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Colégio Integrado Véritas. Hoje o dia está chuvoso

Estudei no mesmo colégio dos nove meses (quando filha única, meu pai observou o grau de colagem da minha mãe em mim e decretou que eu iria para a escola – obrigada, pai!) aos 14 anos, quando completei o que seria hoje o ensino fundamental. E só saí porque a escola parava aí.

Durante o primeiro ano do colegial (hoje ensino médio), em uma escola em que fui muito feliz (e, sim, eu era feliz e sabia), cheguei a sair correndo de algumas aulas para ter tempo de pegar um rabicho de aula no antigo colégio. Sentia falta não só dos professores, do porteiro e das supervisoras, mas da escola. Do prédio da escola. Das salas de aula pintadas de branco e verde claro. Das cortinas que balançavam com o vento e permitiam a entrada da quentura do sol. Do corredor de piso vermelho (era uma escola pequena do interior, com um só corredor no andar de cima). Do pátio, ao redor do qual ficavam as salas de aula do andar de baixo. Do palco no pátio, onde dançamos muito, inclusive fora de apresentações. Da cantina, especialmente da coxinha e do misto do Leco, que a gente dizia ser bom porque ele nunca limpava a chapa. Sei lá o que ele fazia, mas só de escrever “misto do Leco” já salivei. Sinto o cheiro e o gosto. Um rito de passagem foi poder passar a comprar um misto inteiro em vez de um meio misto. Outro foi poder sair da escola no intervalo para comprar pastel na feira. Cresci vários centímetros a cada saída.

Muitas das minhas amigas atuais conheci no Véritas. Foi lá também que segurei na mão do primeiro namorado, depois de sofrer horrores porque antes de mim ele namorou algumas amigas minhas. E nos falamos até hoje, o ex, a ex do ex, a ex ex do ex, eu ex, todo mundo atual.

Foi no Véritas que aprendi a gostar de ler. A fada que tinha ideias, E o vento levou… o balão de Joaninha, O balão amarelo, O urso com música na barriga, Tonzeca, o calhambeque. Depois vieram A hora do amor, A hora da luta, A droga da obediência, Os pássaros selvagens, O escaravelho do diabo, O cadáver ouve rádio. E foi no Véritas que a professora de português, sem precisar nomear ou explicar o que estava fazendo, me mostrou o prazer em ler, algo sobre o qual agora falo diariamente. Quando estávamos lá, um bando de adolescentes brancos de classe média de uma cidade do interior do estado de São Paulo, reclamando que não estávamos gostando de Capitães da areia, ela soltou uma das frases que marcaram a minha vida: “parem de ler”. A professora enlouqueceu, devo ter pensado, mas ela continuou: “parem ou vocês vão pegar birra do livro e do Jorge Amado e leitura não é para isso”. Apresentou-nos outras opções, escolhemos Cem dias entre céu e mar e não pegamos birra de Jorge Amado. Eu, pelo menos, não peguei. E li e reli Capitães da areia pensando que a professora foi muito sábia. Era preciso mais amadurecimento e mais nariz para fora dos muros das nossas casas e da nossa escola para aquele livro.

Agora endoidecida com as aulas virtuais dos meus filhos, sou diariamente invadida pelas lembranças do Colégio Véritas. Onde eu estava quando estudei a formação da cidade de São Paulo? As aulas da professora de História, outra mulher que abriu minha cabeça para sempre: os livros de história do Brasil mentem, ela disse para crianças de dez ou onze anos. Como busquei ajuda entre os professores e os amigos para conseguir fazer as operações com números decimais?

Perder dois anos do que vivi ali, penso enquanto vejo meus filhos se relacionando pelas telas, seria perder muito. Fico triste, e quieta, porque a vida se impõe. Se podemos nos manter em casa, é o que estamos fazendo. E tento espantar as lembranças quando se tornam mais doídas do que acolhedoras.

Então vejo uma postagem no Facebook. O professor de Educação Física dos meninos que foi com alguns alunos até a porta da escola. Tiraram fotos. Deram uma volta no quarteirão, como tanto fizemos nas aulas e nos desfiles da primavera e de 7 de setembro e sei lá de que mais, era desfile para quase tudo e disso não tenho saudades (que desfilem em marcha os militares sem impor isso aos estudantes), eu quase sempre na frente levando a bandeira por causa da minha altura. Foram até a feira comer pastel. Lembraram da kombi do zelador da escola, da qual ele morria de ciúmes. E tiraram foto do miniginásio, que para minha surpresa tinha esse nome não porque era um apelido fofo e carinhoso colocado por quem gostava de atravessar a rua para ir até lá jogar vôlei e handebol e pular o plinto e dar cambalhota, no que sempre me dava mal. Era miniginásio porque era mini mesmo.

