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Nossos idosos não são mais aqueles

Quando escrevi pela primeira vez sobre a série cômica “Grace & Frankie”, em 2015, achei que não houvesse mais o que explorar na história de dois casais idosos que se reconfiguram da forma mais inusitada (ou não nestes tempos “gay friendly”): os dois maridos “saem do armário” ao mesmo tempo para assumirem sua relação homo-extraconjugal, que já dura 20 anos – dos 40 que os dois casais mantinham amizade e vidas entrelaçadas.

Mas a série da Netflix chega à sua terceira temporada em grande forma, obrigada!

Embalada por um timing cômico sofisticado e, de certa forma, codificado – significa que nem todos vão entender as piadas, principalmente quem está na faixa abaixo dos 40 anos -, a série aborda com extrema verdade e inteligência os conflitos que o novo perfil de idosos têm tido de enfrentar atualmente.

Nossos idosos de hoje não são mais sombras das pessoas que foram apenas esperando para morrerem em cadeiras de balanço, camas de hospital ou quartos de asilo. Principalmente os das classes média acima, mantêm-se funcionais e lúcidos, o que, de certa forma, até os torna mais sensíveis aos tratamentos preconceituosos das novas gerações, pois eles não se sentem como os seus jovens o tratam: seres ultrapassados.


“Nossos idosos de hoje não são mais sombras das pessoas que foram apenas esperando para morrer em cadeiras de balanço”


Na segunda temporada, exibida em 2016, Grace e Frankie tiveram de lidar com o processo de despedida de uma amiga com câncer que manteve uma vida “solar”, positiva e generosa até o melancólico fim, enquanto Robert e Sal tentavam se entender após o primeiro descobrir que o segundo teve um “sexo de despedida” com a ex-mulher.

Grace e Frankie chegam ao último episódio enfrentando a triste conclusão de que são tratadas como peças inúteis no xadrez familiar, mas prometendo que darão a volta por cima iniciando um negócio próprio juntas.

A terceira temporada as encontra enfrentando as dificuldades de praxe para conseguir levantar capital para o novo negócio: fabricação de vibradores específicos para idosas, que respeitem as limitações físicas típicas da fase (artrite, por exemplo), tecido vaginal ultra-delicado e com baixa lubrificação (se você pensar bem, é um baita nicho… rs).

O problema é que nenhum banco se arrisca a conceder empréstimo com amortização de longo prazo para duas mulheres na casa dos 70 anos, a despeito delas gozarem de boa saúde, energia e de Grace ter um bem-sucedido currículo de empreendedora – afinal, ela montou do nada a empresa de produtos femininos que a filha mais velha agora administra e na qual ela não é mais bem-vinda.

Parece uma história triste – e no fundo é -, mas você não consegue chorar nesta série. Se tiver o repertório certo, vai é rir muito, mesmo que no fundo se entristeça por reconhecer que aquelas verdades temperadas com o humor inteligente da roteirista Martha Kauffman (de “Friends”) são é de chorar.

 

P.S. By the way, quero envelhecer como a Jane Fonda!

‘A Nossa Luta’: você está acordado?

Em um dos últimos episódios da série “When We Rise” – que no Brasil será exibida pelo canal Sony sob o título “A Nossa Luta” -, o ativista gay pelos direitos humanos Cleve Jones descreve a um jovem que o entrevista uma ameaça que sua geração não previu: “vocês”, dispara ele – “Sua geração está dormindo (…) como é fazer parte de uma geração sem objetivos?”.

Cleve tem moral para fazer a provocação. Àquela altura, já acumulava, ao lado de outros biografados na série, como Roma Guy, Diane Jones, Ivory Aquino e Ken Jones, 40 anos de militância política pelos direitos humanos e civis da comunidade LGBT, responsável por conquistas como tratamento médico gratuito e irrestrito a doentes de Aids e a derrubada de leis que marginalizavam social e economicamente esta e outras minorias.

