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Quer Dançar Comigo?

O bailinho estava animado. Um daqueles bailinhos de estudantes, quando ainda não nos dávamos conta de que a ditadura iria nos engolir. Adolescentes, éramos nós. Daquela vez o arrasta-pé foi na quadra de esportes de uma faculdade. Fui com algumas amigas e estávamos naquela fase bonita do despertar para o amor, o romantismo, o toque, o contato com o sexo oposto. Bem, havia também quem quisesse contato com o mesmo sexo – isso não muda, mas não era esse o caso.

Eu usava vestido tubinho acima do joelho, scarpin, rabo de cavalo e franja. Estava me achando. Os rapazes ficavam de um lado e as garotas, de outro da pista. Então, nós, as meninas, esperávamos um sinal do bonitão e íamos ao encontro, ou ele chegava mais perto. Só sei que era bom: twist, rock e músicas lentas para momentos mais aconchegantes.

Costumávamos dançar até às onze da noite e íamos para casa comentando sobre tudo o que aconteceu: o mais bonito, o mais atrevidinho, roupas, cabelo, etc. Alguém sempre voltava acompanhada, e o casal caminhava na calçada oposta, um pouco mais atrás para preservar a intimidade de alguns beijos inocentes.

Segurar na mão era o máximo, mão no ombro, então!!

Bem, voltemos ao bailinho. Já disse que estava eu me achando o máximo naquele vestido tubinho e de batom rosa-chá. Então, um lindo, mas muito lindo rapaz fez o esperado sinal. Não hesitei nenhum segundo e caminhei segura em direção à pista.

Mas, ele passou direto. O sinal era para outra garota que estava logo atrás de mim.

A vergonha!

Fiquei parada no meio da pista, sem saber se voltava ou se continuava, disfarçando, como se eu estivesse apenas atravessando de um lado para o outro.

Resultado: fui direto para o banheiro, onde permaneci um longo tempo até criar coragem e sair de fininho, rezando para ninguém me ver.

Nunca mais voltei lá. Bobagem, podem estar pensando? É, pode ser. Mas vai dizer isso para uma adolescente!!

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

O Café da Dona Aurora

Dona Aurora era uma senhora bem idosa, de cabelos branquinhos como algodão, que morava com o filho na casa ao lado da minha. Como o filho trabalhava, ela passava o dia todo cuidando da casa e fazendo crochê com uma agulha muito fininha.

Eu era criança, e uma das coisas que eu mais gostava era olhar as flores do jardim de dona Aurora. Os pezinhos de violeta eram minha paixão, as pequenas flores ficavam embaixo das folhas e exalavam um perfume inesquecível, inebriante.

Dona Aurora era espanhola e eu adorava o sotaque dela.

Todos os dias, depois de voltar da escola e fazer a tarefa que ninguém conferia, eu batia palma no portão de Dona Aurora e ela sempre amável me convidava para entrar. Então, eu passava um bom tempo sentada numa poltrona na sala, perto dela, vendo-a e admirando como ela fazia crochê com uma agulha tão fina. Um pontinho minúsculo atrás do outro e ela ia fazendo as toalhinhas delicadas.

Mas outras coisas me encantavam naquela casa. Eu gostava de perambular até a cozinha só para ver a tigela de vidro cheia de água com os legumes descascados e picados todos do mesmo tamanho, em cima da pia. Ela dizia que era para fazer a sopa quando o filho voltasse do trabalho.

Então, quando chegava a hora do café da tarde, ela preparava leite condensado com café e me dava uma xícara. Para mim, era um deleite, pois em minha casa não havia leite condensado.

Um belo dia, fiz propaganda do leite condensado , e meu irmão – também criança – quis ir comigo. Sentamos os dois na sala e esperamos o café. Muito amável, ela fez uma xícara para cada um.

Daí pra frente, todos os dias, eu e ele com a maior sem cerimônia, chegávamos e ficávamos sentados, os pés balançando mal tocando o chão – esperando a hora do café.


