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O Silêncio da Madrugada

CAROLINA S. PEGORINI *

“É estranho pensar no quanto a gente muda com o passar dos anos”, ela refletia, enquanto fitava as estrelas.

Sejam grandes mudanças na personalidade ou singelas mudanças de atitude no cotidiano, fato é que quase ninguém passa pela vida sem se modificar num ou noutro aspecto, em maior ou menor grau.

Por exemplo, quem diria que ela, que gostava de chegar em casa com o nascer do sol e costumava considerar que um final de semana sem sair à noite era um final de semana perdido, desperdiçado, não vivido, viria a tornar-se caseira, introspectiva e quase sem vontade de ver outras pessoas?

Não, ela não havia envelhecido, tampouco sabia dizer com precisão o instante e o motivo exatos em que essa transformação ocorreu. Só sabia que, aos poucos, foi aborrecendo-se e perdendo a vontade de cumprir aquele ritual clássico das sextas e sábados de equilibrar-se num salto fino, entrar num lugar lotado, ouvir música alta, socializar com os mesmos de sempre e procurar afinidades em quem acabara de conhecer.

Cansou-se dessa rotina. O interesse pelas noitadas na rua havia se dissipado sem maiores explicações. “Acho que foi um processo gradual. Aquelas noites em claro eram cheias de ruído… ruídos vazios e ensurdecedores, na maioria das vezes”, ela pensava.

Entretanto, uma coisa permanecia inalterada: seu encanto pela madrugada. Ficar em casa não significava ficar dormindo. Debruçada na janela do quarto, contemplava o céu noturno, as estrelas e a luz do luar que clareava a exuberante natureza ao redor. De vez em quando descia as escadas e rumava ao jardim, deitava-se no gramado e admirava a beleza do firmamento. Os únicos sons audíveis eram o farfalhar das folhas das árvores sacudidas pela brisa, o cricrilar dos grilos e um ocasional bater de asas de algum morcego errante. Por vezes, os pingos de chuva que batiam no telhado, nas vidraças e nos canteiros compunham uma melodia agradável e propícia ao sossego de sua mente.

Mas o que mais reinava nessas horas era o silêncio, o sagrado e limpo silêncio imaculado, não poluído pelos incômodos barulhos urbanos presentes nas horas do dia. O silêncio era um companheiro invisível que apresentava momentos perfeitos para a reflexão e a autoanálise. Isso só era possível devido à quietude que apenas as madrugadas proporcionam. Estando em casa ou na rua, ela era notívaga convicta, acreditava que esta característica era imutável e que a acompanharia até o fim.


‘Debruçada na janela do quarto, contemplava o céu noturno, as
estrelas e a luz do luar que clareava a exuberante natureza ao redor’


Porém, quando era um pouco mais jovem e sua alma ainda fervilhava diante das incontáveis atrações que o mundo lhe oferecia, não queria saber do silêncio. Considerava-o enfadonho e desinteressante, coisa de gente insossa, que não buscava novidades e se conformava com o tédio. Pouco compreendia quem pensava de outro modo; na verdade, sequer fazia questão disso. Sua ânsia de viver intensamente combinava com volume alto, com velocidade, com múltiplos estímulos que a cercavam sem deixar espaço para o discernimento.

Conforme o tempo passou e sobrevieram as lições preciosas que a vida ensina na marra àqueles que não aprendem por bem, ela finalmente percebeu que precisava pensar. Pensando, compreendeu que seria prudente afastar-se. Afastando-se, constatou que necessitava de uma pausa. E então notou que o mar de ruído em que estava imersa vinha, há muito, impelindo-a a voltar-se somente para o exterior. Sua cabeça confusa e exausta lastimava, pedindo uma mudança. Resolvida, buscou o silêncio e encontrou na madrugada o seu refúgio amigo.

Agora, anos depois, ela está em paz. Meditou, redescobriu-se, reconheceu-se. Passou a apreciar a própria companhia. Continua tendo a rotina de trabalho-estudo-família-lazer, como manda o figurino, mas seu olhar está diferente. Mudou o foco, e, por isso, achou bom mudar também de endereço. Valorizou a simplicidade. Aprendeu que nem tudo o que reluz é ouro, e que não precisava de muito para sentir-se feliz. Também aprendeu a falar menos e ouvir mais. Os hábitos tão arraigados foram perdidos sem muito esforço, como uma roupa que já não serve e da qual ela nem sente falta. As antigas dúvidas foram respondidas e deram lugar a novas perguntas, no ciclo infinito de busca que move adiante a humanidade.

Ao cair da tarde, ela volta para casa e tira os sapatos. Troca o apertado traje social por um vestido leve e confortável. Desliga o celular. Solta o cabelo e senta-se no sofá da varanda, apreciando o pôr do sol. Fecha os olhos ao aspirar o perfume das flores de bergamoteira e ouve o gorjeio dos pássaros que se empoleiram nos galhos, despedindo-se da luz do dia. O vento suave embala suas reflexões e, vencida pelo cansaço da semana, ela adormece sem perceber. Quando desperta, vê o luar banhando o jardim: as horas se passaram e a lua nasceu, por trás da casa, tingindo o cenário de branco azulado. Ela se levanta e desce os degraus, caminhando descalça pelo gramado. O único som que pode ser ouvido é o de sua respiração; até o vento cessou. Ela sorri. O silêncio chegou.

 

* Carolina S. L. Pegorini
Palavreira e leitora de bom gosto, apreciadora de toda forma de arte e,
como muitas de nós, nascida por engano com um ou dois séculos de atraso

 


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