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O Anjo da Justiça

FÁBIO LUÍS LUCIANO *

Se houvesse um anjo da justiça. Se ele propusesse trazer justiça ao planeta Terra, ele desembainharia sua espada afiada de JUSTIÇA e atravessaria impiedosamente a alegria e a felicidade de toda a Terra. E a começar pelos banquetes extravagantes dos bilionários, passando de puteiro em puteiro, de desfile de moda a desfile de Carnaval, viraria todas as mesas de todos os botecos do mundo, atravessando goela abaixo com sua espada de justiça a felicidade excêntrica do ser humano até restar apenas luto sobre luto, lágrima sobre lágrima. Degolaria impiedosamente a felicidade de cada ser humano da Terra até que este pudesse compreender a gravidade da injustiça, da fome e da miséria do mundo e deixasse de apontar seus dedos alienados para cima se furtando convenientemente à verdade absoluta dos fatos e da realidade da injustiça impiedosa humana em toda a Terra. Traria fome e miséria para toda a Terra de maneira democrática e contundente até que o último poderoso; presidente ou banqueiro, astro ou ídolo, bonequinho e bonequinha fútil de vaidade chorassem de fome como uma criança miserável africana. Até que este monte de carne e osso desalmado que se auto-denomina humano descobrisse o valor da vida acima do ultraje fútil e escandaloso que é vestido de ego, orgulho, arrogância e diversão. Talvez, como no Êxodo, trouxesse consigo o anjo da morte para levar todos os primogênitos de todos os bilionários e multimilionários do mundo para que estes aprendessem na realidade o que é a dor de perder um filho de fome e sede. Certamente este anjo da justiça iria com grande fúria a acabar com toda a indústria fútil do entretenimento do mundo e de todo tipo de cultura inútil para ensinar ao ser humano o que é a vida além da festa, além do comercial, além do ócio e além da diversão. Assim apresentaria ao mundo o quanto trabalho duro é preciso para manter um planeta vivo e equilibrado e assim traria, enfim, JUSTIÇA a todos os animais. Até que o ser humano apavorado e assombrado reduzisse o valor que dá em sua pulsão e desejo, cobiça e vaidade a pó. E assim, quando o mundo inteiro estivesse de luto ao mesmo tempo, na mesma miséria, na mesma fome, na mesma sede insuportável, na mesma hora, no mesmo dia, haveria o retorno de alguma consciência do valor da vida, da razão da vida e da JUSTIÇA na Terra. E assim sacrificando impiedosamente a alegria, a felicidade e a euforia do ser humano, apresentaria a este desumano o que ele tanto clama: “JUSTIÇA”. E ao colocar enfim sua espada de JUSTIÇA de volta à bainha, ao colocar a balança da JUSTIÇA definitiva na Terra, não sobraria sequer um só inocente.

 

* Fábio Luís Luciano é teólogo e aluno do curso de escrita ficcional
de Lucas Arantes, do Espaço
A Coisa, em Ribeirão Preto


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

 

João e o Anjo

MÁRCIA INTRABARTOLLO *

O próprio João falou-me sobre seu anjo quando tomei coragem de abordar aqueles olhos nítidos que me acompanharam desde que eu pisara ali. Olhos sem qualquer pavor pela doença.

Esquelético, exibia cabelos brancos rareados pela ação do tratamento e tinha um aspecto geral frio. Vinha de uma cidade pequena, sua cidade natal, e agora dormia com cinco estranhos em beliches, com a privacidade preservada por cortinas de lençóis. Antes de ser abrigado ali, sua rotina resumia-se a sentar-se no mesmo banco da praça quase sempre no mesmo horário, e esperar quem sabe os antigos amigos da lavoura para fazerem nada juntos.

Sua vida não prometia nenhuma aventura que não fosse a morte, até a manhã fatídica em que escutou uma música vinda de longe, a música de que ainda não se esquece, melodia de sua vida e de seu fim.