Tudo isso enfrentando obstáculos tão gigantescos quanto a epidemia de Aids, que começou sendo chamada de câncer gay e considerada por conservadores “uma resposta de Deus ao pecado da homossexualidade”.

Não pude evitar uma reflexão sobre se este questionamento não serve também para nossas últimas gerações brasileiras – a minha inclusa -, que gozam a liberdade civil pós-regime militar pela qual milhares morreram, mas, por outro lado, assistem quase passivamente a pessoas padecerem por falta de atendimento digno e eficiente de saúde e outros direitos essenciais, só preocupando-se com o seu quintal.


Dá inveja assistir o quão corajosos esses
militantes se mostravam, mesmo assistindo a
amigos morrerem de aids abandonados pelo sistema


Dá inveja assistir o quão corajosos esses militantes se mostravam, mesmo assistindo a amigos morrerem de aids abandonados pelo sistema ou perderem bens e direitos construídos numa vida inteira de relação para usurpadores protegidos pela lei americana, que não estendia os direitos civis a uniões homoafetivas.

Só a história de Cleve, que aos 18 anos deixou um lar rico, cujo pai psiquiatra queria “tratar” sua homossexualidade como doença mental (se preciso com eletrochoques), já emociona. Ele inicia sua militância como assessor do primeiro político assumidamente gay a ser eleito para um mandato político em São Francisco (Califórnia/EUA) – Harvey Milk, o biografado em “Milk – A Voz da Igualdade”, que rendeu um Oscar de Melhor Ator a Sean Penn, com direito a (merecidos) aplausos em pé.

A militância de Cleve e dos outros biografados não para quando Milk é assassinado. Ao contrário, cresce na adversidade.

O diretor Gus Van Sant faz um belíssimo trabalho entrelaçando as histórias pessoais cheias de episódios de discriminação, violência e discursos de ódio desses ativistas com a dos movimentos, sem esquecer o pano de fundo político de cada época.

“When We Rise” está no patamar de produções como “The Normal Heart” e “Stonewall”, que contextualizam as lutas da comunidade LGBT, mas que se parecem com todas as histórias de coragem de quem luta por seus direitos em meio à injustiça. Mais do que recomendáveis, elas deveriam ser obrigatórias para – quem sabe? – todos aprendermos a acordar também.

Einar não mora mais aqui…

Vamos lá tentar encontrar as palavras certas para exprimir a delicadeza e toda a curva emocional de “A Garota Dinamarquesa” (The Danish Girl), de Tom Hooper – mesmo diretor de “Os Miseráveis” e “O Discurso do Rei”.

Esperava uma história linear e documental sobre o primeiro transgênero a realizar uma operação de mudança de sexo na longínqua década de 1920, mas é mais – muito mais – que isso.

É um filme sobre amor – puro, genuíno, incondicional, para além de tudo… de gêneros, estereótipos, sexo.

Esqueça a indicação de Melhor Ator para Eddie Redmayne – ele é quase só um pretexto aqui para a interpretação arrebatadora da sueca Alicia Vikander. Testemunhar as milimétricas nuances de emoções que ela consegue expressar em cada cena me faz considerar aviltante, incompreensível e injusta sua premiação como atriz coadjuvante.

Merecia o Oscar, sim, mas na categoria de atriz principal. O filme é todo dela! (que entrega! que inteligência emocional!).

A história é sobre Einar Weneger, mas o tempo todo é com o sofrimento resignado de Gerda que nos identificamos. É ela quem faz Lili emergir de dentro de Einar, movida por uma intuição primal.

No começo, Einar e Gerda são pintores e se amam. Eles se dão perfeitamente bem na cama e em todo o resto. Um dia, ela pede que ele sobreponha um traje de bailarina sobre as vestes masculinas e pose para que ela possa terminar um quadro encomendado.

Lili começa a emergir.