‘Então, quando chegava a hora do café da tarde, ela preparava leite
condensado com café e me dava uma xícara. Para mim, era um deleite’


Não sei o que ela pensava ou sentia. Criança não se importa muito com essas coisas, nunca imaginam estar incomodando. No nosso caso, queríamos apenas beber aquele café delicioso cheio de leite condensado.

Um belo dia, minha mãe saiu de casa e resolvemos fazer um agrado a dona Aurora, uma retribuição pelo café. Pegamos dois mamões verdes no quintal e fizemos um doce, na verdade uma gororoba, uma sopa de mamão. Arrumamos a mesa com pratos e talheres e chamamos dona Aurora para comer. Ela foi. Sentou-se à mesa com requinte, como convidada de honra.

Meu irmão encheu um prato para ela com a sopa de mamão e ficamos os dois em pé, como dois soldados, de frente para ela, esperando o resultado. Devia estar péssimo, porque de vez em quando ela parecia estar engolindo um pedaço de sabão. Mas comeu tudo, sorriu, agradeceu e foi para casa cambaleando, apoiada na bengala.

Não sei se passou mal, teve dor de barriga ou o quê. Só sei que nós dois ficamos muito felizes por ter retribuído os tantos cafés com leite condensado que ela nos dava.

Lavamos os pratos, deixamos tudo como estava e tivemos de jogar fora o que sobrou da gororoba para não deixar nenhum vestígio. Minha mãe nunca soube disso. Mas eu lembro sempre, quando tomo café e quando vou fazer pudim.

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Que número sou eu?

Sou várias pessoas, pois muitos números me identificam. Tenho pensado nisso. Se vou ao médico, sou aquela de cartão número tal, que está com ar desanimado por causa da dor. Assim sou vista pela recepcionista e pelo médico que, aliás, só vai tomar conhecimento mesmo do meu joelho ou do meu estômago.

Já, no banco – aí são muitos números – sou a mulher que retira dinheiro para fazer compras, um pouco mais animada que a anterior. Aí chego ao posto de vacinação, carteira número tal, sou aquela mulher que ama a vida e, por isso, quer prevenir doenças. Então, o guarda de trânsito me para na rua e pede vários números: carteira de habilitação, documento do carro. Sou a mulher ágil e independente que não depende de ninguém para levá-la para lá e para cá.

Então, assisto a um filme no on demand e sei que meus números estão quase todos lá na provedora: celular, CPF, endereço, telefone fixo, Rg, sou a mulher ligada em cultura, documentários, arte.. Chegam as eleições. Outros números no título de eleitor: sou a mulher que cumpre seus deveres cívicos na esperança de um país melhor

Ah, o meu passaporte! Bem vestida, fazendo o check in, mulher que ama viagens e sempre aberta a conhecer outras culturas. E têm as senhas: do banco, do Face, do e-mail, do site de notícias e de qualquer outro lugar em que me cadastrei. É isso: sou uma pessoa cadastrada também na pizzaria, na lanchonete, na livraria, na farmácia, no supermercado, na lojinha de roupa, no posto de gasolina, na lista telefônica e em todas as páginas que eu abro para procurar um simples perfume, um aspirador de pó ou um liquidificador. E tem a placa do carro.

É a matemática comandando a vida. Todos sabem tudo a meu respeito através dos números. Quando foi que isso aconteceu?

Se tudo é número, eu também devo ser um. Procurei a numerologia e descobri: sou número três.

Isso é bom? Bem, alguns pontos muito positivos, interessantes, e outros nem tanto e prefiro pular essa parte. Mas, um dia fui número cinco. E isso ficou gravado em mim. E é isso que quero contar.

