Categoria: Palavreiros

Seção com crônicas de convidados do blog

Vício inerente

REGIS MARTINS

Chet Baker was a gifted trumpeter and jazz icon.

Estava eu pensando sobre o que escrever para os leitores do Palavreira, quando dia desses assisti a um filme baseado na vida do trumpetista Chet Baker (1929-1988), com o Ethan Hawke no papel principal. O título é muito bom – “Born to Be Blue” – nome de uma das canções mais famosas do jazzista, mas o longa em si não tem nada de excepcional. Apenas correto.

O fato é que Chet era um talento raro e, galã, foi considerado o James Dean do jazz. Tinha o mundo aos seus pés, porém, era um junkie inveterado e deixou um rastro de destruição por causa do vício.

Todo mundo tenta ajudar o cara, mas é um caso perdido. Na verdade, o que me chama a atenção nisso tudo, e até me assusta, é o tipo de autoconsciência de certos viciados.

São pessoas carismáticas e inteligentes que, conhecendo bem sua natureza, sabem que não vão sobreviver sem a droga. E vão se autodestruindo lentamente, numa grande valsa do adeus.

No começo do filme, sua namorada quer saber o motivo de um cara como ele se tornar um viciado. “Problema com os pais?”, ela pergunta.

“Não, nada disso”, responde Chet/Hawke e emenda: “É porque eu gosto de ficar doidão”.

Bom, essa é basicamente a resposta para um grande enigma do universo. As pessoas se drogam/fumam/bebem/comem/apostam em excessos porque gostam. A compulsão é uma velha amiga nossa.

A questão é: qual o limite?

Nos filmes “Ninfomaníaca 1 e 2” do dinamarquês Lars Von Trier, o diretor usa o sexo para tratar desse tema espinhoso que é o vício. Em dado momento, a personagem principal, Joe, vai participar de uma terapia em grupo e, de repente, se dá conta de que aquilo tudo não vai ajudá-la em nada. Simplesmente porque o vício faz parte de sua natureza. A busca pela cura era como uma negação de si própria. No final das contas, Joe aceita sua situação, a “fratura” que compõe sua alma, consciente de suas consequências.

Chet tinha consciência também, e pagou caro por isso. Devastado pelas drogas, morreu sozinho em Amsterdã, aos 58 anos, depois de “despencar” da janela de seu apartamento.

Reconhecer nossos demônios é um grande passo. Sobreviver a eles são outros quinhentos. E segue o barco!

 

(*) Regis Martins
Jornalista, músico, pai da Marina, avô da Helena e ‘palavreiro’
cultural de mão cheia


 

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VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

Velho telefone mudo

LUÍS FERNANDO LARANJEIRA *

Há muito aquela casa já não era mais minha, apesar da herança. Foi lá que nasci, cresci e dela saí com o firme propósito de nunca mais voltar. Durante muitos anos fui “visita” naquele imóvel construído com tanto sacrifício por meu pai, resultado de todas as suas economias, primeiro pra comprar o terreno, depois pra levantar quarto e sala e ir aumentando conforme minha irmã e eu crescíamos.

Um quarto pra ela que, mais velha, não gostou nada de dividi-lo comigo quando eu, ainda pequeno, não tinha mais espaço no berço que herdei dela própria. Um quarto pra mim quando comecei a crescer e já não dava mais pra dividir com uma menina. Tempos depois, minha mãe quis aumentar a cozinha e desfrutar de uma copa. Ruim pra mim que perdi uma parte do quintal onde, tantas vezes, sozinho, minha imaginação criou um campo de futebol, pista de atletismo, florestas, desertos, onde montava o forte apache – os índios sempre ganhavam as batalhas. Ali, vivi inúmeras aventuras na minha então cabeça tão criativa.

Hoje, um cinquentão, meio jornalista, meio professor e desejando ser artista, sinto falta de tamanha imaginação e capacidade de criar ambientes que, na minha cabeça sonhadora de moleque pobre do interior, criava num pequeno espaço cimentado cercado pelos muros das casas do seu Otacílio e do seu Jurandir e a parede da casa do seu Waldemar. Ali era meu mundo. Um mundo povoado também pelo Céca ou Séca, um vira-latas que eu levava pra passear todas as tardes e foi um inseparável companheiro na infância; e, posteriormente, pelos gatos Simone, Nego, Zacarias, Menina, Bola.

Fora de meu território, havia as brincadeiras na rua com os moleques da vizinhança. Bicicleta, gol a caixão, bolinha de gude, bafo, bets, soldado e ladrão, pipa, carrinho de rolimã, mana mula, jogo de botão, horas e horas de conversas jogadas fora sob a sombra da árvore em frente à casa de seu Otacílio. Isso sem contar que todos os terrenos próximos eram impecavelmente roçados e limpos para nossos jogos de futebol.

Mais tarde, passei a ocupar também um canto da sala, junto à sonata. Ali, eu fazia a programação musical e noticiosa de minha emissora de rádio imaginária. Meu pai gostava de ler o Diário da Noite ou a Folha da Tarde e era desses jornais que eu tirava a pauta do meu programa jornalístico, sempre mesclado com muita música e até uns efeitos sonoros. Eu era pauteiro, contrarregra, âncora, repórter, redator e editor ao mesmo tempo. E fazia também rádio escuta com o ouvido colado no radinho de pilha que meu pai utilizava pra ouvir os jogos da Ferroviária e do Corinthians.