Numa noite posterior, Gerda descobre sua camisola por baixo das vestes masculinas de Einar. Surge a ideia de um jogo de casal. Gerda traveste Einar. Eles vão juntos a uma festa. Um homem rouba um beijo de Lili/Einar, que “menstrua” pelo nariz – o fluxo nasal passa a ser mensal.

Gerda sente e expressa, através de sua arte – que, ironia!, finalmente desabrocha – a chegada de Lili.

Einar desaparece, mas o amor de Gerda permanece. Transfere-se para Lili. Não sem dor, não sem luto (por Einar)… mas constante.

Muitas dúvidas, muitos médicos e diagnósticos equivocados interpõem-se à busca por entendimento e identidade, mas o amor de Gerda e Einar está lá o tempo todo.

Embalando toda essa barafunda emocional uma fotografia primorosa – cada cena um quadro com toques renascentistas -, mas a história é tão forte que o visual fica em segundo plano.

Tocante!

Cópia mal feita

Acabo de assistir a “Olhos da Justiça” (Secret in their eyes, 2015), de Billy Ray, supostamente a refilmagem hollywoodiana do argentino “O Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de Sus Ojos, 2009), de Juan José Campanella, que tenho como um dos filmes mais completos já realizados na história recente do cinema mundial.

Sério, como já disse em um post da época, o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2011 reúne vários gêneros em um só roteiro – romance, comédia, suspense, terror psicológico e crítica política, tudo muito bem alinhavado e equilibrado – e atuações sensacionais de Ricardo Darin, Guillermo Francella e Soledad Villamil.

Já “Olhos da Justiça”, que dó! Salvo duas ou três frases-chave que manteve do primeiro e a espinha dorsal do argumento – ambos pauperrimamente aproveitados -, não sobrou nada da grande história da investigação de um estupro violento seguido de assassinato, que corria paralelamente à de um amor inconfesso, desembocando em uma trama de impunidade e suspense psicológico.

Hollywood não é uma indústria à toa. Possui uma linha de montagem de filmes destinada a produzir em série um mesmo tipo de produto, ainda que com penduricalhos de cores diferentes em cada exemplar para passar a ilusão de exclusividade, tal como as bonecas que saem de uma linha de produção, com o mesmo corpo e rosto, mas cabelos e roupinhas diferentes entre si.


tudo se apequena na refilmagem hollywoodiana


Daí que, no caso específico desta joia de roteiro, o processo foi de desmontagem de uma história cheia de subtextos e referências cruzadas para encaixá-la ao padrão hollywoodiano de produção. Assim, o título não guarda mais a dupla interpretação – os olhos apaixonados de Irene e os de terror da vítima de um crime -; o amor inconfesso de Irene e Benjamin torna-se um flerte frígido; a malha política que permitiu a impunidade e a perseguição dos mocinhos simplesmente desaparece; e os diálogos – ah, os diálogos, a maior perda – espirituosos e esquemáticos do original tornam-se frívolos e comuns.

Enfim, tudo se apequena na refilmagem hollywoodiana. E isso vale para as atuações também de Nicole Kidman e Julia Roberts, que se deixa enfeiar – mais – para o papel, mas nem por isso nos arrebata.

O andamento da história resulta tão previsível que sequer a surpresa do final chega a chocar de verdade, de tão “mastigada” que a trama é entregue ao espectador – pobre espectador ainda considerado como limitado por sua indústria de cinema, mesmo após Christopher Nolan ter provado que um roteiro intrincado e inteligente não é impeditivo para um filme vendável!

Enfim, fica a dica: se assistiu a “O Segredo de seus olhos”, não o desonre comparando-o a “Olhos da Justiça” e, se não viu, nem perca tempo com seu arremedo americano.

Vá direto ao original. Garanto que não vai se arrepender.