Eu estava na escola ( ginásio na época) e pode parecer estranho, mas eu era número cinco, quando deveria ser um número maior por uma questão de ordem alfabética, Acho que era pelo lugar que ocupava. Havia cinco fileiras de carteiras e eu sentava na primeira carteira da quinta. Daí, número cinco. Ficou marcado porque o professor de matemática – vejam só, matemática outra vez- me odiava. Era nítido. Todas as perguntas que ele fazia eram para mim.

– Número cinco, responda.

Resolver exercício na lousa?

– Número cinco, lousa!

Eu ia mal em matemática apesar de me interessar pelo mistério dos números. Ia mal por causa da implicância do professor.

Bem, o tempo passou e muitos, mas muitos anos depois, um belo dia, entrei em uma mercearia e, pouco depois, percebi que um homem me olhava como se tentasse me reconhecer. De repente, em meio a várias pessoas, ele perguntou – em voz alta e apontando o dedo para mim:

– Você não é o número cinco? Foi o mesmo que dizer:

– Você não é aquela que ia mal em matemática?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Pedras no caminho

Agora sei. Somos pedras. Viemos dela. Um estudo da NASA mostra que a primeira receita de DNA está contida em meteoritos. Mas gosto de pensar que cada um se originou de uma pedra preciosa.

Há quem afirme que viemos do pó e ao pó retornaremos. É bíblico, e outras teorias nos confundem como: somos fruto de geração espontânea – e também que nosso berço é a África: todo o DNA presente nos humanos é derivado da Eva mitocondrial, conforme dizem alguns cientistas.

Bem, pensando em minha mãe como uma pedra, imagino que ela tenha sido um diamante. Faz sentido: ela amava jóias, principalmente com brilhantes. Algumas pessoas me lembram uma esmeralda, outras, rubi, safira, água marinha….

Parece uma discussão boba, e é boba mesmo. Temos tanta coisa para fazer, e saber como foi o começo e como será o fim não muda nada, e estamos sempre no meio – agora de um lamaçal – nem passado, nem futuro – e ninguém bate o martelo, muito menos o Papa.

O que penso que sei é que a evolução tem fases e não pode ser que acabe aqui, em nós, assim sem mais nem menos, só para dar serviço para o IBGE.

Tudo isso para falar de pessoas que pensam ser o topo da evolução humana. Que não precisam aprender mais nada, ou melhor, ninguém tem nada para ensinar nem algo a se descobrir já que a presença delas na Terra é um favor para os outros. Existem pessoas assim? Já vi algumas. E uma delas conheci – infelizmente – numa reportagem para um jornal de São Paulo, quando eu morava lá.


Bem, pensando em minha mãe como uma pedra, imagino
que ela tenha sido um diamante.  Algumas pessoas me
lembram uma esmeralda, outras, rubi, safira, água marinha….


Precisava entrevistar famosos sobre uma viagem que fora muito especial, um marco na vida deles. Não vou citar os nomes. É desagradável. Não é ético. Todas foram muito elegantes, colaborativas, e os casos contados, bons também. Menos uma.

Um publicitário de renome ( palavra mais pernóstica) parecia ter engolido o rei. Aconteceu assim: sou míope, uso óculos, então não enxergo a uma certa distância. Naquele dia, muito calor e sol, eu estava de óculos escuros (de grau) e quando cheguei à agência do rei na barriga, vi que havia esquecido meus óculos de lentes claras em casa. Acontece.

Depois de uma longa espera – acho que estava em um processo de criação muito importante – ele me atendeu. Ele de um lado e eu do outro de uma mesa enorme, bem larga. Tirei os óculos escuros porque é muito deselegante e sem sentido falar com alguém sem poder olhar nos olhos, ver o gestual. E me dei conta que àquela distância eu não poderia, digamos, interagir: ele se tornou uma imagem borrada. Então, com educação – sou educada – expliquei que esquecera meus óculos e sugeri sentarmos mais próximos um do outro. Ele me pareceu indignado e com ar meio enojado, respondeu:

– Não, não!! Está muito bom assim.

