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Passarinha, suricata ou um ventilador

Acordei de madrugada e me dei conta de que aquela era a 28ª cama diferente em que dormia nos últimos 28 dias, e a última. Não havia mais o que andar. Na manhã seguinte pegaríamos o caminho de volta ao Brasil.

Depois de ter passado por beliches, camas de campanha e de solteiro, a 28ª era de casal, como a primeira, e de certa forma essa situação fechava o ciclo. A mesma colega do primeiro dia dormia comigo, mas diferente da noite em Aosta em que tremi de medo, agora eu pensava na guinada que minha vida dera: estava “grávida”.

As estrelas me viam como um pontinho na cama de um B&B em Siena, na Itália, em um dos cinco continentes, na Terra, que pouco representa no Universo. Eu era nada mais do que um pó perdido de felicidade porque estava em uma cidade medieval incrível e tudo tinha dado certo. Não havia conseguido vencer o medo, mas o domara; não havia conseguido ser engraçada, mas estava mais leve; minha rigidez se movera só alguns milímetros, mas foi a brecha para uma expansão. E tinha pego barriga, estava prenhe daquela outra “eu”.

Fechei os olhos e me lembrei de dois dias antes, quando deixamos San Gimignano para trás. Andávamos de madrugada por uma cidade que se conservava igual há séculos, e eu pensava se outros peregrinos que pisaram aquele chão de 63 anos antes de Cristo tinham se metamorfoseado.

Agora também é muito cedo e desperto do primeiro sono de volta ao Brasil. Meu marido dorme. Fecho os olhos e San Gimignano volta: lá o céu enluarado estaria mudando de cor, passando de carbono a um azul Bic, com nuances cor-de-rosa. Uma ou outra padaria já começaria a abrir, enquanto grandes arbustos verdes já estariam se revelando nas muralhas.

É bonito ver a mudança de geografia, o sol nascer, o dia se pôr. A gente passa, o dia passa, o tempo passa, tudo vai mudando e a gente pensa que está igual. Daqui para frente, serão só lembranças e os cuidados com essa bebê que fica sendo constantemente gerada e parida. Chegará o dia em que só haverá sombra da Márcia anterior.

Para mim, a peregrinação pela Francígena foi um ritual de passagem. Eu andava frustrada com a comodidade que tinha dado para minha vida. Mantinha presa em uma torre a passarinha que eu sonhara ser. Naquele março de 2017, abri a porta da gaiola, pus uma mochila nas costinhas dela e mandei-a passear.  Foi para a Itália disposta a renascer.

Quando já tinha se passado um ano, meu sobrinho disse que pareço uma suricata. Uma semana depois, minha enteada afirmou que eu lembro um ventilador de piso. Dá na mesma… passarinha, suricato ou ventilador, um ou outro fica retinho e girando a cabeça de lá para cá, tentando dar conta de tudo.

Fiquei orgulhosa de passar essa imagem pois parece que estou conseguindo “ter o pasmo essencial que tem a criança, se ao nascer, percebesse que nascera deveras”. O Fernando Pessoa fala bem lindamente dessas coisas, mas, Lucas e Nágila, vocês foram tão certeiros e modernos que vou preferir as definições de vocês. Ganharam o dia, agora me aguentem…

Sigo em frente, e é para valer.


Queridos leitores que acompanharam carinhosamente a série Pé Dá Letra,

amigas peregrinas Adriana, Kele, Regiane, Renata, Sheila e Vera,

Silvia Pereira, que me abriu este valioso espaço no Palavreira,

minha mãe e meu amor:

agradeço a todos pelo apoio na minha jornada de autora!

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a última crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Eu Vi Gigantes, clique aqui.

 

Eu Vi Gigantes!

Quero me redimir da culpa de ter usado o nariz do Pinocchio para contar algumas histórias. Saibam que se misturei realidade com mentirinhas foi unicamente com a boa intenção de imprimir nelas um pouco da magia que permeava nossos passos. E já que estamos na penúltima crônica da série, vou revelar a vocês uma verdade sólida.