A chegada, finalmente, do telefone coincidiu com minha entrada na adolescência. As prioridades e interesses foram mudando. Novas amizades, as primeiras paixões, novas fantasias. Horas trancado no banheiro. E o telefone passou a ser item obrigatório, de primeira necessidade. A expectativa pelo toque, esperando pra um papo-cabeça com algum amigo ou as palavras doces da namoradinha de então.

Está lá até hoje o telefone, no mesmo lugar. O mesmo aparelho, feio, pesado, daqueles de discar, de cor gelo desgastada pelo tempo. Quantas recordações. Quantas conversas. Quantas articulações e mobilização pela revolução, quantas declarações de amor. Até brigas.

Agora, tantos anos depois, no retorno àquela casa que tão pouco mudou, carregando uns cabides, caixas de sapato e de livros e CDs, me pego observando o que restou do quintal, as velhas portas, o corredor que já me pareceu imenso, o antigo quarto; e sofro por não conseguir me lembrar de tantos outros momentos, tantas outras coisas e acontecimentos que foram marcantes, alegres. Alguns tristes também. Quantos sonhos, planos, decepções. Aos poucos, volto a me sentir bem nesta casa.

Me pego caminhando a esmo pelos aposentos tão conhecidos. Paro, observo as maçanetas já um tanto enferrujadas, as velhas torneiras, antigos móveis, os cantos onde me aninhava ou gostava de ficar sonhando ou escrevendo minhas primeiras mal traçadas linhas ou ouvindo velhos discos. A cozinha me traz de volta minha mãe preparando a comida e me dando dicas de como fazer esse ou aquele prato; alguns, até me arrisco a fazer hoje e chego a receber elogios pelo sabor, tempero ou textura.

Vejo-me envolto em recordações e fazendo novos planos. Às vezes, baixa em mim o garoto sonhador que, como Cazuza, queria mudar o mundo ou viajar sem rumo, apenas pra conhecer novos lugares e pessoas, ouvir histórias e contar as minhas. São boas tais recordações, me trazem sentimentos e emoções há muitos esquecidos, que pensava até já ter perdido. Em determinados momentos, a sensação é de estar flutuando nessa velha casa, flanando descompromissado. Mas também sonho e tento projetar o que pode vir a ser o futuro.

Só o que me entristece é que aquele velho telefone que já foi tão importante, tão cheio de significados, não toca mais. Está mudo.

 

(*) Luís Fernando Laranjeira
Jornalista, professor, piadista, anfitrião caloroso, pai do Vitor e do Thiago e
“companheiro de trincheiras”


 

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Fora da Caixa (*para a Rosana)

CARMEN CAGNO **

Íamos os três apertados no banco da frente do Gordine. Eu no meio, meu amor dirigindo e o amigo poeta do outro lado. Abraçados, cantávamos alguma coisa do João Gilberto. E mais uma vez transgredíamos. Minha família proibira aquele namoro fora da caixa. Afinal, ele era músico e nem de longe se assemelhava a um dos inúmeros “bons moços” indicados para uma adolescente burguesinha.

Eu devia ter 16, 17 anos e desde que me lembrava sempre estivera fora da caixa.

O que não dava pra explicar aos que estavam do lado de dentro era a felicidade, a liberdade daqueles dias. Amávamos intensamente, descobríamos o desejo a cada minuto, nos perdíamos em poesia, encontros musicais e corríamos num raro fio de sensibilidade e encantamento.

Eu escrevia versos nos guardanapos de papel em cada um dos barzinhos que frequentávamos religiosamente, inaugurando a sagrada devoção à boemia. Noites inteiras de papo, música, trocas, laços cada vez mais apertados.

Esses eram nossos rituais sagrados. Desistira da religião havia alguns anos, desde que minha avozinha querida e profundamente crente não conseguira me explicar por que eu devia me enfiar num confessionário semanalmente para falar de pecados que não tinha. Por que não podia me entender diretamente com aquele Deus tão onipresente.

Compor músicas, entregar-me sem culpa ao desejo que pulsava, cultivar com carinho cada pequeno pedaço de afeto. Tínhamos uma alma limpinha e ainda não havíamos experimentado as dores de sermos tão humanos.

Isso foi antes da política, da ida pra cidade grande, do fecundo percurso profissional, da independência, da formação intelectual, da repressão política, das passeatas aos gritos de liberdade, dos amigos mortos e torturados, do mergulho em outros amores, da vida que continuaria pulsando e me entregando presentes cada vez mais valiosos – para o bem e para o mal.

O caminho tortuoso, cheio de surpresas e descobertas, foi uma escolha natural, orgânica, sem a segurança previsível dos que seguiam pela estrada principal – aquela asfaltada, reta, certeira, povoada  de setas e avisos, com destino conhecido. Mergulhar para dentro da vida sem paraquedas era criar asas cada vez mais poderosas; era o frio na barriga e, às vezes, um tombo cheio de arranhões e cicatrizes. Mas nada nesse mundo valia a emoção  do voo. Nada descrevia a sensação de planar e descobrir paisagens.