Sobre ‘Creed’e o legado de ‘Rocky’

Sou uma espectadora de cinema de gosto específico (sei que já disse isso),  do tipo que adora chorar com um bom drama, refletir com uma história densa ou derreter-se com uma comédia romântica inteligente, mas que boceja de tédio quando começa uma cena de tiroteio ou perseguição e fica procurando rachaduras na parede quando os diálogos ganham doses extras de testosterona ou violência gratuitas.

Dito isso, não pense que já não me perguntei por que diabos consigo me sentar para assistir a um filme como “Creed: Nascido para Lutar” (Creed, 2015), que, vejamos: tem cena de violência (check), sangue (check) e diálogos banhados em testosterona (check)….

A resposta não é curta e começa assim: pelo mesmo motivo pelo qual sentei para assistir todos os “Rocky” (e também amei): não são apenas sobre lutas. Elas são o motor a impulsionar personagens arquetípicos dos “loosers” (como os norte-americanos adoram rotular quem consideram fracassados pela cartilha do “American Way of Life”) a erguerem-se acima das limitadas oportunidades que uma vida à sombra lhes oferece.


As lutas são o motor a impulsionar personagens arquetípicos dos “loosers”


Rocky e Adonis têm origens na massa de excluídos sociais – mesmo tendo sido adotado pela madrasta rica, Adonis Creed teve lá sua infância abandonada em casas de correção -, mas não se resignam ao roteiro previsível de seus pares. Pegam a raiva dentro de si e a purgam no ringue, onde apanham, sangram, caem, levantam, caem de novo e continuam levantando, até o momento em que sairão vitoriosos.

Fica implícito que não é pelo dinheiro ou pela glória (não só) que se submetem a perseguir o que parece impossível ao começo de cada filme. Mas suas motivações – o amor pelos seus, a amizade, a honra – os aureolam e nos fazem torcer por eles. Daí que o sangue, a desfiguração dos seus rostos, que em outros filmes tanto me repugnam, não são gratuitos. Estão à serviço de uma história maior. Uma história de gente como a gente (assim nos sentimos, pelo menos).

A história de “Creed” não chega a ser mais forte que às de Rocky, mas nem precisa. Sozinho, o personagem de Rocky preenche todas as lacunas. Sylvester Stallone está adorável emprestando uma maturidade terna e pacífica ao ex-boxeador idoso que aceita treinar o filho de um grande amigo morto. Nada de heroísmo ou exibicionismo machão na terceira idade. O Rocky Balboa de “Creed” aceita sua velhice e as vulnerabilidades que vêm com ela. Ensina o que sabe sobre luta e sobre perdoar e seguir em frente. É sim um tio querido, como o personagem de Adonis o chama por todo o filme.

Como cinema, “Creed” não resulta uma obra-prima, mas faz uma homenagem à altura do legado de “Rocky”, coroando a carreira de Stallone com honras.

Not bad it all, Sly… “Not bad it all” in deed!

‘Acusados’: ninguém é inocente!

Desde que começou toda a polêmica sobre o estupro coletivo no Rio de Janeiro tenho me lembrado cada dia mais do filme “Acusados” (The Accused), de Jonathan Kaplan. Por ter sido dirigido lá pelos idos de 1988, ingenuamente acreditei, no começo de todo o processo no Brasil, que estávamos muito à frente dos exemplos de sexismo e preconceito abordados naquele filme.

Só que não.

A Sarah Tobias que Jodie Foster interpreta em “Acusados” é uma sensual jovem de classe média baixa na casa dos 30 anos, que vai a um bar se divertir para esquecer a briga com o “namorido”. Acaba estuprada por um grupo de homens sobre uma mesa de bilhar. E, para seu horror, ela não passa pela experiência desacordada como a jovem brasileira filmada com suas partes íntimas sendo manipuladas e expostas para uma câmera de vídeo.

