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Tem alguém aí? Ou você ‘prefere não’?

Fui até a academia esta semana. No espaço reservado para as bicicletas ergométricas, que foi o que fui fazer, onde antes podiam ficar umas dez pessoas, agora só duas. E eu estava sozinha. Coloquei os fones de ouvido, tentei ver ou ouvir algo pelo celular, mas nada está bom, nada serve, nada atrai, tirei os fones e fiquei vendo um jogo de tênis que passava na TV, que já estava ligada quando cheguei. Foi quando ela chegou, olhando para as bicicletas disponíveis longe de mim, escolheu uma, na outra ponta, mas antes de começar o exercício foi até o controle remoto da TV, que estava apoiado em uma bicicleta mais perto de mim, e começou a mudar os canais até achar um de receitas. Aumentou o volume no máximo possível. Mesmo se eu colocasse meus fones, ainda ouviria o sotaque francês do cozinheiro.

Fui atravessada pela lembrança de ver meu pai dirigindo na chuva e desacelerando o carro toda vez que passava em frente a um ponto de ônibus. Intrigada pela atitude – obedecia ele a uma lei de trânsito? -, perguntei por que ele sempre diminuía a velocidade quando estava chovendo e passava de carro por um ponto de ônibus e a resposta foi: “para não espirrar água nas pessoas que estão esperando ônibus já debaixo de chuva”. Meu pai, que só foi dirigir adulto e deve ter tomado muita água nos pontos, conseguiu me dar uma vida longe do transporte público, o qual passei a usar por escolha, mais adulta. E já tomei muita água na cara e no corpo em dias de espera na chuva. Porque tem motorista que não desacelera. E tem motorista (ainda a minoria) que aproxima o carro da calçada e acelera ainda mais. Tive a impressão de que minha colega de bicicleta era das que não desaceleram.

Saí da bicicleta e fui até ela, de máscara. Você vai achar muito ruim se eu agora voltar para o jogo de tênis no mesmo volume que você está ouvindo? Ela me olhou assustada. Era mesmo das que não desaceleram no ponto. Desculpa, eu nem imaginei que você estivesse vendo o jogo, pode mudar de novo, ela me disse. E eu expliquei que não estava vendo o jogo, que não vou fazer exercício para ver algo na TV, e se for sei que corro o risco de ter que combinar com os amiguinhos que também estão no mesmo espaço que eu com uma única tevê se posso ver o que quero com a anuência deles. “Eu nem te vi”, ela me disse, e continuava achando que eu só queria o controle de volta. “É esse o problema”, eu disse, “é justamente esse o problema, você nem me viu”. E voltei a ouvir minha voz insistente, dizendo para os meus filhos todas as vezes em que passamos pelos porteiros do prédio: falem oi, falem bom dia, boa tarde, boa noite, falem obrigado, falem tchau, peloamordedeus tem uma pessoa aí, abrindo e fechando a porta para vocês, é uma pessoa e vocês passam por ela como se ela não estivesse ali. E eles ainda passam, na maioria das vezes, como se não houvesse uma pessoa ali. E eu explico que eles têm direito à moradia, mas não a um porteiro para abrir e fechar a porta para eles. Isso não é um direito posto para vocês, entendem? Acho que ainda não, mas espero e me esforço para que entendam um dia.

E cheguei em casa e liguei para uma das minhas amigas mais antigas, que sabe de mim desde os 6 anos de idade, e perguntei se ela se lembrava da vez em que estávamos na padaria, pegando sorvete naqueles freezers horizontais com tampa que abre para cima, e ela, depois de pegar o sorvete que escolheu, soltou a tampa na minha mão, que ainda escolhia? E que o pai dela ficou como que possuído e gritou tanto que até minha dor na mão passou e quanto mais ela falava “desculpa, eu não vi”, mais o pai dela falava “pois é esse o problema, não ver o outro”? Ela não se lembrava, mas sou testemunha de que aprendeu a lição. “Nós temos sorte”, eu disse pra ela. “Muita”, ela concordou, mas também seguimos atentas às lições. Enxergar uma pessoa é uma escolha que se faz todos os dias.

As lições que a dor oferece

Silvia Pereira

Dia desses minha terapeuta perguntou, à queima-roupa, o que aprendi com as experiências do último ano de recuperação de fraturas nas pernas.

Emudeci. Não tinha a menor ideia.

Desde então fico esquadrinhando memórias recentes pra tentar entender o que ficou para além dos fatos.

Ontem, na volta do médico, enquanto revivia o esforço de obrigar braços e perna boa a impulsionar meu corpo escada acima, trombei com a consciência de uma das lições que as dores físicas me ofereceram (nem sempre a gente aceita o que é ofertado, que fique claro): a de conseguir manter foco no momento presente – objetivo de toda meditação.

Antes do acidente havia tantos “e se” nublando minha consciência enquanto o cérebro tocava as ações do presente no automático: e se a renda do mês ficar aquém das contas a pagar? E se o mês que vem eu não tiver mais emprego? E se eu não for suficientemente capaz? E se nada der certo… etc e etc?

Foi assim que acabei por não enxergar um sinal vermelho.

Mas lembro-me agora de que, no período pós-acidente, às voltas com dores frequentes, imobilidade forçada e dependência total de outros, meu pensamento era completamente desligado das preocupações comezinhas do cotidiano.


“Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava
liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo”


Assim, do acordar até o adormecer, eu focava única e exclusivamente nos desafios do dia: conseguir fazer todos os exercícios da fisioterapia, lidar com o trabalhoso processo de usar a comadre, suportar os medicamentos abrirem um caminho de fogo nas minhas veias, vencer os esforços e dores do banho, exercitar a paciência esperando pela ajuda necessária para fazer tudo isso.

De certa forma, era libertador acordar e sentir-me comprometida apenas com o “agora” de cada dia. Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo. E como o sono era melhor!

Talvez por isso tenha sido relativamente leve meu fardo, o que faz eu me sentir uma impostora sempre que alguém elogia minha força. Não foi consciente e nem por esforço meu. Simplesmente não havia escolha. Foi como se o cérebro tivesse ligado um botão de “funcionamento de emergência” à minha própria revelia.

Ainda assim, houve momentos de rendição à melancolia e às lágrimas. Mas até esses tinham prazo de validade, pois sempre chegava a hora de ligar o foco no desafio seguinte.

Se aprendi a lição para todo sempre? Eis a questão… Hoje já me flagrei cedendo a ansiedades antigas, conjecturas de futuro… novos “e se”.

Já não sei se conseguirei reproduzir este “funcionar mais leve” quando voltar à minha rotina de antes – Deus sabe que somos convidados a nos sabotar o tempo todo -, mas é certo que não tenho mais desculpas.

Se voltar ao “sonambulismo” não será por falta de escolha, mas total incompetência.