Hoje eu olho pra trás e abençoo essa narrativa que tem contado minha vida. Na maioria dos capítulos continuo a construir uma história meio na contramão. E agradeço diariamente por esse privilégio quando olho pra minha filha e me orgulho do que vejo; quando abraço meus amigos que percorreram esses caminhos; quando me entrego a um amor com a inocência e a inteireza que sentia no banco da frente do Gordine, há mil anos atrás.

 

Carmen Cagno
Jornalista, escritora, professora brilhante, palavreira incomparável
e amiga querida da vida toda


 

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solidão

THIAGO ROQUE *

os vizinhos não sabem dizer quando começou.
gostam da solidão. velhinha quieta, na dela, faz mal pra ninguém.
anda pra cima e pra baixo com uma dessas ecobags.
o que encontra, coloca na sacola. e leva pra casa.
garrafa pet, lata de alumínio, cafuné na cabeça.
sapato velho, risada vencida, papelão.
alegria rasgada, bola furada, pente quebrado.
cabe na sacola? entra sem pedir licença – na sacola, na casa, na vida da solidão.
não demorou para o sobradinho virar um amontoado de objetos.
objetos que você olha. que você sente.
tudo sujo, sem brilho, com validade vencida.
tudo dado por vencido.
no começo, solidão até tinha um espacinho pra cada item.
na caixa vermelha, por exemplo, guarda os cumprimentos.
muitos deles gritados, sinceros, motivo de orgulho.
abria aquela caixa todos os dias, num ritual quase cristão – com direito a sinal-da-cruz.
vieram mais objetos. mais caixas.
mais.
ah, as caixas da solidão…
cores, tamanhos, conteúdos. guardam tudo – até um pouco de vida.
afinal, o que ia pra caixa era o que se perdia na cabeça e já não cabia mais no coração.
com o tempo, tudo foi desbotando.
caixa, cumprimentos, sinal-da-cruz.
ganharam aquele tom borrado da paleta esquecimento.
tão fora de moda…
quando solidão se dá conta, está tudo junto, dividindo caixas e angústias.
parece tudo um desespero organizado.
um desespero só.
de cartão de visita a memórias.
de disco antigo a desprezo.
de bem-querer a revistinha de horóscopo.
aliás, solidão é de libra.
do signo a velhinha corpulenta lembra.
quer dizer, lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
por isso, guardava tudo.
para lembrar. para tentar lembrar.
para que fossem lembrados.
o primeiro beijo, a primeira camiseta dos stones, o primeiro amor, o primeiro filho.
muitos primeiros. vagas lembranças.
ora, devem estar pela casa. onde? nas caixas – onde mais?
não podem morrer. não podem subir na boleia do tempo e partir sem olhar pra trás.
não podem. não.
mas, com frequência, acontece.
então, solidão vai para as ruas encontrá-los de novos.
de sentimentos a sachê de mostarda.
amarelos feito as caixas dos documentos.
ou ficam na caixa marrom?
lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
mas não reconhece nada. ninguém.
tudo parece estranho. tudo parece diferente. tudo parece frio demais.
mas sabe que tem algo ali. é questão de lembrar. é questão de viver.
e, assim, a sacola se enche.
muitas vezes, solidão precisa das duas mãos para dar conta do peso de seu destino.
sim, o fardo é pesado. ela não liga.
evita pedir ajuda. as pessoas não entendem porque precisa de tudo aquilo.
não entendem o que é segurar nas mãos algo que perdeu lá atrás – e continuar incompleta.
procurar, em cada lápis, cada latinha, cada fagulha de sofrer, uma peça do quebra-cabeça.
em casa, parte da sacola vai para as caixas da solidão.
parte se esconde pelo chão, aos olhos de quem prefere não ver.
parte se recusa a deixar a sacola.
sabe que será outro no dia seguinte.
sabe que será essencial. que solidão vai precisar.
e ela sempre precisa.
e sempre sorri quando enconta algo.
revira lixo. pega algo. sorri. põe na sacola.
ajoelha. limpa algo. sorri. põe na sacola.
folheia o jornal. vê algo. sorri. põe na sacola.
solidão também acumula sorrisos.
por isso que todo mundo gosta da solidão.
velhinha sorridente…
parece sempre estar de bom humor.
talvez esteja.

 

(*) Thiago Roque
Jornalista e palavreiro sofisticado, tenta escrever um livro há mais de 15
anos – quem sabe agora…


 

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Quando as pessoas eram mais iguais

BLANCHE AMÂNCIO *

Nasci numa cidadezinha que amei – e amor não acaba. Pelo menos não deveria. Auriflama era um lugar onde todo mundo conhecia todo mundo, e disso já se conclui que, como seres humanos que somos, aquilo parecia uma grande família italiana.

Nos anos 1950 minha mãe bebedourense tinha concluído o Magistério e sonhava com uma classe lotada de alunos. Na época, onde o Estado tivesse aula disponível as professorinhas abraçavam com boa vontade. E foi assim que ela atravessou o interior paulista para parar na região da Vila Áurea. Chegava a atravessar rio a cavalo para lecionar nas fazendas.