Minha vontade foi de ir embora sem dizer nada. Apenas dar as costas. Mas, sabem… é trabalho, precisava do dinheiro. Então não tive dúvida: coloquei os óculos escuros e falei com ele. Aliás, só pra encerrar: uma entrevista pífia, uma historinha sem graça. Como ele. Há pouco tempo, li uma declaração dele na imprensa afora, que enfureceu muitas mulheres. Pensei: não mudou nada. Qual pedra ele poderia teria sido?

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

No abismo

Havia uma criança, sei que ela estava lá, com os olhos escuros cheios de lágrimas, esperando por alguém, não sei quem, quando os cavalos passaram galopando balançando as crinas sedosas, espirrando água das poças da rua esburacada. Um deles parou de repente e olhou para a criança como se criança também fosse, e começou a relinchar puxando conversa e a criança parecia entender porque gesticulava em resposta. Acho que ela pedia socorro, mas o cavalo tinha de continuar a marcha e não fez nada.

Não vi quando a criança desapareceu, quando olhei não estava mais lá, nem o cavalo, somente um cachorro pequeno de rabo comprido e pelo amarelo e olhos vermelhos. Fiquei com medo, muito medo, pois parecia que ia me arranhar e morder. Então, eu chamei alguém, não sei quem, que veio correndo em meu socorro, me puxou pela mão e deslizou comigo por um abismo do qual nunca voltei.

Quando acordei estava olhando para o fundo na esperança de encontrar um apoio, mas não via nada, apenas uma espiral que levava para mais fundo ainda, talvez para o centro da terra. Seria eu Alice? Mas nada me parecia ser o país das maravilhas e sim, um amontoado de dores e lágrimas de pessoas esquecidas no corredor da existência. Procurei forças para me apoiar em um pedaço de tempo, mas o tempo se esvaiu e senti que não teria mais salvação. Mas qual seria a salvação? Uma voz me disse que não seria ali que encontraria a salvação, pois a Terra se abrira em todos os cantos do mundo e, em todos os lugares, as pessoas estavam sofrendo, jogadas de um lado para o outro, rejeitadas aqui e ali, mães não podendo amamentar seus filhos, atravessando mares revoltos, afogados nas águas azuis, para fugir da fome e da morte, das bombas atiradas por homens sem coração, destruindo casas, palácios e jardins e mais os pactos de sangue, as ameaças nucleares, as florestas ressecando, os governantes imorais, o Brasil enlameado. Por quê? – perguntei. Mas a voz não soube responder, pois ela mesma já havia fugido do rugido ensurdecedor de monstros pré-históricos que surgiam ressuscitados cobrando vingança por eras passadas.

Índios passaram galopando, armas em riste, gritando guerra, reclamando terra, lagoas e matas, montes de esqueletos se moviam buscando ar no fundo das covas, balas chicoteavam no ar, crianças caíam atingidas no peito. Então, não quis ver mais nada, nem ouvir e deixei o abismo me engolir.

Ah! Mundo. Ah! Mundo, para quê foi criado? Para isso?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Amor para o Rei Lear

Ele parecia um velho feliz. Quem dizia isso? Todos os que o conheciam. Sim ele estava sempre sorrindo apesar da artrite que corroía suas articulações, das dezenas de comprimidos para o coração, diabetes e pressão alta. Mas ninguém nunca perguntou o que Rafael sentia, como ficara depois da morte de sua mulher, Lavínia, quando ficou sozinho naquela casa grande onde foram tão felizes, as noites insones, a solidão dos domingos infindáveis. Nem mesmo os filhos, para os quais ele deixou a empresa próspera, construída com muito suor e pelo comando da qual eles viviam se digladiando. Já disse várias vezes que os filhos não conhecem a história de vida dos pais, como se eles, os pais, existissem apenas depois que eles, os filhos, ficavam adultos.

