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João e o Anjo

MÁRCIA INTRABARTOLLO *

O próprio João falou-me sobre seu anjo quando tomei coragem de abordar aqueles olhos nítidos que me acompanharam desde que eu pisara ali. Olhos sem qualquer pavor pela doença.

Esquelético, exibia cabelos brancos rareados pela ação do tratamento e tinha um aspecto geral frio. Vinha de uma cidade pequena, sua cidade natal, e agora dormia com cinco estranhos em beliches, com a privacidade preservada por cortinas de lençóis. Antes de ser abrigado ali, sua rotina resumia-se a sentar-se no mesmo banco da praça quase sempre no mesmo horário, e esperar quem sabe os antigos amigos da lavoura para fazerem nada juntos.

Sua vida não prometia nenhuma aventura que não fosse a morte, até a manhã fatídica em que escutou uma música vinda de longe, a música de que ainda não se esquece, melodia de sua vida e de seu fim.

Como já não confiava em sua audição, fez concha no ouvido para certificar-se de que não escutava coisas, mas não. O som que vinha era animado, pondo-o em alerta. Endireitou-se no banco da praça e esticou o pescoço pela possibilidade do que veria, com lembranças empoeiradas saltando na memória… mas as crianças, rápidas, adivinharam a surpresa e estavam alvoroçadas com o caminhão colorido e barulhento que dobrava a esquina cheio daquela gente de circo. Gargalhavam. João sorriu, contaminado.

Mas surpresa digna de uma parada cardíaca ele teve mesmo quando viu descer do caminhão um anjo. Esfregou suas cataratas. Nem em seus maiores devaneios pensava ser possível um anjo integrar um circo, ainda mais um como aquele, o mais bonito. Iluminado e exótico, o anjo desceu com destreza da carroceria, olhou fixamente para João e seguiu decidido em sua direção.

Não devia ser com ele… provavelmente o anjo se dirigia a outra pessoa… mas observou ao seu redor e viu que todos já tinham corrido para o caminhão e ele estava só. O anjo continuava a olhá-lo fixamente e a seguir em sua direção. Menos de meio quarteirão os separava.


‘Mas surpresa digna de uma parada cardíaca ele teve mesmo
quando viu descer do caminhão um anjo. Esfregou suas cataratas’


Seu entorno escureceu. Via apenas o anjo andando com um foco de luz acompanhando seus passos cadenciados. Como por milagre, a vida ficou completamente silenciosa e desfocada, não havia depois nem houvera antes. João gelou: era chegada sua hora.

Enquanto os cabelos longos e ondulados se desmanchavam com o vento, o anjo balançava os quadris. Usava sandálias prateadas de salto alto, e suas longas pernas eram cobertas apenas pela meia quadriculada bege e a saia curta brilhante. João adorou sua boca vermelha como não convém. O anjo andava como quem flutua e sorria para João. Ele sorria de volta, olhos fechadinhos de tanto.

Havia vivido sua vida acostumado a ser menos em tudo, suando com o trabalho árduo, o estudo nulo, a comida medida, a mulher, a penca de filhos e uma feiúra doída. Viveu como quem pedia desculpas, sem direito de sonhar. Até de si mesmo escondia seu mais íntimo desejo, porque era pecado impossível, mas no fundo dos lençóis imaginava uma loira, ah, tão bonita, uma loira como aquele anjo. Ele tinha o rosto da mulher desejada, e como poderia estar tão ao alcance de suas mãos enrugadas? Que última ironia da vida aquele rosto tão sonhado ser o do anjo que vinha buscá-lo! Morrer agora, isso sim, seria um pecado.

O anjo ajoelhou-se. Pôs as mãos nas pernas de João e aproximou seu rosto perfumado. Sussurrou. O velho coração tremia, e o corpo, ah…

Não teve conflito algum, assentiu com a cabeça. Obedeceu. Então o anjo beijou seu rosto e lhe estendeu a mão, que João tocou suavemente. De olhos molhados e sem uma única palavra, foi conduzido até o hotel de viajantes em frente à praça. Ali, o anjo se despiu e amou João em troca de sua aposentadoria.

Quando contava sua história, os olhos convalescentes do velho se emocionavam. Havia dois anos que fora expulso de casa, restando-lhe as lembranças, o abrigo na cidade grande, a doença fatal e a falta dela.

