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A Vareta do Diabo (uma ficção delirante)

“Sheila, prefiro ir com você pela floresta, não com elas pela estrada”.

“Ótimo. Vamos ver qual equipe chega primeiro a Pontremoli!”

“Elas, claro. É muito mais fácil ir pela estrada. Você sabe o caminho?”

“Fotografei este trecho do guia do alemão. Diz que é bem marcado, basta seguir as indicações.”

“Mas já faz tempo que a gente está andando e não vi nenhuma placa da Via Francígena.”

“O caminho é este mesmo, não teve outra trilha cruzando.”

“O que diz o guia?”

Trilha na floresta entre Berceto e Pontremoli, úmida, perfumada, a mais linda.

“Deixa ver… diz que alguns quilômetros depois da cidade de Berceto encontra-se o portal do parque floresta, que faz a divisa com a Toscana. Já fizemos isso. Depois segue-se por um bosque de árvores altas e então passa-se por uma pequena casa.”

“Acabamos de passar pela ruína de uma casa. Seria essa?”

“Deve ser. Depois há um mirante e a seguir um riacho. Depois do riacho começa a área dos cogumelos Funghi Porcini, que dão muito por aqui.”

“Olha lá na frente, Sheila, é o riacho! Se os cogumelos vierem depois, estamos no caminho certo! Nunca vi Funghi Porcini…”

“Ei, Márcia, que riacho bucólico! Vamos tirar umas fotos? Olha… na árvore tem uma placa dizendo que colher cogumelos dá prisão. Que horror!”

“Um exagero! Tem tanto cogumelo aqui que mais parece uma plantação! Iuhuu, estamos no caminho certo!”

“Não disse? A certeza me deu fome. Vamos parar para lanchar?”

“Já comi  todo o meu lanche andando. O que eu preciso agora é de um banheiro.”

“Os cogumelos estão aí pra isso, Márcia.”

“Pra lanchar? Está doida? Não viu que dá prisão?”

“Eu quis dizer que dá para fazer de banheiro na região deles!”

“Tem razão. Vou até onde sua vista não me alcance.”

“Marcinhaaaa… por que está demoraaaando?”

“Não estou ouvindo direeeeito!”

“Está tudo bem?”

“Ótimo, Sheiloca!”

“Ótimo… onde já se viu? Como pode ser ótimo?”

“Cheguei!  Sheila, você precisa ir para ver o que eu vi. Mais pra frente aparecem uns cogumelos super diferentes…”

“Estou comendo. Só quero ver esse ovo gostoso dentro do meu pão.”

“Você só pensa em comer… Mas se eu te contar o que vi, você vai correr para lá…”

“Não quero saber, está proibida. Preste atenção, temos uma longa descida e então avistaremos a cidade. Mas vamos passar por uma pedreira onde será preciso cuidado porque diz que tem muitas pedras soltas e o tempo está fechando.”

“Ok. Pra frente é que se anda. Fui.”

“Ih, comi com tanta fome que estou ameaçada de ter um piriri.”

“Vai nos cogumelos e aproveita para ver os que eu vi…”

“Marcinha, você comeu algum cogumelo? Porque parece que está tendo barato… já disse que não vou voltar para trás…”

“Não comi, mas não tiro aqueles da cabeça. Vamos voltar, Sheila, você tem que ver…”

“Não vou subir tudo isso de volta só porque você quer.”

“Você devia ver… eles têm um formato…”

“Do quê?”

“Formato ereto.”

“Você deve estar delirando…”

“Veja com seus próprios olhos. Têm formato fálico!”

“Não vou voltar, papo findo. Se perdi a oportunidade de ver, paciência. Já descemos uns três quilômetros e não vou subir de volta.”

“É que eu me arrependi de não ter aproveitado os cogumelos, e você podia mesmo voltar lá comigo.”

“Eles não podem ser comidos. Que insistência!”

“Não quero comer, Sheila, quero cheirar… é uma oportunidade de ouro.”

“Ah! E por que não fez isso quando estava lá?”

“Porque estava ocupada, mas acho que o cheiro deles me pegou…”

“Eu não vou cafungar cogumelos, já estamos na pedreira! E se concentra para não escorregar nessas pedras. Acho que essa história de cheiro deixou você biloló, Márcia. Até melhorei só de rir das suas asneiras. O que você fez com os cogumelos, afinal?”

“Quer saber mesmo? Eles me fizeram lembrar do maldito João, aquele sacana que me traía com a Silvia que estudou com a gente?”

A imagem diz quase tudo

“Como esquecer?”

“Fiquei com tanta raiva da imagem do João me atrapalhando em um lugar tão perfeito, que arranquei o cogumelo e o pisoteei com vontade, até ver que ele ficou bem esmagado. Descarreguei toda a minha raiva nele e estou me sentindo vingada!”

“Que nojo de você! Parece um bicho… onde já se viu? Não dava para controlar sua raiva por uma coisa que já rolou há tanto tempo? E ainda fica insistindo em voltar…”

“É que o cheiro que ele exalou me provocou… você é muito certinha, credo!”

“Não sou. Tanto que se fosse para eu me vingar do Abílio por causa daquela loirinha que ele arrumou, eu precisaria de uma faca para fazer picadinho do cogumelo. Que ódio dele! Estou considerando voltar…”

“Ah, só que agora estamos chegando em Pontremoli e já começa a pingar!”

“Você não regula bem. Márcia. Primeiro você quer voltar, e quando eu concordo você puxa o breque…”

“Você que enrolou! Sabe que eu sou diversão garantida, devia ter voltado…”

“Só eu sei! Márcia, queria combinar uma coisa com você. É sério. Essa história tem que morrer aqui. Não quero que você conte por aí, podem pensar mal da gente…”

“Posso publicar no blog Palavreira, vai fazer sucesso!”

“Não brinca, não. É segredo nosso. Vamos, Marçoca, já está anoitecendo.”

“Essa já é a rua do hotel. Olha o luminoso dele à direita!”

“Boa. Vamos atravessar! Escapamos da chuva por pouco.”

A bela Pontremoli, vista da ponte.

“Sheila, fica aí fazendo o check-in que eu já vou para o banho.”

(…)

“Você demorou muito nesse banho!”

“Delicioso.”

“Estou pesquisando no Google sobre cogumelos dessa região.”

“Achou a foto do funghi porcini?”

“Achei, e não parece com sua descrição… o que você viu foi outro…”

“Qual o nome do meu?”

“Veja a foto e diga se foi este…

“Sheiloca, é esse mesmo, exatamente!”

“Reparou no nome?

“Não…

“Phallus impudicus… Larga o celular que eu vou ler um detalhe para você: o cheiro asqueroso de algumas espécies do phallus impudicus  é afrodisíaco para as mulheres”.

“Olha, por isso eu fiquei…”

“Ele também é conhecido como a Vareta do Diabo. Isso diz alguma coisa?”

“Senti uma raiva demoníaca do João.”

“Nada disso, Marcinha. Isso significa que se você pisoteou a Vareta do Diabo, com certeza o coisa ruim está puto com você… Você vai ser castigada…”

“Aturar você já é castigo suficiente e o diabo tem mais coisas com que se preocupar. Vamos dormir, Sheila.”

“Boa noite. O dia de hoje entra para a história.”

“Entra, mas tem que ficar no puro sigilo. Pode deixar que não vou palavrear por aí. Boa noite para você também.”

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta invencionice da autora é a sétima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Foi feita durante o curso da Escola de Escrita Inventiva. Para ver as fotos do trecho de Berceto a Pontremoli, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Chocolate com Pistache, clique aqui.