A família do meu pai era de Araçatuba e tinha a Fábrica de Colchões Silva, a Fábrica de Ladrilhos Silva e meu tio Lázaro Silva foi o primeiro prefeito de Auriflama, em 1965. Mas isso é outra história. Fui criada lá.

As classes tinham aquelas carteiras pesadas de madeira e ferro e os alunos sentavam-se sempre em dupla. Era o filho do prefeito com o filho do coveiro, o filho do juiz com o da professora. Isso nunca mais vai acontecer!

Apelido? Não havia o maldito bullying, então a criatividade corria solta: Burralê para Alexandre, Pimentinha e, se até o final desta minha escrita me ocorrer outros, citarei.

Fora das classes, a simplicidade não incomodava os novos deuses. Eu entrava na sala do juiz, de chinelos e pedia para ele assinar minha autorização de viagem – pois viajava 3 horas aos sábados para estudar piano em outra cidade. “Minha filha, você precisa pedir para seu pai assinar este documento”. “Sim, senhor, só um minuto porque meu pai está lá fora”, eu respondia. No corredor, eu mesma fazia a assinatura e entrava na sala de novo, desta vez com o documento corretamente preenchido.

Não havia restaurantes. Só um para viajantes. No açougue, na venda, na quitanda, uma cadernetinha bastava. Na volta da escola, o dono da padaria dava bala para as crianças. Os estudantes mais ousados entravam na casa da professora e olhavam as perguntas da prova que seria aplicada no dia seguinte.


“Eu entrava na sala do juiz, de chinelos e pedia para ele assinar minha autorização
de viagem – pois viajava 3 horas aos sábados para estudar piano em outra cidade”


Por muito tempo, na Rua Feliciano Salles Cunha, uma das principais, os boiadeiros passavam com suas boiadas e seguiam embora. A vizinha, de vez em quando, fazia um terço que, para criança, não acabava mais. As eleições pegavam fogo! Ai de quem fosse contrário a alguém. De qualquer forma, você sempre levava paulada.

Os passeios eram nas cachoeiras. Nos anos 1970, você pedia um telefonema interurbano para a telefonista, na central telefônica – diga-se de passagem, uma casinha superapertada que só cabia mesmo a telefonista, o telefone e o cliente. Lá pelas tantas, a mulher avisava a família que tinha conseguido completar a ligação. A mãe descia em bloco, correndo pela rua, com os filhos atrás, para falar com um parente distante.

Coitado de quem fosse o alvo da frase “me espera na saída”. As festas das escolas atraíam toda a cidade – quermesses, desfile da fanfarra e outras comemorações cívicas. O padre pressionava as crianças encapetadas para se confessarem: “matei aula”, “joguei ovo no colega da classe”. Eram pecados gravíssimos.

Certo dia chegou o primeiro bandido na cidade – muito amador, por sinal. A molecada, eu inclusive, ficava na esquina da delegacia espiando e esperando para ver a cara desse bandido, certamente um ladrão de galinhas. Os encapetados subiam nos muros dos vizinhos e simplesmente cortavam o varal – lembrando que lençol naquela época era de algodão e olhe que tinha os de linho, e tudo branco, os quintais de terra, quando muito, grama. Daí que se conclui que isso sim era quase terrorismo.

Nem tudo era tanta pureza, mas as pessoas eram mais iguais. Não havia digital influencer. Eu nunca entrei de salto na sala do juiz. Todo mundo jogava queimada. Professor era respeitado. Autoridade não era Deus. Amizade era para sempre. Tal qual hoje.

 

* Blanche Amancio
Jornalista e empresária na Texto & Cia. Comunicação, coralista de
orquestra e ‘mãe’ da gata Velminha


 

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O amor incondicional dos ipês e outras árvores

ELIVANETE ZUPOLLINI BARBI *

Embevecida pelos ipês amarelos, brancos, rosas que, neste ano, atraíram nossos olhares e provocaram uma competição extraoficial de fotos e selfies nas redes sociais, também fui assaltada pela intensidade da natureza que continua desafiando os homens e mostrando seu indomável poder – para o bem e para o mal.

Dias desses, a caminho do trabalho, numa rua comum, com buracos, matos e lixo, dois ipês rosa empinhocados desafiavam os postes de cimento, cabos e fios que fazem das ruas brasileiras um emaranhado feio como a política nacional. Explodiam, sem pudor, dezenas de buquês, centenas, talvez milhares, de pequenas flores capazes de emocionar corações moles, arrancar suspiros profundos e pendurar pontos de interrogação em mentes que só fazem pensar.

Além da genética, da botânica, das condições climático-ambientais, o que são os ipês? Por que florescem tanto nessa Ribeirão marrom e seca? Nasceram com a missão de nos ensinar a dar o melhor, incondicionalmente? Para além de Darwin, qual o mistério criador e evolutivo que reuniu neste planetinha Terra – uma insignificante poeira nas galáxias infinitas – tanta beleza, generosidade, esplendor, perfeição?

Não se trata aqui de uma reflexão teológica, filosófica, nem mesmo existencial, pois me falta competência. Nem mesmo armas de poetas tenho eu para, num tecido “palavreiro”, denunciar as reais intenções dos ipês. Mas, que há intenções ali, há. E são divinas!