O filme começa na cena em que um jovem liga para a polícia de um orelhão para denunciar a “curra” (gíria para o estupro coletivo) no exato momento em que a vítima consegue sair correndo do bar, machucada e em choque. Daí até assistirmos à cena crucial de que trata todo o filme, demora quase o filme todo.

Parece enfadonho, mas acredite, não é.

A escolha do diretor por uma narrativa fragmentada obedece ao nobre propósito de municiar o espectador com os pontos de vistas de todos os envolvidos no fato, para que possamos refletir sobre as motivações tanto dos acusados quanto da vítima. O expediente, que acaba por humanizar (não isentar”) os acusados, evita pra nós a armadilha fácil de escolher um lado logo de cara.

No julgamento, a acusação faz o comportamento extrovertido de Sarah – que após alguns goles de álcool dança sensualmente para a plateia masculina – parecer um incentivo e um indício de que ela queria o que aconteceu a seguir. Até parece que é ela a julgada. Entendemos que tentar criminalizar Sarah não é só uma estratégia dos acusados, mas um senso comum de que uma mulher que dança e flerta em um bar está “pedindo” para ser estuprada.

O primeiro julgamento parece anunciar o final do filme, mas então assistimos a Sarah enfrentar o escárnio e desrespeito da sociedade em seu dia a dia. Isso faz a advogada decidir comprar mais uma briga, desta vez contra quem aplaudiu e incentivou o estupro e até quem simplesmente estava lá e nada fez para impedi-lo.

O recado de “Acusados” é claro: absolver e  aprovar o estupro sob pretexto de que a vítima “o provocou” tem o mesmo peso de praticá-lo. Desse ponto de vista, condenar os acusados não só faz  justiça, mas educa uma sociedade ainda inconsciente do seu machismo estruturado.

Acho que tão importante quanto saber o resultado do segundo julgamento do filme é ouvir os argumentos de defesa e acusação, novamente incentivando-nos a refletir e a nos questionar: a qual grupo pertenceríamos naquele julgamento se também tivéssemos estado naquele bar?

O alemão que caçou nazistas

O drama alemão “Labirinto de Mentiras” (Im Labyrinth des Schweigens, 2014), de Giulio Ricciarelli, é inspirado em fatos reais.

Na Alemanha de 1958 – portanto mais de uma década após a derrota de Hitler na 2ª Guerra Mundial -, um jovem promotor de Frankfurt decide dar ouvidos a um ativista solenemente ignorado pelos colegas que pedia a investigação de crimes de guerra.

Da primeira entrevista com um judeu sobrevivente de um campo de concentração nazista, Johann Radmann (Alexander Fehling) e sua secretária saem incrédulos e chocados. Mal sabem que o relato era apenas o primeiro de muitos – milhares – que desnudariam uma rotina de tortura e desumanidades praticadas pelo regime de Hitler e que a sociedade alemã estava feliz em ignorar àquela altura. Mas Radmann não deixa por menos e começa não só a investigar como a caçar as principais autoridades responsáveis pelos crimes relatados – Josef Mengele entre eles. Claro que enfrenta a chacota de seus pares e muitas dificuldades impostas pela ordem vigente, que acha muito conveniente deixar tudo no passado.

Mas não é o isolamento e nem as forças contrárias que chegam a abalar a determinação de Radmann, mas a constatação de que o nazismo não foi algo que uma minoria enfiou goela abaixo dos demais alemães, mas um regime abraçado, aprovado, aceito por uma porção majoritária da sociedade e que estendeu seus tentáculos até o núcleo imaculado da família do próprio promotor.

A história não confirma a crise de identidade que chegou a levar Radmann a desistir – ainda que por um curto período de tempo – de sua cruzada, mas o conflito descrito no filme confere humanidade e, consequentemente, identificação àquela figura que começava a ganhar contornos heroicos. Salutar em um momento que tende-se a entronizar acima do bem e do mal um “Sergio Moro”, por exemplo.

