho!”

“Delicioso.”

“Estou pesquisando no Google sobre cogumelos dessa região.”

“Achou a foto do funghi porcini?”

“Achei, e não parece com sua descrição… o que você viu foi outro…”

“Qual o nome do meu?”

“Veja a foto e diga se foi este…

“Sheiloca, é esse mesmo, exatamente!”

“Reparou no nome?

“Não…

“Phallus impudicus… Larga o celular que eu vou ler um detalhe para você: o cheiro asqueroso de algumas espécies do phallus impudicus  é afrodisíaco para as mulheres”.

“Olha, por isso eu fiquei…”

“Ele também é conhecido como a Vareta do Diabo. Isso diz alguma coisa?”

“Senti uma raiva demoníaca do João.”

“Nada disso, Marcinha. Isso significa que se você pisoteou a Vareta do Diabo, com certeza o coisa ruim está puto com você… Você vai ser castigada…”

“Aturar você já é castigo suficiente e o diabo tem mais coisas com que se preocupar. Vamos dormir, Sheila.”

“Boa noite. O dia de hoje entra para a história.”

“Entra, mas tem que ficar no puro sigilo. Pode deixar que não vou palavrear por aí. Boa noite para você também.”

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta invencionice da autora é a sétima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Foi feita durante o curso da Escola de Escrita Inventiva. Para ver as fotos do trecho de Berceto a Pontremoli, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Chocolate com Pistache, clique aqui.

 

Chocolate com pistache

De chocolate com pistache foi meu brioche do café da manhã. Um abuso! Mas era ele ou a fome. Depois me perguntariam se eu tinha perdido peso por andar 700 km, mas de que jeito se emagrece comendo essas coisas?

Poucos minutos antes, 6h30 da manhã de um domingo, éramos vistas paradas em uma esquina da cidade de Pavia, com nossas mochilas e chapéus, sem perspectiva de encontrar um lugar onde tirar a barriga da miséria. Quem, em um domingo europeu de uma cidade turística relativamente pequena, abriria uma cafeteria ou padaria àquela hora?

A brasileira metade holandesa que estava conosco alertava que tínhamos errado o planejamento e por isso estávamos naquela penúria. Aliás, parêntese para dizer que os europeus têm fama de nem sempre trabalharem aos domingos e ainda fazem sesta diariamente!

Estávamos com um problemão, pois como poderíamos seguir até a próxima cidade se saco vazio não para em pé? Tínhamos bobeado no dia anterior vendo uma apresentação musical na praça e, quando chegamos ao mercado, estava fechando as portas.

Por isso, quando ouvimos um barulho de motor e vimos a porta de ferro de um bar chamado Room 46 se abrir automaticamente à nossa frente, nos sentimos agraciadas por um milagre. Tínhamos parado por acaso naquele endereço da Via Dei Mille.

O lugar tinha cara de “night”, mas ele se abriu, e por causa disso esta crônica ganhou aroma de café, baunilha e pistache. Ah, e ela também está levemente mais aquecida pelo calor do forno, que também derreteu as defesas do meu corpo.

Chegue mais perto da tela para sentir que aroma!

O Room 46: bar à noite e cafeteria de manhã

Eu, tão acostumada a um pão com manteiga e café com leite no café-da-manhã verde e amarelo, vi uma vitrine cheia de brioches, e isso foi tudo o que passei a desejar: a delicada doçura daquelas iguarias de chocolate, pistache, baunilha, frutas vermelhas ou mesmo sem recheio, à escolha do freguês.

A vontade de encher minha boca com aquela iguaria tomou conta de todos os meus órgãos, que faltaram congelar naquele único momento de desejo de um sabor doce, quente e com certo tom de canela.

Disputávamos entre nós mesmas a vez de fazer o pedido no balcão daquela cafeteria alternativa.

Pedido feito, nos sentamos ansiosas nas cadeiras pretas da mesa preta, no bar moderno de parede de tijolos à vista e iluminação amarela, como crianças esperando um pedaço do bolo de aniversário. Nossos pedidos foram trazidos aos poucos, desobedientes à ordem em que foram feitos.

Primeiro veio o pedido da Adriana, o leite quentinho, o brioche cheiroso… Dissemos: “pode começar, Dri”, e ela começou, bem diante de nossas lombrigas e olhos esbugalhados.

Depois veio o da Renata. Ela se ajeitou na mesa ritualisticamente, esticou o pescoço e foi levando aquela delícia até a boca em câmera lenta.

Virei meu rosto e vi chegando mais uma bandeja. Eram os dois brioches da Kele, mais seu café ao leite. “Podem se servir, meninas”, ela dizia, mas nós sabíamos que aceitar significava devorar e seguramos nossa onda. Ela partiu seu brioche ao meio e vi escorrer dele o chocolate derretido… ai… e parece que ao fundo ouvi sua voz dizendo “vocês vão me desculpar…mas vou comer, então”. Coma, Kele!