‘É uma beleza deusa que se veste com seda, projeta
sua maestria, executa a mais sublime sinfonia’


É uma beleza deusa que se veste com seda, projeta sua maestria, executa a mais sublime sinfonia. A mesma deusa simplesmente dá. No seu tempo. Não espera. Segue seu instinto, seu ritmo. Ama sem moeda de troca. Num movimento constante, cresce, se renova, perde folhas, brota novos galhos. Floresce. E nos dá a sensação de que, ao passarmos sob aquela tenda rosa de flores, estamos abençoados. Eis a natureza deusa cumprindo sua missão.

Diante da natureza dos ipês, botânicos, ambientalistas, poetas, garis e jardineiros têm diferentes definições. Para mim, eles são deuses, por definição de meu pai. Aliás, árvores, em geral, são verdadeiras entidades. Daquelas bem xamânicas ou iorubás, que fazem a ponte entre a terra e o céu com uma facilidade estonteante. Nem se importam se estão no cerrado ou na floresta. Estão. Não perguntam de onde vieram, para onde vão, se têm mérito, se são o povo escolhido. Não sentem culpa por suas raízes arrebentarem as calçadas. Não questionam se são amadas ou cuidadas. Amam. E se dão. Inteiras.

 

* Elivanete Zuppolini Barbi
Jornalista, professora universitária, palavreira
modesta e amiga querida

 


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O Silêncio da Madrugada

CAROLINA S. PEGORINI *

“É estranho pensar no quanto a gente muda com o passar dos anos”, ela refletia, enquanto fitava as estrelas.

Sejam grandes mudanças na personalidade ou singelas mudanças de atitude no cotidiano, fato é que quase ninguém passa pela vida sem se modificar num ou noutro aspecto, em maior ou menor grau.

Por exemplo, quem diria que ela, que gostava de chegar em casa com o nascer do sol e costumava considerar que um final de semana sem sair à noite era um final de semana perdido, desperdiçado, não vivido, viria a tornar-se caseira, introspectiva e quase sem vontade de ver outras pessoas?

Não, ela não havia envelhecido, tampouco sabia dizer com precisão o instante e o motivo exatos em que essa transformação ocorreu. Só sabia que, aos poucos, foi aborrecendo-se e perdendo a vontade de cumprir aquele ritual clássico das sextas e sábados de equilibrar-se num salto fino, entrar num lugar lotado, ouvir música alta, socializar com os mesmos de sempre e procurar afinidades em quem acabara de conhecer.

Cansou-se dessa rotina. O interesse pelas noitadas na rua havia se dissipado sem maiores explicações. “Acho que foi um processo gradual. Aquelas noites em claro eram cheias de ruído… ruídos vazios e ensurdecedores, na maioria das vezes”, ela pensava.

Entretanto, uma coisa permanecia inalterada: seu encanto pela madrugada. Ficar em casa não significava ficar dormindo. Debruçada na janela do quarto, contemplava o céu noturno, as estrelas e a luz do luar que clareava a exuberante natureza ao redor. De vez em quando descia as escadas e rumava ao jardim, deitava-se no gramado e admirava a beleza do firmamento. Os únicos sons audíveis eram o farfalhar das folhas das árvores sacudidas pela brisa, o cricrilar dos grilos e um ocasional bater de asas de algum morcego errante. Por vezes, os pingos de chuva que batiam no telhado, nas vidraças e nos canteiros compunham uma melodia agradável e propícia ao sossego de sua mente.

Mas o que mais reinava nessas horas era o silêncio, o sagrado e limpo silêncio imaculado, não poluído pelos incômodos barulhos urbanos presentes nas horas do dia. O silêncio era um companheiro invisível que apresentava momentos perfeitos para a reflexão e a autoanálise. Isso só era possível devido à quietude que apenas as madrugadas proporcionam. Estando em casa ou na rua, ela era notívaga convicta, acreditava que esta característica era imutável e que a acompanharia até o fim.


‘Debruçada na janela do quarto, contemplava o céu noturno, as
estrelas e a luz do luar que clareava a exuberante natureza ao redor’


Porém, quando era um pouco mais jovem e sua alma ainda fervilhava diante das incontáveis atrações que o mundo lhe oferecia, não queria saber do silêncio. Considerava-o enfadonho e desinteressante, coisa de gente insossa, que não buscava novidades e se conformava com o tédio. Pouco compreendia quem pensava de outro modo; na verdade, sequer fazia questão disso. Sua ânsia de viver intensamente combinava com volume alto, com velocidade, com múltiplos estímulos que a cercavam sem deixar espaço para o discernimento.

Conforme o tempo passou e sobrevieram as lições preciosas que a vida ensina na marra àqueles que não aprendem por bem, ela finalmente percebeu que precisava pensar. Pensando, compreendeu que seria prudente afastar-se. Afastando-se, constatou que necessitava de uma pausa. E então notou que o mar de ruído em que estava imersa vinha, há muito, impelindo-a a voltar-se somente para o exterior. Sua cabeça confusa e exausta lastimava, pedindo uma mudança. Resolvida, buscou o silêncio e encontrou na madrugada o seu refúgio amigo.

