Luto

Amanhã faz um mês que o Nando nos deixou nesta dimensão da matéria bruta. O que aprendi sobre luto neste tempo é que ele pode subsistir mesmo subjugado por forças maiores – a da fé de uma mãe, a espiritual de um irmão e a de vontade de uma cunhada. Ele fica ali, nos observando pelos vãos das rotinas que construímos em nossos cotidianos para nos sentirmos seguros… pelas frestas dos automatismos que nos faz sentir protegidos.

Mas todos esses escudos são ilusórios. Sei disso porque o luto consegue nos alcançar através deles, aproveitando-se de falências típicas desse uso contínuo das rotinas. Por exemplo: quando ouvimos uma música antiga, escapa do Márcio uma afirmação no tempo presente: “O Nando adora essa música”.

E nos lembramos.

Na chegada a Ribeirão vindo de Jaú, Márcio atende ao automatismo de enviar os avisos de que chegara bem… e lembra-se de que agora será sempre uma mensagem a menos.

E na última vez em que enviei uma foto impagável do gato Loki – apadrinhado de Nando – ao Márcio, deixei escapar a digitação de uma frase inteira fora de tempo: “Mostra pro Nando”.

E cada lembrete é como se estivéssemos nos inteirando por “outra primeira vez” dessa desarrazoada, inacreditável e injusta verdade.

O adeus a alguém que não fomos apropriadamente preparados para perder é falho. Soa mentiroso, descabido… tão irreal que, na maior parte do tempo em que nos mantemos distraídos pelas rotinas, nossa consciência periférica acredita que ele continua lá onde sempre esteve… que estamos a uma mensagem de Whatsapp de distância… que sempre ouviremos, quando em Jaú, sua chave abrir o portão da varanda para entrar na casa da mãe pela cozinha, onde tudo em família acontece.

Mas então sintonizamos novamente a consciência… e nos lembramos!

E o luto segue assim… nos assustando o tempo todo, flechando nosso coração toda vez, enquanto insistimos em seguir nos desincumbindo de todo o resto desimportante da vida.

E a saudade segue assim… sem revolta, sem desespero, a conta-gotas, umedecendo um e outro momento de uma tristeza mansa, resignada, sem luta.

E a vida simplesmente segue…


FERNANDO LUIZ PELEGRINA
15/3/1965 – 11/8/2017
Filho, marido, irmão e cunhado amado
Para sempre em nossos corações.

5 comentários

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    • Elivanete Zuppolini Barbi em 10 de setembro de 2017 às 12:08

    Linda crônica, apesar de dolorosa. Sensível, delicada e amorosa. Sem contar o texto, maravilhoso!

  1. Excelente texto.. realmente é difícil mesmo para quem pensa que está preparado pela ausência física de quem muito amamos…mas o importante é termos vivenciado grandes experiências, enquanto nesse plano
    A vida realmente segue tanto nessa matéria bruta quanto em quanto na espiritualidade , sempre na certeza que nunca estamos sozinhos

    • Nivaldo em 10 de setembro de 2017 às 10:08

    “Mansa, resignada e sem luta”.
    Na frase acima, bem distante da apatia, se expressa uma dinâmica intensa, a arte de viver a vida da posição de quem aprende a compreender, sem frieza e sem apego, o mistério da vida. Não há dogmas, palavras são a expressão imprecisa dos aprendizados que recebemos enquanto partilhados do milagre da vida. A arte é um veículo da expressão humana livre, sincera, sem nada a esconder, o aprendiz desnudo que se molha na chuva da vida.

    • Regina Oliveira em 10 de setembro de 2017 às 09:47

    O adjetivo soa meio dissonante diante da motivação da sua escrita, mas….que lindo texto, Sil. Quanta sensibilidade na tradução de algo tão cruel. Muito bálsamo de Deus a todos vocês.

    • Karine em 10 de setembro de 2017 às 08:31

    Ah, Silvia… Você me emociona, me comove, me toca lá no fundo, de um jeito tão doce. É exatamente assim. Você, como todos os que sabem usar as palavras, porque são íntimos delas, conseguem – amém por isso rsrsr – dizer exatamente o que gostaríamos e não conseguimos. Você conseguiu de novo, comigo. Assim é o luto. Beijo.

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