A Regiane levantou-se nervosamente. Estava difícil lidar com aquilo. Foi ver o que estava acontecendo com o pedido dela. Voltou vitoriosa. Tinha tomado posse da sua bandeja e do pedido da Sheila. Agora só faltava a minha.

Eu tantas vezes vi gatos aos meus pés querendo o leite denunciado por aquele faro deles, os miados nervosos, mas eu não dava. Agora, de castigo, eu era a gata (auto-elogio) ronronando pela comida que o garçom não trazia para mim.

Aí chegou o meu pedido. O lugar estava cheio de senhoras conversando e de solitários, e a TV anunciava alguma coisa sobre o Hitler… Olhei para aquilo à minha frente e fechei os olhos para sentir. Vegetarianos têm olfato muito bom. Depois vi que a Adriana e a Renata me observavam. Dei um gole no café e então mordi meu brioche de chocolate com pistache. Um abuso! O melhor da vida. Foi um daqueles sabores que entraram na minha lista.

Infelizmente, não tínhamos tempo para mais um.

A ponte Coperto, cartão postal de Pavia

Agora precisávamos andar até Santa Cristina e, antes, encher os camel-back. Achamos uma bica no mesmo ponto onde tínhamos chegado no dia anterior de Garlasco, após andarmos por muitas horas às margens do rio Ticino. Agora o atravessávamos pela ponte Coperto, que divide a parte turística de Pavia de onde nos hospedamos.

O sol suave anunciava um dia lindo e a cidade ainda estava se levantando. Andamos por suas ruas silenciosas. Era mesmo uma cidade muito agradável! Sua luz ficou na memória, com o sabor doce e o brilho do rio.

Pavia, não saia daí. Um dia eu volto.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

Esta é a sexta crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Garlasco-Pavia, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora

 

Clique no link para ler a crônica anterior, O aniversário da princesa Kele.

O uivo do monstro

Nicorvo deserta

Para mim, sem dúvida, daria para gravar um bang-bang em Nicorvo. Ela é feia. É empoeirada. Tem 400 habitantes e é quase sem cor. Uma cidade que para nós foi como um vira-latas esquelético, sofrido, com sarna e dentes afiados, que corre atrás do próprio rabo e nunca late. Tem pelos curtos e falhos e, de bom, carrega um sininho na coleira.

Na imensa planície de Parma (Itália), Nicorvo se deita atormentada por insetos no brejo das plantações que a rodeiam, de arroz, trigo ou farro, sabe-se Deus.

Ao seguirmos a pé para lá, não sabíamos o que nos esperava. Se soubéssemos, teríamos cancelado a caminhada. Mas não. Inocentemente fomos trilhando enquanto o monstro se armava. Enquanto partíamos da acolhedora Vercelli, o tal se formava não se sabe de onde, mas já zunia seu vento silencioso.

Andando, nós quatro tivemos uma das conversas mais íntimas de todo o mês que passamos juntas. Cada uma falou sobre a morte de seu pai. As histórias foram ouvidas sem pressa, sentidas. Cada palavra de tristeza foi deixada vagando entre aquelas plantações.

Logo, dois avisos dissiparam as lembranças pesarosas. O primeiro: como se antecipasse o suspense do que viria, toda a água de nossos cantis se acabou. O segundo e principal aviso: o tempo fechou de tal modo que nos calou completamente.

Já andávamos, àquela altura, olhando o chão, de cabeças baixas, desanimadas e com pressa de chegar. Parecia que tínhamos ido até o fundo de uma cisterna vazia. Agora estávamos perto. Ouviam-se só os passos cadenciados das botas, distantes umas das outras, e a sensação do barulho que não se concretizava, como a vibração longínqua de alguma garganta muda.

A Regiane, por formalidade, achou por bem fotografar o lugar para espantar o arrastado do dia e, ao levantar os olhos e focar o horizonte, surgiu na tela a ameaça da qual não teríamos como escapar…

A foto é ruim, mas o fato é real: este foi o registro do furacão

“Olha, olha o que vem vindo… um furacão!”

Não tínhamos opções. Não havia onde se proteger naquele descampado e só poderíamos sair da estrada se afundássemos no brejo das plantações, à direita, ou se nos agarrássemos às poucas árvores à esquerda – mas furações arrancam árvores. Na estrada, voaríamos pelos céus.

O tempo fechou ainda mais e vimos o furacão se aproximando. De longe, ele parecia um sino de igreja invertido … e era bonito.

Cada uma rezou do seu jeito. Eu achei que não faria muita falta, mas pedi a Deus que me deixasse aproveitar mais a aposentadoria que mal começara e lamentei pelo sofrimento dos meus. A Renata escreveu “mamãe ama você” para a filha, no aplicativo do celular, e enviou, emocionada. A Regiane também pensou na filha, e a Kele em muita gente.

Sabíamos que não daria tempo de chegar à cidade com nossas pernas e minutos curtos, porque o monstro estava cada vez mais perto. Como seria bom se as mochilas fossem asas ou se aquilo fosse a gravação de um bang-bang e nos bastasse galopar em puros-sangue até alguma tábua de salvação!