Agora, anos depois, ela está em paz. Meditou, redescobriu-se, reconheceu-se. Passou a apreciar a própria companhia. Continua tendo a rotina de trabalho-estudo-família-lazer, como manda o figurino, mas seu olhar está diferente. Mudou o foco, e, por isso, achou bom mudar também de endereço. Valorizou a simplicidade. Aprendeu que nem tudo o que reluz é ouro, e que não precisava de muito para sentir-se feliz. Também aprendeu a falar menos e ouvir mais. Os hábitos tão arraigados foram perdidos sem muito esforço, como uma roupa que já não serve e da qual ela nem sente falta. As antigas dúvidas foram respondidas e deram lugar a novas perguntas, no ciclo infinito de busca que move adiante a humanidade.

Ao cair da tarde, ela volta para casa e tira os sapatos. Troca o apertado traje social por um vestido leve e confortável. Desliga o celular. Solta o cabelo e senta-se no sofá da varanda, apreciando o pôr do sol. Fecha os olhos ao aspirar o perfume das flores de bergamoteira e ouve o gorjeio dos pássaros que se empoleiram nos galhos, despedindo-se da luz do dia. O vento suave embala suas reflexões e, vencida pelo cansaço da semana, ela adormece sem perceber. Quando desperta, vê o luar banhando o jardim: as horas se passaram e a lua nasceu, por trás da casa, tingindo o cenário de branco azulado. Ela se levanta e desce os degraus, caminhando descalça pelo gramado. O único som que pode ser ouvido é o de sua respiração; até o vento cessou. Ela sorri. O silêncio chegou.

 

* Carolina S. L. Pegorini
Palavreira e leitora de bom gosto, apreciadora de toda forma de arte e,
como muitas de nós, nascida por engano com um ou dois séculos de atraso

 


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Efêmera

ELY VIEITEZ LISBOA *

O Criador chega perto de suas criaturas no pátio do Limbo. Estão sonolentas, enoveladas, em latência, à espera do vir-a-ser. Toca com indicador em Efêmera. Ela se abre em flor, espreguiça-se, bela, nua, pura. Os olhos azuis veem o Criador.

– Que quereis de mim?

– Tu vais ao mundo lá embaixo, em missão especial. Tens um dia para te tornares adulta, sábia, encontrares um parceiro, ficares grávida, deixar lá teu filho e voltar.

– Um dia?!

– Não te preocupes; é no meu calendário. Lá, os homens marcam o tempo de maneira complicada e não muito eficiente, com minutos, horas, dias, semanas, meses, anos.

Efêmera cobre os pequenos seios claros, firmes, os mamilos róseos. Depois as mãos longas descansam no colo, como folhas justapostas. Vira-se para o Criador. Os cabelos muito claros reluzem, trespassados de sol.

– Quando devo partir?

O Criador nada responde; com um simples aceno de mão dá a silenciosa ordem.

Efêmera, aureolada por uma energia azul, vai desaparecendo. Surge lá embaixo, na terra dos Homens, em um trigal, pintalgado de papoulas. Ama a cor do trigo, que se mistura com o dourado de seus cabelos. Acaricia as pétalas das papoulas magriças, equilibrando-se sobre os caules frágeis. Efêmera caminha entre os trigais, passa por um regato límpido. Para, encantada: a água é prata líquida, escorrendo sobre as pedras limosas. É belo o mundo dos Homens! Pouco adiante, a macieira pejada de frutos mata-lhe a fome, o caldo doce, de gosto bom, descendo-lhe pela garganta. Efêmera procura as grandes estradas que a levarão aos Homens, onde está o seu destino, a missão. À noitinha, cansada, repousa perto de um caramanchão de buganvílias coloridas, que se esparramam sobre um grande muro de pedra. Do outro lado estão os Homens.


“Efêmera, aureolada por uma energia azul, vai desaparecendo. Surge lá embaixo,
na terra dos Homens, em um trigal, pintalgado de papoulas. Ama a cor do trigo”


Quando entra na Vila, todos se espantam com o insólito de sua nudez, o exagero da beleza, o translúcido de pela alva. Ela caminha vagarosamente e vai sentar-se sob uma figueira centenária. A vida na pequena aldeia muda. Todos vão lá para vê-la, os homens a desejam, as mulheres a odeiam. Só as crianças e os cães a recebem normalmente, com carinho, e estão sempre aos seus pés. O chefe da Comunidade presenteia Efêmera com um manto azulado, quase tão belo quanto seus olhos, manda-lhe joias, manjares finos. Ela aceita o manto. Para se alimentar, prefere figos e amoras sumarentas que as crianças lhe trazem.

Como tudo na vida, o povo acostuma-se à presença de Efêmera. Ela espera, calma, porque sabe. A hora certa de realizar sua missão está próxima.

É ao entardecer do sétimo dia, no calendário dos Homens, que Sore chega. Vem das montanhas. Entra na aldeia, belo, alto, o largo peito nu, os ombros cobertos de peles. Os cabelos vão até os ombros e são escuros como seus olhos grandes. As mãos enormes seguram o bastão real; ele é o sucessor, o príncipe. Seus pés o levam até a figueira. Olha para Efêmera com o deslumbramento das surpresas únicas, o coração batendo acelerado. Ela, ereta, sorri, atraindo-o como um ímã. Deixa cair aos pés o manto. Estende-lhe a mão. Sore encontra sua companheira, ele, o guerreiro mais cobiçado por todas as mulheres.

