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O que é que o baiano tem [*]

[*} Texto publicado em setembro de 2003, no caderno TôLigado, da extinta Tribuna Impressa de Araraquara

 

Ele já cantou em inglês, em francês, mas foi em português, sincopado, ritmado, deliciosamente gingado, que fez saltar gravatas de colarinhos e pudores das cinturas duras da diplomacia. De repente, todo o auditório da assembleia das Nações Unidas (UAU! Nações Unidas!) estava chacoalhando alguma parte do corpo ao som do ministro Gilberto Gil, no show em homenagem ao embaixador morto no ataque à sede da ONU no Iraque, o brasileiro Sérgio Vieira de Melo.

O secretário-geral da ONU, Kofi Annan [*¹], endossou a queda dos protocolos e – meio vacilante, é verdade! – marcou o ritmo de “Toda Menina Baiana” à tumbadora.

Eu pensei que brasileiro só virasse patriota em Copa do Mundo, mas, no dia seguinte, no trabalho, na rua, nos comentários que a gente colhe de “orelhada” aqui e ali, enxerguei o orgulho brasileiro – e nem tinha ídolo do esporte envolvido. Eu mesma, em frente à TV, vendo aqueles diplomatas se entregando ao apelo do ritmo brasileiro, reencontrei o meu orgulho, que andava escondidinho, coitadinho… lá embaixo da vergonha por nossos indicadores sociais e altos índices de impunidade.

A gente andava mais acostumado a praguejar em frente ao noticiário televisivo, vendo lobbies vencerem o bom senso no Poder Legislativo, o tráfico mandando mais do que a autoridade constituída, a polícia praticando crimes sob a proteção do uniforme, prefeitos desviando dinheiro do contribuinte e pobres ficando mais pobres ainda []. Coisas que fazem a gente enxergar festas patrióticas – a Copa do Mundo de Futebol, por exemplo – como um ópio traiçoeiro, que faz o brasileiro esquecer que no dia, na semana, no mês seguintes a conta do supermercado ainda precisará ser paga, o convênio de saúde poderá não cobrir aquele atendimento indispensável e que, se não sair à rua de preto quando a sujeira de um presidente vier à tona, a impunidade vai continuar a “comer” nosso dinheiro sem a gente nem ficar sabendo.

Mas, de vez em quando, um ministro de cabelo rastafari também pode nos fazer lembrar que a música, como qualquer outra manifestação cultural genuína de um povo, é capaz de quebrar a rigidez da diplomacia e de quadris… assim como “salvar” meninos e meninas pobres da criminalidade em projetos culturais de alcance social, como noticiários também, volta e meia, mostram. Essas coisas trazem esperança e… orgulho! Fazem lembrar que as artes e a cultura são poderosas; que as manifestações artísticas são uma “cachaça” sem álcool, fontes de prazer sem vício. Por isso podem educar, ao mesmo tempo que ratificam a identidade de um povo.

E se a gente se orgulha de assistir aos [des]engravatados da ONU perderem a compostura ao ver o que é que este baiano tem, é porque sabe que ele tem A GENTE! A música e a pessoa de Gil têm nossa raiz brasileira, nossa cultura, nossa raça, nosso AMOR (até o que a gente acha que não sente pelo outro). E tudo isso é poderosíssimo!

Obrigada, Gil. Obrigada!

 

[*¹] Kofi Annan foi secretário-geral da ONU [mais alto cargo da organização] de janeiro de 1997 a dezembro de 2006.
[*²] NOTA DA AUTORA: “Quem diria que eu sentiria saudades daquela época? E pensar que eu achava que não tinha como o Brasil ficar pior do que estava…”.

 

Nada a comemorar

Quando uma condenação por corrupção ocorre em um desses países orientais supercivilizados, como a China, as reações, tanto da população quanto dos acusados, costumam ser de vergonha genuína. Pais perguntam-se: “o que fizemos de errado?” Políticos desculpam-se (quando não se suicidam).

No Brasil, os políticos negam tudo até a mais amarga condenação e a população divide-se em um “fla-flu” político. No caso específico da de Lula, muitos foram para a rua comemorá-la com fogos e pixulecos, como numa final de campeonato vencido por seu time – se o resultado tivesse sido outro, os partidários de Lula teriam feito o mesmo.

Desculpem se soo petista para uns e “coxinha” para outros (o “fla-flu” tende a essas simplificações), mas não consigo enxergar motivo para comemorar em nenhum dos casos. Não torci para o livramento de Lula, mas tampouco estou feliz com o que sua condenação e a de tantos outros dizem sobre nosso País e sobre nós mesmos. Nem com como isso reflete em nossa identidade cidadã ou em nossas noções internas de justiça, que influenciam nossas tomadas de decisões no dia a dia – de respeitar uma lei de trânsito a ensinar um filho que não se deve fingir uma falta no futebol.

Além do mais, a punição de um ou dez corruptos não acaba com toda a corrupção. Em estruturas de poder contaminadas, como as nossas têm se mostrado, sempre há os que ficam para inventar novos modos de corromper sem ser pego ou chegam novos corruptos para substituir os antigos.

O que rompe esse ciclo é educação e não estou falando só da formal – até porque esta muitos corruptos tiveram e da mais cara que o ensino particular pode fornecer -, mas da moral, que vem de berço e sofre uma grande influência do consciente coletivo, formado por um conjunto de práticas em sociedade.

Tantas condenações mostram o quanto estamos falhando nisso e que não temos, na verdade, nada a comemorar.

* Artigo publicado no jornal A Cidade em 25/1/2018

 

ARTIGOS: série ‘Pílulas de memória’

Série de artigos publicados no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto.


Artigo publicado em 30/12/2016

ARTIGO: Este gigante não me representa

Publicado no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto.

Ele pode comer essa banana

Ficamos combinados assim: foi sensacional a atitude do lateral direito Daniel Alves, brasileiro que atua como lateral direito do Barcelona, durante partida de deu time no último fim de semana.

Comer a banana que a torcida adversária lhe jogou, com o objetivo de desestabilizar seu emocional na cobrança de um escanteio, passou recados claros, eficientes, “matadores”: “vocês não me preocupam, não me desestruturam, não me despertam NADA…” Resumindo: “não sou vítima de vocês”.

Vamos combinar também que, ao contrário dos alvos de racismo pelo Brasil e mundo afora, ele “pode comer essa banana”. Bem-sucedido, rico e no auge da carreira aos 30 anos, Daniel sabe que não chegou de favor ao grupo de elite de um esporte competitivo, cheio de pressões e desafios. Sua trajetória vitoriosa o municiou com a autoconfiança necessária para não sentir-se vítima de racistas.

E daí que lhe jogam anonimamente uma banana para fazê-lo sentir-se xingado de “macaco”? No mundo real, sua fama e dinheiro atuam como um eficientes “igualadores sociais” – ficamos combinados, mais uma vez, que nossa sociedade é hipócrita assim.

Mas como esperar que outros afrodescendentes de origem humilde mantenham sua autoestima quando o racismo lhes extrai oportunidades de trabalho, educação, aperfeiçoamento, e quando o simples fato de ser negro o habilita a ser confundido e preso como ladrão? Nem todos têm a sorte do ator Vinícius Romão, de receber o apoio maciço da mídia para corrigir-se tal confusão.

Daniel Alves pode comer essa banana, mas quantos mais podem?