Ponderamos que antes da cidade havia um cemitério e se o alcançássemos poderíamos achar alguma construção para nos proteger, mas pelo andar da carruagem nem mesmo conseguiríamos chegar nele vivas – com o perdão da ironia!

Vinha vindo um furacão como nunca imaginamos e o tempo se fechava para a tempestade. Os pingos começavam, ventava e trovejava. Contra isso é que vestimos pela primeira vez os corta-ventos que trazíamos, como se eles pudessem… deixa pra lá.

Provavelmente nunca mais encontraríamos com a Sheila e a Adriana, as duas irmãs peregrinas que chegaram a Nicorvo algumas horas antes, vindas de Milão.

A estação de trem da pequena Nicorvo

As irmãs

Quando Sheila e Adriana desembarcaram, assustaram-se com o mau tempo e pensaram nas amigas à pé. Acharam a cidade morta, sem gente nas janelas.

Ninguém atendeu à porta da casa paroquial que nos abrigaria. Aquelas ruas não tinham placas e as casas não eram numeradas. A Prefeitura estava fechada. Não havia nem sombra de crianças. Os motoristas dos carros não paravam. Ninguém se envolvia. Ficaram as duas na rua à espera de uma alma boa.

O homem que surgiu para abrir a porta deve ter saído de um bueiro, ou talvez estivesse escondido atrás do poste. Deu-lhes instruções apressadas em um italiano para turista não entender, mas, pelas feições dele, não podia isso, não podia aquilo, não podia… não.

As horas de fome das irmãs passavam contraídas. Não acharam ali padaria, mercado, restaurante ou venda alguma aberta e só conseguiram comprar meia dúzia de ovos, por 2 euros, de um romeno com quem conversaram pela língua da penúria. Ele disse que Nicorvo era assim mesmo, mas revelou que o pub abriria à noite – “isso, se o furacão não chegar”, ressaltou. Mas as duas não entenderam e foram tranquilamente cozinhar os ovos para nos receber logo mais.

E de volta à estrada…

Acho curiosa a sensação de se sentir espreitada pela morte e digo com conhecimento de causa, porque não foi a primeira vez. Traduz a seriedade única do “agora é o fim”. Os pensamentos sobre como vão ficar as coisas, as desordens, as perdas, os amores, as dores, a puxada de conta passam rápido ante a magnitude do que nos espera e ficamos ali, à mercê de um destino. O que tive não foi de forma alguma medo, mas uma postura de me soltar para o inevitável.

Na hora H, pensamos tudo o que tínhamos para pensar tão rapidamente que em pouco tempo voltamos a andar na velocidade de sempre, à espera do abraço. Não havia o que fazer. Não corremos às árvores nem fomos ao brejo.

Pode ser que, de tanto nos abismarmos, tenhamos perdido o interesse do monstro. Depois de tudo, o furacão fotografado nos virou as costas. Desfez-se lentamente e não se sabe ainda em troca do que fizera o blefe de surgir.

De um minuto para outro, nada foi o que era para ser. Ele se esvaiu. Deve ter vindo só para negritar nosso desamparo, para sublinhar o tema do dia, antecipar o tom obscuro e ranzinza da cidade com cara de vira-latas e nome de pássaro.

Assim como veio ele se foi e tudo aconteceu tão rápido que, quando olhamos de novo para o céu para conferir, nosso algoz já tinha sumido.

Foi como se tivéssemos tido um pesadelo coletivo… como se tivéssemos feito parte de um show macabro.

A sorte é que o tínhamos fotografado para provar às outras o motivo de nossa alegria quando as encontramos.

Fomos ao pub só porque, afinal, um ovo não matava a fome de ninguém e precisávamos comemorar.

Ao fim, o pub era ótimo… o sininho da coleira. A Sheila e a Adriana nos contaram as aventuras de terem chegado ali em uma locomotiva tão antiga que dava muito, mas muito medo de que ela tombasse nas curvas – outro monstro longilíneo engolindo medos pelos trilhos.

Nós detalhamos nossa praticamente morte e ressurreição.

Qual o jeito de chegar em Nicorvo sem sentir medo não ficou sabido.

Quando voltamos pelas ruas silenciosas, apreciando a paisagem com olhar de sobreviventes, nos parecia que o cachorro bravo estava sonhando com a namorada. O dia assustado pelo furacão, pelo trem caquético, pelo risco de não termos onde dormir e pela sombra da fome fora neutralizado pela noite no cenário de sallon que redimia os pecados da cidade-bicho.

Não demorou para pegarmos no sono que nos repararia para seguirmos rumo à próxima aventura.

Nosso destino do dia seguinte, Mortara, tinha no nome algo de funesto…

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

Este viajandão baseado em fatos bem reais é a quarta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Vercelli a Nicorvo, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Fio Maravilha, clique aqui