Eu vi Gigantes. Juro por tudo o que é mais sagrado.

Acharão que estou de brincadeira, mas não. Saibam que eles foram o acontecimento mais real e forte de tudo o que foi contado até agora. São mais vastos que os Apeninos, e têm nomes de mortais comuns: Karl e Vincent.

Karl jantou conosco em Chatillon e andamos juntos por dois trechos. Quando falou de nós em uma de suas postagens, disse ter dúvidas se éramos um grupo de brasileiras ou uma banda. Isso porque ele testemunhou momentos em que estávamos animadíssimas para cantar e dançar enquanto andávamos.

Karl é um Gigante inglês de presumíveis 65 anos, casado e pai de uma paratleta acometida por paralisia cerebral. Ao aposentar-se, impôs a si mesmo o desafio de andar 3.200 quilômetros de Windsor (Reino Unido) até Atenas (Grécia) para, com tal feito, angariar recursos para duas instituições: Cancer Research UK e Chance for Childhood. Andar por caridade era o que fazia por ali. Com posts e vídeos, chamava a atenção dos seus seguidores. Um Lord!

Diante de um coração tão generoso, fiquei miúda. Diante de alguém com um propósito tão forte de doação, que cede e faz pelo outro, pensei no quanto é possível se expandir.

Foi o primeiro Gigante. Veio para ensinar.

Como os semelhantes se atraem, não demorou para o segundo gigante juntar-se a nós.

O Vincent era um holandês que apareceu do nada no trecho de Vèrres. O lógico seria que nos ultrapassasse e seguisse seu rumo. Devia ter uns 30 anos ou nem isso. Depois explicou que reduziu seu ritmo ao mínimo porque estava precisando da alegria que tínhamos de sobra. Isso fez com que andasse conosco um dia e meio, até desistir de nossa lerdeza.

Vincent era o Gigante maior porque estava lutando por sua própria vida. Tinha uma doença grave que o obrigava a tomar medicamentos diariamente, pois seu intestino não absorvia os nutrientes. Ele podia passar mal a qualquer momento, mas estava andando sozinho e percorria cerca de 50 km por dia.

Tinha fé –  muita fé – de que se saísse da Holanda e seguisse até Jerusalém, abrindo mão da medicação no trajeto, se curaria.

Você já olhou nos olhos de alguém de pupilas pretas que brilham quando diz que tem fé de que vai se curar enquanto anda, prescindindo dos remédios, arriscando-se a não ter socorro caso passe mal? Já sentiu que sua alegria efêmera podia ser um bálsamo para alguém vivendo tamanho drama pessoal? Já torceu intensamente para que o Deus dos Gigantes ouvisse aquelas preces?

Mais uma vez, diante de um coração tão valente quanto aquele, fiquei miúda. Diante de alguém com o forte propósito de defesa de sua vida, que enfrenta os problemas e age por si mesmo, pensei no quanto é possível expandir-se.

Foi o segundo Gigante. Veio para ensinar.

Pinocchio, aqui a magia deu-se por outras vias. Conhece Belchior, seu filho de carpinteiro? Dizia ele que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Deve ter visto gigantes também.

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a nona e penúltima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Carta para a Menina Helena, clique aqui.

 

Carta para a Menina Helena

Um dos quadros integrantes da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017

A Helena é filha da Marina, que é filha da Sheila, que é irmã da Adriana, e ambas filhas da Maria José.

Uma linhagem de mulheres (fortes!).

A Sheila e a Adriana são peregrinas, gostam de andar pelo mundo. Isso começou em 2014, quando trilharam o Caminho de Santiago e a Helena era ainda uma bebezinha. Não entendia direito de ausências.

Mas o tempo passou – criança cresce rápido – e quando as duas irmãs resolveram trilhar a Via Francígena, em 2017, a menina precisou ser preparada para entender a falta da avó naquela casa sempre tão cheia de Sheila.