Nas ocasiões em que estavam juntos, como um almoço comemorativo, Natal e outros desses momentos em que todos parecem se amar, depois de três taças de vinho as coisas mudam um pouco de direção e os assuntos começam a ficar estranhos e cada um vai para um canto formando grupinhos de conversas paralelas. Família.

Ninguém falava com Rafael, podem estar pensando. Engano, falavam sim: como vai a perna, melhorou um pouco? E o cachorro, está lá ainda? Aquele tipo de pergunta feita para não ouvir a resposta, do tipo função fática de linguagem, conversa de elevador – vai descer no quarto andar mesmo, pra que ouvir a resposta? – se é que podemos levar para um lado mais gramatical.

E ele tinha sempre um sorriso, um sorriso de quem sabe ser a vida assim mesmo, um grande teatro que inspira dramaturgos desde que o mundo é mundo. Depois de comer duas fatias de tender ou peru e uma fatia de bolo, ele voltava para casa de táxi ou levado por um amigo do amigo dos filhos que, condoído, dizia: – Eu levo o senhor, não me custa nada – Existe sempre alguém gerado numa forma adequada.

E ele passava três ou quatro semanas sem notícias, sem alô, sem “como vai”. Quando ligava para um deles – os filhos – era tudo muito rápido, estavam ocupados, não podiam falar agora, ligo mais tarde. Ligavam?

Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu. Se eu tivesse estudado em tal escola, se, se, se… Simples assim? Não: é um pouco mais complicado. Mas esse não é o tópico da história.


‘Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu’


Rafael tinha um cachorro, Titã, seu companheiro silencioso, sempre encostado nos pés do dono quando este acomodava os ossos doídos na velha poltrona azul para ler ou assistir a um programa qualquer na televisão, ou passar longo tempo mergulhado em lembranças. E em uma dessas caras lembranças, estava Helena, mas não era a de Troia.

Rafael estava fazendo café quando ouviu a campanhia, numa manhã de setembro, e ficou intrigado, pois era ainda muito cedo para alguém fazer uma visita, o que, aliás, era raro. Não era uma visita e sim a vizinha com um envelope na mão dizendo que o correio colocou a carta por engano em sua caixinha. Uma carta? De quem? De onde? Nesses tempos de email e Facebook? Olhou o remetente e seu coração taquicardou: Helena Viesti.

Caro Rafael… Helena queria revê-lo… sua primeira namorada… Meus Deus, quanto tempo faz isso? Não vou contar aqui a história de Rafael e Helena, só posso dizer que o passado voltou e, com ele, a sensação de ainda ser aquele moço de cabelos negros e olhos verdes fazendo juras de amor àquela moça loira de olhos negros no banco da praça, encantada com o sorriso fácil e gentileza do amado, falando em casamento e felicidade sem fim.

Bem, os caminhos se bifurcaram; ela casou com Alfredo e ele com Lavínia. Mas existem os compartimentos secretos, as caixinhas do coração mesmo infartado. Vamos avançar a fita, pois meu espaço no Palavreira não é tão grande assim.

Helena veio, estava viúva, se encontraram, nenhum dos dois se importou com as rugas e a flacidez do outro. Decidiram ficar juntos, com Titã, é bom lembrar. Mas – existe sempre o mas – os filhos discordaram: – para que isso agora? O senhor vive tão bem sozinho, quem é essa mulher? Ela pode estar querendo tirar proveito de você, de suas posses.

– Que posses? Uma casa, uma poupança de merda e um cachorro? A empresa já é de vocês. Foi um rebuliço. Rafael ouviu sermões, impropérios e ameaças de interdição.

Então, decidiu acabar com o desconforto e reuniu os filhos para uma conversa – eles foram esperando a desistência do pai de ter alguém ao seu lado, de um final de vida mais suave, um afago, uma companheira para todas as horas.

– E então, papai, pensou bem na loucura que está fazendo?