João não sentia tristeza pelo abandono ou por viver seus últimos dias entre estranhos. Não importava a doença, dores ou a morte que espreitava… grande coisa! O HIV tinha o sabor permanente da realização de seu sonho. Sentia uma falta sufocante da sensação que o anjo lhe trouxera naquela cama de hotel, e que queria de novo ainda que o preço fosse viver suas dores dobradas e penitências torturantes.

O que importava a João era que em uma manhã de sol de sua vida neutra, um lindo anjo loiro esteve em seus braços não merecedores. Para reviver aqueles medidos minutos, viveria outra vez seus secos setenta anos.

A vida inteira cabe em instantes.

 

* Márcia Intrabartolo
Jornalista, escritora nata, amiga do coração e recordista de audiência entre os ‘palavreiros’ convidados do blog com sua crônica
Take a Photo, My Love


 

 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!

‘The Normal Heart’ é de arrasar!

Minha frequência em escrever neste blog é diretamente proporcional à vezes que tenho a sorte de topar com um filme que consegue chacoalhar o meu mundo (qual o sentido em compartilhar impressões sobre histórias apenas bonitas, medianas ou mesmo ruins, não é??). Hoje foi um daqueles dias de sorte!

Nem sei por qual elogio começo a comentar sobre “The Normal Heart”, produção para a TV (nos EUA as televisões também produzem longas para exibição exclusiva em suas grades) que sequer ganhou um título em português nos sites de cinema brasileiros – sinal de que deve levar um tempinho para chegar por aqui.

Mas valerá a pena esperar. Isto é… se você não é uma daquelas pessoas que jura não ter “nada contra” homossexualismo, mas prefere não ver nem ter contato. Do contrário, entregue-se a esta maravilhosa história real, que gira em torno da luta do escritor e ativista gay Ned Weeks para chamar a atenção das autoridades governamentais e de saúde sobre o aparecimento da epidemia de Aids, na Nova York da década de 1980. A partir da observação de casos em seu círculo de amizades e alertado por uma médica que atende a comunidade gay, ele criou a primeira ONG para dar suporte, informação e apoio a infectados – em 1981, a doença sequer era pesquisada e ainda chamada de câncer gay, porque foi entre esta comunidade que ela primeiro se alastrou.

Esta simples sinopse não faz justiça à densidade das reflexões suscitadas pelos dramas que se desenrolam em torno de Ned – e em dado momento em sua própria vida pessoal – paralelamente à sua luta política. A dificuldade dele em sentir-se reconhecido como uma pessoa normal pelo próprio irmão, as divergências entre os próprios gays sobre a abordagem do problema junto às autoridades e, pior de tudo, a dor de verem namorados, amantes, maridos e amigos morrerem de forma deprimente, sem assistência, cercados de preconceito e discriminação… tudo é abordado ao mesmo tempo e sem superficialidade.

Preparem o coração para momentos tristes assim, mas também para vibrar com as interpretações estupendas e corajosas de todos os atores. Julia Roberts, sem maquiagem, no papel de uma médica paraplégica que luta para tratar os doentes e conseguir verba para estudar o vírus, está de arrasar. Nem tenho palavras para descrever a entrega com que Mark Ruffalo interpreta seu corajoso e ao mesmo tempo dócil Ned Weeks.

E o elenco de apoio, formado tanto por atores que são gays assumidos na vida real – caso de Matt Boomer (“Crimes do Colarinho Branco”), Jonathan Groff (“Glee”), Jim Parsons (“The Big Bang Theory”) e outros – como por notórios heterossexuais também surpreende. Quem diria que bonitinhos como Taylor Kitsch (“John Carter – Entre Dois Mundos”) seriam capazes de atuações tão densas?

E preciso falar, Matt Boomer merece que eu me redima por não tê-lo achado, até então, capaz de transcender seu rosto inacreditavelmente bonito. Ele me arrancou lágrimas em mais de uma cena na pele de Felix, namorado de Ned, que também contrai a doença. É a grande história de amor dentro de um filme muito maior que isso.

Palmas para o diretor Ryan Murphy (de “Glee”), que também deu seus pitacos no roteiro de Larry Kramer, adaptado de uma peça teatral.

Arrasou!