Como já não confiava em sua audição, fez concha no ouvido para certificar-se de que não escutava coisas, mas não. O som que vinha era animado, pondo-o em alerta. Endireitou-se no banco da praça e esticou o pescoço pela possibilidade do que veria, com lembranças empoeiradas saltando na memória… mas as crianças, rápidas, adivinharam a surpresa e estavam alvoroçadas com o caminhão colorido e barulhento que dobrava a esquina cheio daquela gente de circo. Gargalhavam. João sorriu, contaminado.

Mas surpresa digna de uma parada cardíaca ele teve mesmo quando viu descer do caminhão um anjo. Esfregou suas cataratas. Nem em seus maiores devaneios pensava ser possível um anjo integrar um circo, ainda mais um como aquele, o mais bonito. Iluminado e exótico, o anjo desceu com destreza da carroceria, olhou fixamente para João e seguiu decidido em sua direção.

Não devia ser com ele… provavelmente o anjo se dirigia a outra pessoa… mas observou ao seu redor e viu que todos já tinham corrido para o caminhão e ele estava só. O anjo continuava a olhá-lo fixamente e a seguir em sua direção. Menos de meio quarteirão os separava.


‘Mas surpresa digna de uma parada cardíaca ele teve mesmo
quando viu descer do caminhão um anjo. Esfregou suas cataratas’


Seu entorno escureceu. Via apenas o anjo andando com um foco de luz acompanhando seus passos cadenciados. Como por milagre, a vida ficou completamente silenciosa e desfocada, não havia depois nem houvera antes. João gelou: era chegada sua hora.

Enquanto os cabelos longos e ondulados se desmanchavam com o vento, o anjo balançava os quadris. Usava sandálias prateadas de salto alto, e suas longas pernas eram cobertas apenas pela meia quadriculada bege e a saia curta brilhante. João adorou sua boca vermelha como não convém. O anjo andava como quem flutua e sorria para João. Ele sorria de volta, olhos fechadinhos de tanto.

Havia vivido sua vida acostumado a ser menos em tudo, suando com o trabalho árduo, o estudo nulo, a comida medida, a mulher, a penca de filhos e uma feiúra doída. Viveu como quem pedia desculpas, sem direito de sonhar. Até de si mesmo escondia seu mais íntimo desejo, porque era pecado impossível, mas no fundo dos lençóis imaginava uma loira, ah, tão bonita, uma loira como aquele anjo. Ele tinha o rosto da mulher desejada, e como poderia estar tão ao alcance de suas mãos enrugadas? Que última ironia da vida aquele rosto tão sonhado ser o do anjo que vinha buscá-lo! Morrer agora, isso sim, seria um pecado.

O anjo ajoelhou-se. Pôs as mãos nas pernas de João e aproximou seu rosto perfumado. Sussurrou. O velho coração tremia, e o corpo, ah…

Não teve conflito algum, assentiu com a cabeça. Obedeceu. Então o anjo beijou seu rosto e lhe estendeu a mão, que João tocou suavemente. De olhos molhados e sem uma única palavra, foi conduzido até o hotel de viajantes em frente à praça. Ali, o anjo se despiu e amou João em troca de sua aposentadoria.

Quando contava sua história, os olhos convalescentes do velho se emocionavam. Havia dois anos que fora expulso de casa, restando-lhe as lembranças, o abrigo na cidade grande, a doença fatal e a falta dela.

João não sentia tristeza pelo abandono ou por viver seus últimos dias entre estranhos. Não importava a doença, dores ou a morte que espreitava… grande coisa! O HIV tinha o sabor permanente da realização de seu sonho. Sentia uma falta sufocante da sensação que o anjo lhe trouxera naquela cama de hotel, e que queria de novo ainda que o preço fosse viver suas dores dobradas e penitências torturantes.

O que importava a João era que em uma manhã de sol de sua vida neutra, um lindo anjo loiro esteve em seus braços não merecedores. Para reviver aqueles medidos minutos, viveria outra vez seus secos setenta anos.

A vida inteira cabe em instantes.

 

* Márcia Intrabartolo
Jornalista, escritora nata, amiga do coração e recordista de audiência entre os ‘palavreiros’ convidados do blog com sua crônica
Take a Photo, My Love


 

 

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