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‘Take a photo, my love’

MÁRCIA INTRABARTOLLO *

Máquinas têm sentimentos e, ouso dizer, paixões. Não falo por falar, mas porque vi, e tenho testemunhas, a sedução de uma filmadora e fotógrafa americana em cima de um indefeso alemão.

Pobrezinho, caiu na rede dela e fazia cara de gostosão. O moço nem era bonito, até sem graça para meu gosto, com roupas quadradinhas e reações óbvias. Tinha aquela frieza europeia que incomoda bastante minha verve tropical. Mas convenhamos, essas características devem ser sensacionais para máquinas, mesmo para ela que teve certa vivência norte-americana (corre à boca pequena que ela tinha sido fabricada na China e ido de navio para os Estados Unidos, e depois fora exibida em vitrines de eletroeletrônicos com todas as suas partes à mostra, o que presumo deve ter subido à sua cabeça. Ela, vou falar sério, se achava!).

O nome da maquininha miúda e de tecnologia requintada era Gopro. Cá entre nós, a tecnologia podia ser chique mas a própria era escancarada nas sem-vergonhices. Vocês me darão razão.

Para constar, pronuncia-se goupró, e esse é um detalhe importante porque era ensinada a atender comandos de voz. Para que ela tirasse uma foto, por exemplo, devia ser-lhe dito: Gopro, take a photo. E ela agia.

Apesar de minhas restrições, nos coloquemos um pouco do lado dela. Tirada da China novinha, levada para um país estranho e depois para o Brasil de seus compradores, e mais uma vez embarcada com seus donos e amigos para ser praticamente escravizada… Enquanto todos passeavam de bonés, óculos, protetores, ficava ela sob o sol escaldante sem um chapéu sequer trabalhando sem parar, filmando, gravando, fotografando, inclusive à noite. Não tinha vínculos afetivos, não tinha amigos e vida social zero. Carentona. De modo que, ao ver o alemão com aquele sotaque diferente e frio como uma geladeira deve ter achado sexy e se apaixonado. Arrumou então um jeitinho de declarar seu amor.


‘Para constar, pronuncia-se goupró, e esse é um detalhe
importante porque era ensinada a atender comandos de voz’


Convenhamos que havia outras possibilidades: poderia ter caprichado nas imagens dele, poderia ter se jogado no seu colo várias vezes, engripado e feito de tudo para ele vir acariciá-la. Mas nada disso seria tão explícito quanto o que aquela inteligência artificial maquinou.

A paixão acha brechas, cria ocasiões.

Contrariando o profissionalismo que dela era esperado, a Gopro fechou seus ouvidos para todas as outras vozes e só atendia aos comandos do seu amo e senhor, o frívolo alemão.

Espertinha.

O dono da Gopro queria tirar uma foto, dava o comando, ela nada. Duas, três vezes e nada. Chamavam o germânico e ele dizia todo vaidosinho “Gopro, take a photo” e ela, pi pi pi clique.

Assanhada.

Com o tempo ele até brincava: “Gopro, take a photo”, dava um tempo e completava “my love”.

Foi tentado de tudo. Até chamaram um autêntico inglês britânico, que armou sua melhor pronuncia e entonação para dizer várias vezes “Gopro, take a photo”… sem sucesso. A professora de inglês disse “Gopro, take a photo” inutilmente. Só rolava com o alemão.

Faltava pouco para ele assumi-la, carregá-la a viagem toda com ele, quando alguém resolveu atrapalhar a relação. Sempre tem alguma intrigueira, e essa foi realmente perversa. Arquitetou um plano para tirar os holofotes da sedutora filmadora fotógrafa e ainda baixar a bola do alemãozito. A falsa pediu displicentemente para ele falar com a Gopro, e ele atendeu, deu o comando como quem beija. Ela rapidamente deu seus gritinhos delirantes: “pi pi pi” e clique, fotografou-o.

Mas a vilã destruidora de lares gravou a voz do alemão em seu celular. Bruxa, mas tiremos o chapéu para ela.

A Gopro não percebeu nada, coitadinha.


‘a Gopro fechou seus ouvidos para todas as outras vozes e só
atendia aos comandos do seu amo e senhor, o frívolo alemão’


Passo seguinte: perante todos, a vilã anunciou ao grupo. Pessoal, achei uma forma de não precisarmos mais do amigo aqui para dar comandos.

Corta-me o coração lembrar. Ela soltou o som de seu celular e a pobre apaixonada fez “pi pi pi” e clique. Caiu feito uma patinha.

É preciso registrar o despeito do objeto da paixão. Riu sem graça, como se tivesse sido traído. Como se o amor que ele julgava verdadeiro fosse de fato um amor que não sobe a serra. Desiludiu-se. Disse que não falava mais com ela.

Ela encolheu suas asas de sonho e reduziu seu coração de ching-ling a fracas batidinhas. Perdeu o brilho. Viu-se nada mais do que um objeto, abandonada em seu puro amor que não via limites nem pedia muito. Prometeu que para sempre as imagens dele ficariam gravadas nela. Sabe-se que artifícios usará para não ser descarregada.

Assim chegou ao fim o caso de sedução explícito informatizado, robótico, testemunhado, que valeu para provar que o amor é coisa esquisita mesmo, que paira, dá choques e, estando no mundo desde que o mundo é mundo, ainda rende histórias para contar.

 

(*) Márcia Intrabartolo é jornalista,
escritora nata e amiga do coração


 

 

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