Na tarde em que chegamos a Fornovo, a Sheila e a Helena se falaram por Skype. A Sheila disse:

“Olha, Helena, a vovó está te mostrando a paisagem daqui. Tem montanhas, tem ovelhinas lá embaixo. Já já a vovó vai dormir, porque aqui são 10h da noite, Helena!”

Mas a Helena já sabia muito bem que pra ser noite o céu tem que estar escuro.

“Vovó Sheila, você errou. Agora não são 10h da noite. Eu estou vendo, ainda é de dia, vovó. Você não vai dormir agora!”

Puxa, a singeleza das crianças!

É claro que a Sheila explicou que no lugar onde ela estava o dia corria diferente, não escurecia naquele horário. E foi então que a Helena pediu um presente daquele lugar exótico.

A Sheila já vinha pensando nisso. Por toda a cidade que passava, procurava um presente para a Helena e outro para decorar a casa nova da Marina. Não achava nada que fosse interessante o suficiente, que coubesse na mochila e não pesasse.

Passados uns dias, chegaram a Lucca, uma das cidades medievais mais turísticas da Itália. Lá a Sheila encontrou o presente da Helena e o guardou bem guardadinho para entregar a ela na volta para casa.

O mais bonito mesmo foi como uma exposição de quadros, com que cruzou inesperadamente, inspirou a Sheila a escrever uma cartinha para a neta, que postou via Face.

Dizia assim:

Quadro integrante da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017, que mostra o nariz comprido do Pinocchio

“Minha linda Helena,

Hoje a vovó visitou a cidade do Pinocchio de verdade!

Ele nasceu e viveu num pequeno povoado que pertence à região de Lucca, chamado Collodi. Aqui em Lucca, onde a vovó está, tem Pinocchio pra todo lado, em diversos tamanhos e formatos… muito lindinhos!

 Ahh… e tem muitas torres altas, parecidas com a torre da Rapunzel, acredita?

Então, resolvi subir em uma e descobri uma exposição com quadros do Pinocchio (muitos pintados por um artista local, com várias cenas da história do menino de madeira).

Fotografei alguns quadros só para você!!!

Tenho certeza que você verá essas e outras maravilhas do mundo com os seus lindos olhos amendoados um dia… muitos beijinhos.”

Diz a Marina que Heleninha adorou!

O curioso é isso: ser criança para fazer as coisas de adulto, e depois de adulto ver a vida com olhos de criança. Naqueles dias, tantas vezes, ao nadarmos no riacho, arrumarmos nossas lancheiras, brincarmos de mapa, vestirmos nossos uniformes ou jantarmos varadas de fome após chegarmos sujas em casa, alcançamos o estado de graça de voltarmos no tempo.

 

 

Esta é a oitava crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de  Pontremoli a Lucca, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, A Vareta do Diabo, clique aqui.

Chocolate com pistache

De chocolate com pistache foi meu brioche do café da manhã. Um abuso! Mas era ele ou a fome. Depois me perguntariam se eu tinha perdido peso por andar 700 km, mas de que jeito se emagrece comendo essas coisas?

Poucos minutos antes, 6h30 da manhã de um domingo, éramos vistas paradas em uma esquina da cidade de Pavia, com nossas mochilas e chapéus, sem perspectiva de encontrar um lugar onde tirar a barriga da miséria. Quem, em um domingo europeu de uma cidade turística relativamente pequena, abriria uma cafeteria ou padaria àquela hora?

A brasileira metade holandesa que estava conosco alertava que tínhamos errado o planejamento e por isso estávamos naquela penúria. Aliás, parêntese para dizer que os europeus têm fama de nem sempre trabalharem aos domingos e ainda fazem sesta diariamente!

Estávamos com um problemão, pois como poderíamos seguir até a próxima cidade se saco vazio não para em pé? Tínhamos bobeado no dia anterior vendo uma apresentação musical na praça e, quando chegamos ao mercado, estava fechando as portas.

Por isso, quando ouvimos um barulho de motor e vimos a porta de ferro de um bar chamado Room 46 se abrir automaticamente à nossa frente, nos sentimos agraciadas por um milagre. Tínhamos parado por acaso naquele endereço da Via Dei Mille.