Um filme passou diante de seus olhos. O roteiro fica para a imaginação de todos.
Então, depois de um longo silêncio, Rafael, aquele homem sempre tão gentil, sorriu e respondeu lentamente.

– Sim. Pensei. You know what? GO FUCK YOURSELF!!

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Meu primeiro amor

Meu primeiro amor foi um menino de não mais de 13 anos. E eu, bem, deveria ter 11. Nunca conversamos. Apenas nos olhávamos de longe e quando o via meu coração dava pulos que eu não sabia reconhecer, pois nunca sentira nada igual.

Isso aconteceu em uma de minhas férias da escola passadas na casa de uma tia querida, em uma cidadezinha, quase uma vila, não muito longe daqui.

Para mim, aquele menino não era um príncipe, porque eu não acreditava em contos de fadas, pois em minhas tardes de domingo eu assistia ao seriado do Zorro no cinema do bairro. Ele era uma pessoa que eu sempre soubera existir em algum lugar me esperando, mas só me dei conta disso quando o vi pela primeira vez. Voltei para casa e pensava nele todas as noites antes de fechar os olhos para dormir. E sonhava com o dia em que voltaria a vê-lo. E o via diante de mim cada vez que meu pai colocava um disco do Caruso na vitrola. Alguém sabe o que é vitrola?

Nas férias seguintes, voltei à casa de minha tia e tudo se repetiu. Nos víamos e parecia haver entre nós um entendimento como se pertencêssemos um ao outro e nada pudesse quebrar aquele encanto. E assim foram três anos seguidos até que minha tia se mudou daquela cidadezinha linda para outra muito, mas muito longe dali. Quando soube da mudança comecei a chorar e ninguém entendia o motivo.

Nunca mais quis passar as férias na casa de minha tia porque naquela outra cidade não havia nada que eu pudesse amar mais do que aquele menino.

Quando adulta, um dia voltei lá. Fiquei dando voltas pela cidade como se fosse possível encontrá-lo e, mesmo se isso acontecesse, será que nos reconheceríamos? E o que eu diria a ele? Eu que nunca ouvi sua voz, nem sei a cor de seus olhos.

Vivi outros amores, com intensidades diferentes porque o coração tem compartimentos onde sentimentos se alojam e um não interfere no outro, como caixas bem trancadas, e mesmo quando esse amor acaba, na verdade não acaba, fica sempre um resquício, como fímbrias em uma janela fechada.

Sim tive outros amores, mas nenhum como aquele que me fez conhecer esse maravilhoso e inexplicável sentimento, capaz de permanecer intacto, preservado, envolvido em uma cápsula e, quando quero me certificar de que estou viva, eu abro e sinto que, como disse Jean Cocteau, “amar é descer bem depressa de elevador”.

Acho que ele disse isso. Se não disse, eu digo.

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Ângelo de Jesus

Um homem tentou invadir a entrada principal do Palácio do Planalto.

A manchete é antiga. Mas ficou gravada. Os jornais, os sites e blogs remetem a um terrorista, munido de fuzil e granadas para passar por cima de quem quer que encontrasse pela frente, disposto a chegar ao gabinete presidencial e fazer sabe-se lá o quê com o presidente.

Um atentado? Jogar uma bomba? Nada disso. A cena era outra.

O que queria o  lavrador baiano Ângelo de Jesus, de Pindobaçu, nas salas refrigeradas do Palácio? Que mal poderia fazer um Ângelo, ainda mais de Jesus, ao presidente popular, a não ser pedir socorro, como pediu ao ser dominado pelos seguranças bem nutridos, no chão e algemado como mostra a foto? “Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo.