Envolve-a com os braços, misturam-se os cabelos, os dois corpos se juntam. Deitam-se. Sore cobre-a com a doçura das brisas e rega seu ventre com o néctar da vida. Efêmera sabe. Uma criatura dorme no seu útero, túrgido de futuro: Ele, o Salvador. Será um guerreiro belo e forte como o pai e terá o céu nos olhos, como Efêmera. No dia certo ela se deita e espera. O filho sai-lhe do ventre. Ela o envolve com o manto real. Beija-o e parte.

Muitos anos depois, ainda contam que no dia em que encontraram a criança, uma luz azulada envolvia a figueira. Sore viera, tomara o filho nos braços e o levara para cumprir o seu destino.

Lá no alto, no calendário eterno, havia se passado mais um dia. E tudo se cumprira como se deve, nas sábias leis do Criador.

 

* Ely Vieitez Lisboa
escritora com 14 livros publicados, autora do romance epistolar “Cartas a Cassandra”, tem uma coluna dominical nos jornais A Cidade e Metrópolis, de Ribeirão Preto, no jornal Sudoeste, de São Sebastião do Paraíso, e escreve eventualmente no Linguagem viva, de São Paulo.

 


Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

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Um fusca, um húngaro e sua aldeia tropical

JANICE KISS *

Éramos uma família simples, iguais a tantas outras que viviam na cidade que ainda não havia delimitado suas fronteiras entre o urbano e o rural. Ter fazendas a curtas distâncias da casa, criar sua galinha, plantar sua própria verdura era cena comum de uma Ribeirão Preto dos anos 1970. Hoje tem até nome pomposo para isso, “locavore” – movimento que prega o consumo de alimentos cultivados localmente. Éramos vanguarda e sequer desconfiávamos.

Mas esse nosso quintal diversificado e produtivo não era nada perto do que vi tantas vezes no preferido passeio dos domingos. Quando o Fusca azul, 66, do meu pai pegava a estrada rural que levava (ainda leva?) a Santa Cruz das Posses, distrito de Sertãozinho, eu sabia que nossa hortinha era um nada e que minha criação imaginária de porquinhos era puro devaneio de menina perto da aldeia de Joseph Kiss, o tio Zé, ou o Zé hungarês, como a pequena cidade achou por bem chamá-lo.

Não sei dizer ao certo como tio Zé, um húngaro de cabelos e olhos escuros, foi parar em Santa Cruz. Ele veio da Hungria com sua extensa família antes da Segunda Guerra porque o pai, que havia passado por toda a Primeira Guerra, anteviu que épocas sombrias se aproximavam. Muito tempo depois, conclui que de certo modo ele nunca abandonou a sua aldeia do leste europeu. Apenas adaptou-a aos trópicos, onde certamente produzia boa parte do que necessitava.


‘minha criação imaginária de porquinhos era puro devaneio de
menina perto da aldeia de Joseph Kiss, o tio Zé, ou o Zé hungarês’


Tio Zé tinha um quintal gigantesco, talvez hoje classificado como chácara ou pequeno sítio. Ali havia uma vaca (pois é, húngaros não sabem brincar), um paiol para guardar milho, galinhas com vida digna (em contraponto com a criação de escala industrial de hoje), chiqueiro com porcos (os dele eram de verdade), horta e uma infinidade de frutíferas. Na farta mesa do café, tinha pão, manteiga, queijo e sei lá quantas coisas mais produzidas pela família ou trocadas com vizinhos e amigos – e há quem tenha descoberto o conceito de economia colaborativa apenas agora…

Mas Joseph Kiss jamais se sentava para conversar com os seus. Parava na mesa, tomava uma xicrinha de café e ia debulhar o milho. Voltava, comia um pedaço de queijo e ia ver a água e o sal da vaca. Para conversar com ele, só mesmo o acompanhando na expedição pelo seu universo rural, tentando compreender seu português arranhado. Coisa que apenas gente adulta fazia, como meu pai ou meu avô Alexandre (irmão de José).

Ao modo de uma criança, eu observava atentamente o silêncio dele e o admirava por ser incansável. Muitas décadas depois, essa forma de prestar atenção foi essencial para o meu ofício, muito ligado à agricultura, onde a urgência tem outro tempo e há que se ter uma prosa cuidadosa e sem pressa  para encontrar o que procura.

Quando o Fusca 66 rumava de volta para casa, havia sempre uma parada na beira dos canaviais (às vezes isso acontecia na ida). Meu pai cortava pedaços de cana para chuparmos ao longo do caminho. Nesse percurso foram sendo construídas histórias e memórias, das quais me afastei por muito tempo e hoje volto para elas, na esperança de um dia ter minha própria aldeia tropical. Será que Joseph, que há muito tempo vive em algum lugar desse universo, vai me visitar?