Hoje sabemos que Josef Mengele, o médico-monstro que usava prisioneiros dos campos de concentração como cobaias de experimentos científicos, sobreviveu incólume à caçada de Radmann e morreu livre no Brasil, seu último esconderijo. Mas a Alemanha e o mundo todo devem ao jovem promotor a punição de muitos nazistas responsáveis pelas histórias de horror do holocausto judeu.

O longa faz jus a isso sem mergulhar no ufanismo Recomendo!

Obrigada, Paralamas!

Chorei sim! E não foi a primeira vez em um show do Paralamas do Sucesso.

Há alguns anos, no Sesc Araraquara, era a primeira vez que via Herbert Vianna no palco após ele quase ter morrido numa queda de avião. O vocalista e guitarrista ainda não formulava bem as frases. Seu cérebro se recuperava do acidente grave que levou a mãe de seus três filhos, mas a (grande) habilidade na guitarra continuava lá, e o som do Paralamas, que por muito tempo achamos que não faria nada novo, seguia vigoroso, vivo, eletrizante! Como não se emocionar sendo fã de carteirinha?

No último sábado, em Ribeirão Preto, o show da turnê “30 Anos” não era para chorar. Bem ao contrário… uma paulada sonora, que a acústica perfeita do Centro de Eventos do RibeirãoShopping turbinou bem!

Por 1h inteira, sem paradinhas pra respirar, Herbert, Bi (no baixo) e Barone (bateria) e seus fieis escudeiros (o tecladista João Fera, o saxofonista Monteiro Jr. e o trombonista Bidu Cordeiro) encadearam alguns dos melhores exemplares do seu rock brasileiro com pegada latina: “Vulcão Dub”, “Alagados”, “Cinema Mudo”, “Ska”, “Perplexo”, “O Calibre” (rockaço!), etc, entremeados de baladas não menos empolgantes, como “Lanterna dos Afogados”, “Tendo a Lua”, “Quase um Segundo”.

O público até se manteve – visivelmente a contragosto, a julgar pelas “cadeiras dançantes” – sentado por boa parte do show, como obriga a estrutura da sala. Mas então, lá pela 10ª, 11ª sequência, “Meu Erro” explodiu do palco e pareceu uma ação combinada: não teve quem, de adolescentes imberbes a sessentões (tinha de todas as idades), não chacoalhasse os esqueletos. E seguiu assim por “A Novidade”, “Melô do Marinheiro”, “Perplexo”, “Loirinha Bombril”…

E em “Óculos”, quando Herbert editou o refrão – “por cima dessas rodas também bate um coração”-, uma ovação foi a resposta.

No Bis, mais alguns sucessos e covers de “chegados”, como Lulu Santos e Ultraje a Rigor. Pra não perder a verve de contestação que sempre os acompanhou, “Que País É Este”, do Legião, encerrou com chave de ouro.

Claro que cantei todas, dancei todas, sentada, em pé… e chorei em algumas. Novamente de gratidão. “Vi o meu passado passar por mim”: a adolescente problemática, a jovem adulta batalhadora, a mulher madura estressada… para todas o som desses caras criaram oásis de alegria e festa no meio de cotidianos difíceis. E os versos enganadoramente banais de Herbert sempre me falaram muito mais do que as palavras que eles encadeiam: “Eu hoje joguei tanta coisa fora” – a lição de desapego de “Tendo a Lua” muito menos sobre “cartas e fotografias” do que “gente que foi embora”.

Fico pensando se nossos ídolos fazem alguma ideia do quanto entram em nossas vidas e as influenciam. No caso dos Paralamas, pulsa em mim um “amor de turma” – para citar a Paula Toller – cheio de gratidão, ternura e reverência. Se eu nunca tiver a oportunidade de dizer isso pessoalmente a eles, que fique ao menos este testemunho público: obrigada, caras! Vocês trouxeram (trazem) muita alegria à minha vida.