De qualquer forma, entrando ou não na sala do presidente, seu pedido seria de socorro. Um homem que se aporta da Serra das Esmeraldas até Brasília e passa quatro dias sem comer para falar com o chefe da nação só pode estar em desespero. O desespero que ainda se avizinha de milhões de brasileiros diariamente, desempregados, subempregados, assistindo aos desmandos e à indiferença oficial, ao desvio de dinheiro público, às obras abandonadas de estradas, escolas e hospitais, enquanto nos ambulatórios superlotados de doentes e lamentos  os médicos não sabem a quem socorrer primeiro, a quem escolher para viver.


“Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo


Por que um lavrador estava há quatro dias sem comer? Justo um lavrador, um homem que aduba a terra, planta e reza para a seca não matar e sobrar um saco de feijão para alimentar a família durante o ano?

Alguma alma boa, um bombeiro talvez (os bombeiros têm alma boa), deve ter dado a ele um prato de comida, um sanduíche algum pão com ou sem manteiga….

Será que deram? Prefiro pensar que sim. E um copo d’água. A reportagem não diz.

Os jornais não contaram a história de Ângelo de Jesus, aquela bela matéria de interesse humano, com uma trajetória comum a todos os pobres e esquecidos nos rincões de norte a sul, ainda mais esquecidos nos nordestes.

Não. Foi só um fait divers. Quem se importa com a vida de Ângelo? Quem se importa com o Brasil?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Madame Guilbert

Obra ‘Madame Guilbert Gants Noir’, de Henri de Toulouse-Lautrec

Madame Guilbert sempre me emocionou. Talvez não seja uma das principais obras de Toulouse Lautrec, mas é a que mais toca meu coração. O que tem ela de especial? Nada para alguns olhares. Muito para outros.

Fico imaginando como ela, cantora famosa gravitava naquele ambiente repleto de sensualidade ou de promiscuidade, não sei, ao lado de outras damas, as que passavam a noite à espera de clientes para garantir a vida na Paris, quase na virada para o século XX – cansadas de se deitarem com tantos senhores com cheiro nauseante de bebida e fígado empedrado – atravessando as noites maçantes como são em todos os lugares do mundo, à espera de mais um dia.

No Moulin Rouge, em Montmartre, a figura triste de Lautrec emana solidão e abandono e suas obras não poderiam ser diferentes, pois perpetuou imagens difusas, como se as captasse através de um espelho embaçado ou de uma névoa que encobria a verdadeira face daquela suposta alegria. Paris era uma festa? E nesse ambiente, em sua obsessão em retratar o irretratável como se a alma de cada uma já estivesse pronta em sua paleta de cores borradas, o artista quase anão, quase deformado, embebido em absinto, registrou a solidão que hoje nos encanta. Os bordeis parisienses foram a casa de Lautrec, convivendo com aquelas mulheres que me parecem tão distraídas em suas poses meio desleixadas diante de um homem triste e sem amor, olhares absortos que atravessam os séculos e ocupam as grandes galerias de arte do mundo.

Pintura de 1894 de Toulouse-Lautrec

Voltemos a madame Guilbert, minha preferida. Também gosto de Jane Avril, dançarina de can-can e La Goulue, no famoso cartaz de Lautrec, ao lado do parceiro Valentin, e todas as telas dele. Mas, madame Guilbert me intriga. Ela, me parece, tinha o olhar perspicaz, olhando ao redor com um meio sorriso cerrado nos lábios, como se analisasse com agudeza aquele ambiente mundano,na Belle Époque, ela diferente da Grande Maria recostada displicente em uma poltrona exibindo sua nudez sem erotismo, como se nada no mundo lhe interessasse.

Para aonde foi madame Guilbert depois das telas de Lautrec? Quero saber mais sobre ela, se viveu grandes amores, se teve filhos, se morreu pobre ou se amealhou fortuna… Um fato ao menos eu conheço. Ela foi sepultada no famoso cemitério Père -Lachaise, em Paris, onde repousam famosos como Honorè Du Balzac, Oscar Wilde, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec e Jim Morrison, só para citar alguns.