O lugar tinha cara de “night”, mas ele se abriu, e por causa disso esta crônica ganhou aroma de café, baunilha e pistache. Ah, e ela também está levemente mais aquecida pelo calor do forno, que também derreteu as defesas do meu corpo.

Chegue mais perto da tela para sentir que aroma!

O Room 46: bar à noite e cafeteria de manhã

Eu, tão acostumada a um pão com manteiga e café com leite no café-da-manhã verde e amarelo, vi uma vitrine cheia de brioches, e isso foi tudo o que passei a desejar: a delicada doçura daquelas iguarias de chocolate, pistache, baunilha, frutas vermelhas ou mesmo sem recheio, à escolha do freguês.

A vontade de encher minha boca com aquela iguaria tomou conta de todos os meus órgãos, que faltaram congelar naquele único momento de desejo de um sabor doce, quente e com certo tom de canela.

Disputávamos entre nós mesmas a vez de fazer o pedido no balcão daquela cafeteria alternativa.

Pedido feito, nos sentamos ansiosas nas cadeiras pretas da mesa preta, no bar moderno de parede de tijolos à vista e iluminação amarela, como crianças esperando um pedaço do bolo de aniversário. Nossos pedidos foram trazidos aos poucos, desobedientes à ordem em que foram feitos.

Primeiro veio o pedido da Adriana, o leite quentinho, o brioche cheiroso… Dissemos: “pode começar, Dri”, e ela começou, bem diante de nossas lombrigas e olhos esbugalhados.

Depois veio o da Renata. Ela se ajeitou na mesa ritualisticamente, esticou o pescoço e foi levando aquela delícia até a boca em câmera lenta.

Virei meu rosto e vi chegando mais uma bandeja. Eram os dois brioches da Kele, mais seu café ao leite. “Podem se servir, meninas”, ela dizia, mas nós sabíamos que aceitar significava devorar e seguramos nossa onda. Ela partiu seu brioche ao meio e vi escorrer dele o chocolate derretido… ai… e parece que ao fundo ouvi sua voz dizendo “vocês vão me desculpar…mas vou comer, então”. Coma, Kele!

A Regiane levantou-se nervosamente. Estava difícil lidar com aquilo. Foi ver o que estava acontecendo com o pedido dela. Voltou vitoriosa. Tinha tomado posse da sua bandeja e do pedido da Sheila. Agora só faltava a minha.

Eu tantas vezes vi gatos aos meus pés querendo o leite denunciado por aquele faro deles, os miados nervosos, mas eu não dava. Agora, de castigo, eu era a gata (auto-elogio) ronronando pela comida que o garçom não trazia para mim.

Aí chegou o meu pedido. O lugar estava cheio de senhoras conversando e de solitários, e a TV anunciava alguma coisa sobre o Hitler… Olhei para aquilo à minha frente e fechei os olhos para sentir. Vegetarianos têm olfato muito bom. Depois vi que a Adriana e a Renata me observavam. Dei um gole no café e então mordi meu brioche de chocolate com pistache. Um abuso! O melhor da vida. Foi um daqueles sabores que entraram na minha lista.

Infelizmente, não tínhamos tempo para mais um.

A ponte Coperto, cartão postal de Pavia

Agora precisávamos andar até Santa Cristina e, antes, encher os camel-back. Achamos uma bica no mesmo ponto onde tínhamos chegado no dia anterior de Garlasco, após andarmos por muitas horas às margens do rio Ticino. Agora o atravessávamos pela ponte Coperto, que divide a parte turística de Pavia de onde nos hospedamos.

O sol suave anunciava um dia lindo e a cidade ainda estava se levantando. Andamos por suas ruas silenciosas. Era mesmo uma cidade muito agradável! Sua luz ficou na memória, com o sabor doce e o brilho do rio.

Pavia, não saia daí. Um dia eu volto.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

Esta é a sexta crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Garlasco-Pavia, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora

 

Clique no link para ler a crônica anterior, O aniversário da princesa Kele.