‘Grace & Frankie’

Era uma vez dois casais amigos. Uma noite, em um jantar que prometia ser parecido com todos os outros que compartilharam ao longo de 40 anos de amizade, Robert e Sol pedem o divórcio de Gracie e Frankie. A razão para terem feito o pedido juntos e ao mesmo tempo é que, aos 70 anos, eles resolveram “sair do armário”. Isso mesmo: enquanto seus filhos cresciam misturados e as duas famílias tiravam até férias juntas, os dois maridos mantinham um caso de amor secreto, cheio de idas e vindas temperadas por culpa e vergonha.

Assim começa a mais nova série original da Netflix, “Grace and Frankie”, protagonizada por quatro veteranos de respeito: Martin Sheen (The West Wing), Sam Waterston (The Newsroom), Jane Fonda (no papel de Grace, linda aos 70 e com uma bunda torneada por jeans de fazer inveja) e Lili Tomlin (ainda feia, mas igualmente engraçada no papel de Frankie).

O humor brota principalmente das confusões surgidas em situações sociais a que a nova configuração das duas famílias é exposta nestes novos tempos de (bem-vinda) tolerância de gênero. Mas é um humor de classe, nada apelativo, que não precisa de interpretações caricaturais para provocar o riso.

Nos momentos tragicômicos surgem as melhores pérolas do roteiro, não por acaso co-assinado por Marta Kauffman, de “Friends”. Eles convidam à reflexão sobre a vida, o amor e a sexualidade na terceira idade.

Os personagens são críveis, claramente inspirados em um novo perfil de idosos que permanecem pró-ativos social e profissionalmente. Os de Robert e Sal representam pessoas que passaram a vida escondendo sua homossexualidade dentro de casamentos hetero – nem sempre  infelizes (o de Sol e Frankie, por exemplo, era feliz em todos os aspectos que não envolviam sexualidade).

O grande trunfo da série é mostrar os desafios que surgem a partir de uma pretensa “libertação” favorecida por estes tempos “gay friendly”. Eles são muitos, imprevisíveis e legítimos.

Suuuuper recomendo!

‘Selma’: uma reflexão

Assistindo emocionada ao filme “Selma”, sobre os bastidores da marcha liderada por Martin Luther King pelo direito ao voto dos negros,  melancolicamente passei a refletir sobre a diferenças entre aquele momento político e o nosso atual no Brasil.

Quase senti inveja daquelas pessoas que tinham como inimigos opressores muito claros – o ódio e preconceito de uma parcela da população branca e a omissão da classe política –, mas como líder o pastor Martin Luther King, que conseguiu conduzi-las através de um mar de violência e ódio de forma pacífica, embora firme.

Hoje, no Brasil, a grande maioria da população é oprimida pela privação de direitos constitucionalmente essenciais, que são educação, saúde e alimentação decentes e dignos. Mas seus algozes não são declarados como os racistas norte-americanos. São pessoas que passam por respeitáveis na estrutura social enquanto integram redes de corrupção entranhadas em todas as estruturas de poder. E não temos um líder compassivo e justo como King para nos conduzir – achamos que Lula o seria, que pena!

Enquanto em “Selma” assistimos a pessoas de todas as cores de pele, religiões e crenças solidarizando-se com os oprimidos negros, no Brasil assistimos a uma triste desunião. Uma grande parte da classe média e a maior parte da classe alta saem às ruas fazendo manifestações preconceituosas (contra nordestinos, pobres e a quem mais pensar diferente deles), desrespeitosas (xingamentos de baixo nível principalmente contra a maior autoridade do País) e (absurdo dos absurdos!) de incitação a golpes ao Estado de Direito. Tudo para defender os interesses de sua classe.

Em “Selma”, a união venceu a opressão e, por aqui, brasileiros destilam discurso de ódios contra outros brasileiros apenas por discordarem.

E assim seguimos um País enfraquecido pela cisão e a intolerância mútua.