Ah, madame Yvette Guilbert, queria tê-la conhecido! O que você diria desses meus delírios sobre as noites encarceradas nos quadros de Lautrec? Em meus delírios, vejo e ouço madame Guilbert cantando La Passion Du Doux Jesus ou Quand Vous Aime, em seu vestido decotado e luvas pretas de cetim até os cotovelos, sendo aplaudida nos vários palcos por onde brilhou. Vocês sabem… eu deliro mesmo.

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

O Testamento

Quando Teresa Maia morreu, afetada por uma dor no peito, os parentes, ainda no velório, começaram a pensar nos bens que ela poderia ter deixado. Viúva, mãe de quatro filhos, Teresa tinha um modo de vida confortável, amparado pela aposentadoria deixada pelo marido, engenheiro de uma grande empreiteira, e pelos trabalhos de pintura em porcelanas para uma loja de louças finas, uma arte cultivada desde a mocidade. Sempre que os filhos precisavam – e precisavam cada vez mais – estava pronta para assinar um cheque. Pouco sabiam sobre sua vida. Apenas que nunca votara em partido de esquerda, ao contrário deles, defensores ferrenhos de programas sociais. Nunca perguntaram sobre sua vida, sua história, seus anseios. Mas… quem sabe sobre a vida dos pais? Como se conheceram, onde nasceram? A história dos pais pouco interessa aos filhos, netos e afins.

Teresa Maia era uma mulher bonita. O tempo não causara muitos danos ao seu corpo. E ali, de mãos cruzadas sobre o peito, livre de estresse, deitada para sempre em um leito que não escolhera, estava mais jovem que seus 60 anos poderiam aparentar. Parecia segurar um leve sorriso, um tanto sarcástico. Conversa vai, conversa vem, os filhos souberam que ela havia deixado um testamento.

Um testamento? Teria ela acumulado bens sem que soubéssemos? – perguntaram- se os filhos. E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um. O mais novo, anteviu suas dívidas amortecidas, quem sabe saldadas, a compra de um carro novo e uma viagem ao Havaí, seu sonho de adolescente. Os outros também faziam planos mentalmente enquanto olhavam o rosto inerte da mãe, como se a pedir desculpas pelos pensamentos torpes àquela hora tão triste.


“E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um”


Tudo acabado, voltaram para casa à espera de um chamado. Nada. Passaram-se os dias e resolveram entrar em contato com o advogado que, solícito, desculpou-se pelo atraso e foi logo marcando o encontro em seu escritório.

Aquela era a hora mais esperada. Todos sentados, bem vestidos como pede a ocasião, aparentavam um ar blasé, como se nada de material lhes interessasse, como se a saudade da mãe embotasse qualquer resquício de pensamento materialista. Em segredo, a passagem para o Havaí com uma esticada por outras ilhas exóticas já estava até reservada, e nas outras cabeças amorosas os planos já tomavam formas exatas.

E veio a leitura. Silêncio que a hora é sagrada. Primeiro, o extrato bancário de Teresa Maia, que fez engasgar todos os quatro de um vez: muito dinheiro. Depois, os imóveis. Outro susto.

Como ela pôde esconder tudo isso de nós? – pensaram ao mesmo tempo. Finalmente, o desfecho: “Meus filhos, sei que me amaram de todo o coração e sou grata a todos. Penso que dinheiro e bens não pagam o amor de ninguém. Mesmo assim, deixo para vocês quatro, 5% do meu patrimônio. Sei que não vão se importar, pois sempre os vi e ouvi defendendo ideias e pensamentos de esquerda, contrários ao capitalismo selvagem, esse que torna os seres humanos tão mesquinhos. Portanto, comunico que os outros 95% serão empregados em uma causa nobre, ou seja: para entidades beneficentes, cujos nomes estão com meu advogado. Ah, não se esqueçam de pagar pelos serviços dele e continuem com seus nobres ideais. Um beijo de sua amada mãe”.

PS: Façam bom proveito.”

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.