O uivo do monstro

Nicorvo deserta

Para mim, sem dúvida, daria para gravar um bang-bang em Nicorvo. Ela é feia. É empoeirada. Tem 400 habitantes e é quase sem cor. Uma cidade que para nós foi como um vira-latas esquelético, sofrido, com sarna e dentes afiados, que corre atrás do próprio rabo e nunca late. Tem pelos curtos e falhos e, de bom, carrega um sininho na coleira.

Na imensa planície de Parma (Itália), Nicorvo se deita atormentada por insetos no brejo das plantações que a rodeiam, de arroz, trigo ou farro, sabe-se Deus.

Ao seguirmos a pé para lá, não sabíamos o que nos esperava. Se soubéssemos, teríamos cancelado a caminhada. Mas não. Inocentemente fomos trilhando enquanto o monstro se armava. Enquanto partíamos da acolhedora Vercelli, o tal se formava não se sabe de onde, mas já zunia seu vento silencioso.

Andando, nós quatro tivemos uma das conversas mais íntimas de todo o mês que passamos juntas. Cada uma falou sobre a morte de seu pai. As histórias foram ouvidas sem pressa, sentidas. Cada palavra de tristeza foi deixada vagando entre aquelas plantações.

Logo, dois avisos dissiparam as lembranças pesarosas. O primeiro: como se antecipasse o suspense do que viria, toda a água de nossos cantis se acabou. O segundo e principal aviso: o tempo fechou de tal modo que nos calou completamente.

Já andávamos, àquela altura, olhando o chão, de cabeças baixas, desanimadas e com pressa de chegar. Parecia que tínhamos ido até o fundo de uma cisterna vazia. Agora estávamos perto. Ouviam-se só os passos cadenciados das botas, distantes umas das outras, e a sensação do barulho que não se concretizava, como a vibração longínqua de alguma garganta muda.

A Regiane, por formalidade, achou por bem fotografar o lugar para espantar o arrastado do dia e, ao levantar os olhos e focar o horizonte, surgiu na tela a ameaça da qual não teríamos como escapar…

A foto é ruim, mas o fato é real: este foi o registro do furacão

“Olha, olha o que vem vindo… um furacão!”

Não tínhamos opções. Não havia onde se proteger naquele descampado e só poderíamos sair da estrada se afundássemos no brejo das plantações, à direita, ou se nos agarrássemos às poucas árvores à esquerda – mas furações arrancam árvores. Na estrada, voaríamos pelos céus.

O tempo fechou ainda mais e vimos o furacão se aproximando. De longe, ele parecia um sino de igreja invertido … e era bonito.

Cada uma rezou do seu jeito. Eu achei que não faria muita falta, mas pedi a Deus que me deixasse aproveitar mais a aposentadoria que mal começara e lamentei pelo sofrimento dos meus. A Renata escreveu “mamãe ama você” para a filha, no aplicativo do celular, e enviou, emocionada. A Regiane também pensou na filha, e a Kele em muita gente.

Sabíamos que não daria tempo de chegar à cidade com nossas pernas e minutos curtos, porque o monstro estava cada vez mais perto. Como seria bom se as mochilas fossem asas ou se aquilo fosse a gravação de um bang-bang e nos bastasse galopar em puros-sangue até alguma tábua de salvação!

Ponderamos que antes da cidade havia um cemitério e se o alcançássemos poderíamos achar alguma construção para nos proteger, mas pelo andar da carruagem nem mesmo conseguiríamos chegar nele vivas – com o perdão da ironia!

Vinha vindo um furacão como nunca imaginamos e o tempo se fechava para a tempestade. Os pingos começavam, ventava e trovejava. Contra isso é que vestimos pela primeira vez os corta-ventos que trazíamos, como se eles pudessem… deixa pra lá.

Provavelmente nunca mais encontraríamos com a Sheila e a Adriana, as duas irmãs peregrinas que chegaram a Nicorvo algumas horas antes, vindas de Milão.