Crédito: Professor Zé Geraldo

Cresci. Envelheci. E tudo o que vivi lá me constitui.

Olho para os meus filhos, há mais de um ano vendo os professores e os amigos pelas telas. Penso nos porteiros passando as mãos nas cabeças das crianças na chegada e na saída. Os votos de boa aula e bom descanso. Tudo aqui aperta, os pulmões, o coração, o estômago, a garganta, o fígado. Se podemos proteger principalmente as pessoas que dependem de transporte público para trabalhar, não sairemos de casa para que elas não saiam também. Pelo menos não por nossa causa. Não se passa pelo que estamos passando sem (muita) dor.

Como será a crônica que meus filhos escreverão daqui a trinta anos?

Sobre a chuva e memórias de infância

* Silvia Pereira

Sempre adorei ver e sentir o mundo molhado de chuva. Gosto de como fica o ar, do cheiro de agradecimento das plantas, do verde vibrante que elas espreguiçam ao toque dos pingos, do barulho deles caindo mansos no chão quando chuva fina e do seu cochicho quando garoa.

E como tenho saudades do cheiro de terra molhada de minha infância! (não o encontro mais pela cidade impermeabilizada)

Cresci numa avenida sem asfalto que margeava o córrego que dá nome à minha cidade natal. Lembro-me de correr para a janela do quarto de mamãe, que dava para a rua, para aspirar os cheiros e cores da terra molhada – para os adultos, compunham um quadro desolador de lama, mato e água suja.


“E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na
chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas”


Sempre achei aconchegante o escurinho que ficava na sala de nossa casa, toda fechada – uma raridade em um tempo de baixa criminalidade, quando as portas passavam o dia abertas, com vizinhos entrando e saindo sem bater palmas (campainhas eram luxo) e as crianças brincando na rua.

Às vezes, em dias de chuva, eu improvisava uma sala de cinema, reforçando a proteção das cortinas da sala com cobertores. Sentia-me protegida naquele escurinho temperado pelo barulho da água caindo fora.

E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas que algumas casas apontavam para as calçadas, pulando poças ou aterrissando nelas!

E não me resfriava. Mamãe recolhia conformada a roupa ensopada que eu deixava cair no canto do banheiro antes de me atirar sob o chuveiro quentinho. Eu dormia feliz em dias de chuva!

Enchentes

É uma ironia que eu tenha aprendido a amar a chuva tendo tido bons motivos para temê-la na infância. A avenida em que cresci era a Álvaro de Lima, que aguardou asfalto por décadas de promessas de políticos em campanha e um pouco mais por obras de contenção de enchentes no córrego Ribeirão Preto, que margeia.

Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio. Quando o transbordamento ganhava a rua, era uma correria geral em casa para dar conta de erguer móveis sobre cavaletes e subir utensílios para cima de camas, guarda-roupas e sofás antes da “grande invasão”.

Após anos de perdas valiosas – de móveis a lembranças afetivas insubstituíveis -, minha família ganhou uma eficiência espantosa em preparar-se para a enchente com um mínimo de prejuízo.

Eu me ressentia de ser mandada para casa de vizinhos de ruas mais altas, enquanto minhas irmãs ficavam para ajudar na operação. Lembro-me de assistir com inveja, no colo de um vizinho, à minha irmã do meio nadando na rua alagada como se numa piscina.


“Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe
abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio”


Anos mais tarde soube – porque não revelavam muita coisa à caçulinha da família – que a “diversão” lhe rendeu uma nefrite (na certa engolira a água contaminada). Até hoje seus rins guardam memória da nefropatia, que quase a levou de nós, marcando um período de sofrimento para meus pais.

E pensar que as enchentes de minha infância são lembradas como as dos “bons tempos” pela família, porque a água nunca subia acima de meio metro dentro de casa – passávamos o ano inteiro olhando para aquela faixa marrom que a invasão do córrego deixava em nossas paredes.

Minha família conseguiu mudar-se para uma Cohab em minha adolescência, mas alguns anos depois a mesma irmã que quase morrera de nefrite foi morar com o marido na casa de nossa infância. A fachada ganhou grades altas e, quando suas filhas chegaram, já não tinham permissão de brincar na rua.

A cada ano, as enchentes deixavam uma faixa mais alta de sujeira nas paredes – resultado de adensamento populacional sobrecarregando os córregos com esgoto sem tratamento.

Eu trabalhava fora da cidade quando recebi, desesperada, a notícia de que a família de minha irmã fora resgatada de sua própria casa por um bote do Corpo de Bombeiros, após assistir do telhado a água engolir todos os seus pertences.

Aprendi, enfim, a odiar enchentes.