 

* Janice Kiss
Jornalista ligada à agricultura, meio ambiente e ao valor histórico dos alimentos. É ribeirão-pretana, vive em São Paulo e já andou muito por aí escutando e contando histórias

 


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João e o Anjo

MÁRCIA INTRABARTOLLO *

O próprio João falou-me sobre seu anjo quando tomei coragem de abordar aqueles olhos nítidos que me acompanharam desde que eu pisara ali. Olhos sem qualquer pavor pela doença.

Esquelético, exibia cabelos brancos rareados pela ação do tratamento e tinha um aspecto geral frio. Vinha de uma cidade pequena, sua cidade natal, e agora dormia com cinco estranhos em beliches, com a privacidade preservada por cortinas de lençóis. Antes de ser abrigado ali, sua rotina resumia-se a sentar-se no mesmo banco da praça quase sempre no mesmo horário, e esperar quem sabe os antigos amigos da lavoura para fazerem nada juntos.

Sua vida não prometia nenhuma aventura que não fosse a morte, até a manhã fatídica em que escutou uma música vinda de longe, a música de que ainda não se esquece, melodia de sua vida e de seu fim.

Como já não confiava em sua audição, fez concha no ouvido para certificar-se de que não escutava coisas, mas não. O som que vinha era animado, pondo-o em alerta. Endireitou-se no banco da praça e esticou o pescoço pela possibilidade do que veria, com lembranças empoeiradas saltando na memória… mas as crianças, rápidas, adivinharam a surpresa e estavam alvoroçadas com o caminhão colorido e barulhento que dobrava a esquina cheio daquela gente de circo. Gargalhavam. João sorriu, contaminado.

Mas surpresa digna de uma parada cardíaca ele teve mesmo quando viu descer do caminhão um anjo. Esfregou suas cataratas. Nem em seus maiores devaneios pensava ser possível um anjo integrar um circo, ainda mais um como aquele, o mais bonito. Iluminado e exótico, o anjo desceu com destreza da carroceria, olhou fixamente para João e seguiu decidido em sua direção.

Não devia ser com ele… provavelmente o anjo se dirigia a outra pessoa… mas observou ao seu redor e viu que todos já tinham corrido para o caminhão e ele estava só. O anjo continuava a olhá-lo fixamente e a seguir em sua direção. Menos de meio quarteirão os separava.


‘Mas surpresa digna de uma parada cardíaca ele teve mesmo
quando viu descer do caminhão um anjo. Esfregou suas cataratas’


Seu entorno escureceu. Via apenas o anjo andando com um foco de luz acompanhando seus passos cadenciados. Como por milagre, a vida ficou completamente silenciosa e desfocada, não havia depois nem houvera antes. João gelou: era chegada sua hora.

Enquanto os cabelos longos e ondulados se desmanchavam com o vento, o anjo balançava os quadris. Usava sandálias prateadas de salto alto, e suas longas pernas eram cobertas apenas pela meia quadriculada bege e a saia curta brilhante. João adorou sua boca vermelha como não convém. O anjo andava como quem flutua e sorria para João. Ele sorria de volta, olhos fechadinhos de tanto.

Havia vivido sua vida acostumado a ser menos em tudo, suando com o trabalho árduo, o estudo nulo, a comida medida, a mulher, a penca de filhos e uma feiúra doída. Viveu como quem pedia desculpas, sem direito de sonhar. Até de si mesmo escondia seu mais íntimo desejo, porque era pecado impossível, mas no fundo dos lençóis imaginava uma loira, ah, tão bonita, uma loira como aquele anjo. Ele tinha o rosto da mulher desejada, e como poderia estar tão ao alcance de suas mãos enrugadas? Que última ironia da vida aquele rosto tão sonhado ser o do anjo que vinha buscá-lo! Morrer agora, isso sim, seria um pecado.

O anjo ajoelhou-se. Pôs as mãos nas pernas de João e aproximou seu rosto perfumado. Sussurrou. O velho coração tremia, e o corpo, ah…

Não teve conflito algum, assentiu com a cabeça. Obedeceu. Então o anjo beijou seu rosto e lhe estendeu a mão, que João tocou suavemente. De olhos molhados e sem uma única palavra, foi conduzido até o hotel de viajantes em frente à praça. Ali, o anjo se despiu e amou João em troca de sua aposentadoria.

Quando contava sua história, os olhos convalescentes do velho se emocionavam. Havia dois anos que fora expulso de casa, restando-lhe as lembranças, o abrigo na cidade grande, a doença fatal e a falta dela.

João não sentia tristeza pelo abandono ou por viver seus últimos dias entre estranhos. Não importava a doença, dores ou a morte que espreitava… grande coisa! O HIV tinha o sabor permanente da realização de seu sonho. Sentia uma falta sufocante da sensação que o anjo lhe trouxera naquela cama de hotel, e que queria de novo ainda que o preço fosse viver suas dores dobradas e penitências torturantes.

O que importava a João era que em uma manhã de sol de sua vida neutra, um lindo anjo loiro esteve em seus braços não merecedores. Para reviver aqueles medidos minutos, viveria outra vez seus secos setenta anos.

A vida inteira cabe em instantes.

 

* Márcia Intrabartolo
Jornalista, escritora nata, amiga do coração e recordista de audiência entre os ‘palavreiros’ convidados do blog com sua crônica
Take a Photo, My Love


 

 

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