A estação de trem da pequena Nicorvo

As irmãs

Quando Sheila e Adriana desembarcaram, assustaram-se com o mau tempo e pensaram nas amigas à pé. Acharam a cidade morta, sem gente nas janelas.

Ninguém atendeu à porta da casa paroquial que nos abrigaria. Aquelas ruas não tinham placas e as casas não eram numeradas. A Prefeitura estava fechada. Não havia nem sombra de crianças. Os motoristas dos carros não paravam. Ninguém se envolvia. Ficaram as duas na rua à espera de uma alma boa.

O homem que surgiu para abrir a porta deve ter saído de um bueiro, ou talvez estivesse escondido atrás do poste. Deu-lhes instruções apressadas em um italiano para turista não entender, mas, pelas feições dele, não podia isso, não podia aquilo, não podia… não.

As horas de fome das irmãs passavam contraídas. Não acharam ali padaria, mercado, restaurante ou venda alguma aberta e só conseguiram comprar meia dúzia de ovos, por 2 euros, de um romeno com quem conversaram pela língua da penúria. Ele disse que Nicorvo era assim mesmo, mas revelou que o pub abriria à noite – “isso, se o furacão não chegar”, ressaltou. Mas as duas não entenderam e foram tranquilamente cozinhar os ovos para nos receber logo mais.

E de volta à estrada…

Acho curiosa a sensação de se sentir espreitada pela morte e digo com conhecimento de causa, porque não foi a primeira vez. Traduz a seriedade única do “agora é o fim”. Os pensamentos sobre como vão ficar as coisas, as desordens, as perdas, os amores, as dores, a puxada de conta passam rápido ante a magnitude do que nos espera e ficamos ali, à mercê de um destino. O que tive não foi de forma alguma medo, mas uma postura de me soltar para o inevitável.

Na hora H, pensamos tudo o que tínhamos para pensar tão rapidamente que em pouco tempo voltamos a andar na velocidade de sempre, à espera do abraço. Não havia o que fazer. Não corremos às árvores nem fomos ao brejo.

Pode ser que, de tanto nos abismarmos, tenhamos perdido o interesse do monstro. Depois de tudo, o furacão fotografado nos virou as costas. Desfez-se lentamente e não se sabe ainda em troca do que fizera o blefe de surgir.

De um minuto para outro, nada foi o que era para ser. Ele se esvaiu. Deve ter vindo só para negritar nosso desamparo, para sublinhar o tema do dia, antecipar o tom obscuro e ranzinza da cidade com cara de vira-latas e nome de pássaro.

Assim como veio ele se foi e tudo aconteceu tão rápido que, quando olhamos de novo para o céu para conferir, nosso algoz já tinha sumido.

Foi como se tivéssemos tido um pesadelo coletivo… como se tivéssemos feito parte de um show macabro.

A sorte é que o tínhamos fotografado para provar às outras o motivo de nossa alegria quando as encontramos.

Fomos ao pub só porque, afinal, um ovo não matava a fome de ninguém e precisávamos comemorar.

Ao fim, o pub era ótimo… o sininho da coleira. A Sheila e a Adriana nos contaram as aventuras de terem chegado ali em uma locomotiva tão antiga que dava muito, mas muito medo de que ela tombasse nas curvas – outro monstro longilíneo engolindo medos pelos trilhos.

Nós detalhamos nossa praticamente morte e ressurreição.

Qual o jeito de chegar em Nicorvo sem sentir medo não ficou sabido.

Quando voltamos pelas ruas silenciosas, apreciando a paisagem com olhar de sobreviventes, nos parecia que o cachorro bravo estava sonhando com a namorada. O dia assustado pelo furacão, pelo trem caquético, pelo risco de não termos onde dormir e pela sombra da fome fora neutralizado pela noite no cenário de sallon que redimia os pecados da cidade-bicho.

Não demorou para pegarmos no sono que nos repararia para seguirmos rumo à próxima aventura.

Nosso destino do dia seguinte, Mortara, tinha no nome algo de funesto…

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

Este viajandão baseado em fatos bem reais é a quarta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Vercelli a Nicorvo, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Fio Maravilha, clique aqui