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O uivo do monstro

Nicorvo deserta

Para mim, sem dúvida, daria para gravar um bang-bang em Nicorvo. Ela é feia. É empoeirada. Tem 400 habitantes e é quase sem cor. Uma cidade que para nós foi como um vira-latas esquelético, sofrido, com sarna e dentes afiados, que corre atrás do próprio rabo e nunca late. Tem pelos curtos e falhos e, de bom, carrega um sininho na coleira.

Na imensa planície de Parma (Itália), Nicorvo se deita atormentada por insetos no brejo das plantações que a rodeiam, de arroz, trigo ou farro, sabe-se Deus.

Ao seguirmos a pé para lá, não sabíamos o que nos esperava. Se soubéssemos, teríamos cancelado a caminhada. Mas não. Inocentemente fomos trilhando enquanto o monstro se armava. Enquanto partíamos da acolhedora Vercelli, o tal se formava não se sabe de onde, mas já zunia seu vento silencioso.

Andando, nós quatro tivemos uma das conversas mais íntimas de todo o mês que passamos juntas. Cada uma falou sobre a morte de seu pai. As histórias foram ouvidas sem pressa, sentidas. Cada palavra de tristeza foi deixada vagando entre aquelas plantações.

Logo, dois avisos dissiparam as lembranças pesarosas. O primeiro: como se antecipasse o suspense do que viria, toda a água de nossos cantis se acabou. O segundo e principal aviso: o tempo fechou de tal modo que nos calou completamente.

Já andávamos, àquela altura, olhando o chão, de cabeças baixas, desanimadas e com pressa de chegar. Parecia que tínhamos ido até o fundo de uma cisterna vazia. Agora estávamos perto. Ouviam-se só os passos cadenciados das botas, distantes umas das outras, e a sensação do barulho que não se concretizava, como a vibração longínqua de alguma garganta muda.

A Regiane, por formalidade, achou por bem fotografar o lugar para espantar o arrastado do dia e, ao levantar os olhos e focar o horizonte, surgiu na tela a ameaça da qual não teríamos como escapar…

A foto é ruim, mas o fato é real: este foi o registro do furacão

“Olha, olha o que vem vindo… um furacão!”

Não tínhamos opções. Não havia onde se proteger naquele descampado e só poderíamos sair da estrada se afundássemos no brejo das plantações, à direita, ou se nos agarrássemos às poucas árvores à esquerda – mas furações arrancam árvores. Na estrada, voaríamos pelos céus.

O tempo fechou ainda mais e vimos o furacão se aproximando. De longe, ele parecia um sino de igreja invertido … e era bonito.

Cada uma rezou do seu jeito. Eu achei que não faria muita falta, mas pedi a Deus que me deixasse aproveitar mais a aposentadoria que mal começara e lamentei pelo sofrimento dos meus. A Renata escreveu “mamãe ama você” para a filha, no aplicativo do celular, e enviou, emocionada. A Regiane também pensou na filha, e a Kele em muita gente.

Sabíamos que não daria tempo de chegar à cidade com nossas pernas e minutos curtos, porque o monstro estava cada vez mais perto. Como seria bom se as mochilas fossem asas ou se aquilo fosse a gravação de um bang-bang e nos bastasse galopar em puros-sangue até alguma tábua de salvação!

Ponderamos que antes da cidade havia um cemitério e se o alcançássemos poderíamos achar alguma construção para nos proteger, mas pelo andar da carruagem nem mesmo conseguiríamos chegar nele vivas – com o perdão da ironia!

Vinha vindo um furacão como nunca imaginamos e o tempo se fechava para a tempestade. Os pingos começavam, ventava e trovejava. Contra isso é que vestimos pela primeira vez os corta-ventos que trazíamos, como se eles pudessem… deixa pra lá.

Provavelmente nunca mais encontraríamos com a Sheila e a Adriana, as duas irmãs peregrinas que chegaram a Nicorvo algumas horas antes, vindas de Milão.

A estação de trem da pequena Nicorvo

As irmãs

Quando Sheila e Adriana desembarcaram, assustaram-se com o mau tempo e pensaram nas amigas à pé. Acharam a cidade morta, sem gente nas janelas.

Ninguém atendeu à porta da casa paroquial que nos abrigaria. Aquelas ruas não tinham placas e as casas não eram numeradas. A Prefeitura estava fechada. Não havia nem sombra de crianças. Os motoristas dos carros não paravam. Ninguém se envolvia. Ficaram as duas na rua à espera de uma alma boa.

O homem que surgiu para abrir a porta deve ter saído de um bueiro, ou talvez estivesse escondido atrás do poste. Deu-lhes instruções apressadas em um italiano para turista não entender, mas, pelas feições dele, não podia isso, não podia aquilo, não podia… não.

As horas de fome das irmãs passavam contraídas. Não acharam ali padaria, mercado, restaurante ou venda alguma aberta e só conseguiram comprar meia dúzia de ovos, por 2 euros, de um romeno com quem conversaram pela língua da penúria. Ele disse que Nicorvo era assim mesmo, mas revelou que o pub abriria à noite – “isso, se o furacão não chegar”, ressaltou. Mas as duas não entenderam e foram tranquilamente cozinhar os ovos para nos receber logo mais.

E de volta à estrada…

Acho curiosa a sensação de se sentir espreitada pela morte e digo com conhecimento de causa, porque não foi a primeira vez. Traduz a seriedade única do “agora é o fim”. Os pensamentos sobre como vão ficar as coisas, as desordens, as perdas, os amores, as dores, a puxada de conta passam rápido ante a magnitude do que nos espera e ficamos ali, à mercê de um destino. O que tive não foi de forma alguma medo, mas uma postura de me soltar para o inevitável.

Na hora H, pensamos tudo o que tínhamos para pensar tão rapidamente que em pouco tempo voltamos a andar na velocidade de sempre, à espera do abraço. Não havia o que fazer. Não corremos às árvores nem fomos ao brejo.

Pode ser que, de tanto nos abismarmos, tenhamos perdido o interesse do monstro. Depois de tudo, o furacão fotografado nos virou as costas. Desfez-se lentamente e não se sabe ainda em troca do que fizera o blefe de surgir.

De um minuto para outro, nada foi o que era para ser. Ele se esvaiu. Deve ter vindo só para negritar nosso desamparo, para sublinhar o tema do dia, antecipar o tom obscuro e ranzinza da cidade com cara de vira-latas e nome de pássaro.

Assim como veio ele se foi e tudo aconteceu tão rápido que, quando olhamos de novo para o céu para conferir, nosso algoz já tinha sumido.

Foi como se tivéssemos tido um pesadelo coletivo… como se tivéssemos feito parte de um show macabro.

A sorte é que o tínhamos fotografado para provar às outras o motivo de nossa alegria quando as encontramos.

Fomos ao pub só porque, afinal, um ovo não matava a fome de ninguém e precisávamos comemorar.

Ao fim, o pub era ótimo… o sininho da coleira. A Sheila e a Adriana nos contaram as aventuras de terem chegado ali em uma locomotiva tão antiga que dava muito, mas muito medo de que ela tombasse nas curvas – outro monstro longilíneo engolindo medos pelos trilhos.

Nós detalhamos nossa praticamente morte e ressurreição.

Qual o jeito de chegar em Nicorvo sem sentir medo não ficou sabido.

Quando voltamos pelas ruas silenciosas, apreciando a paisagem com olhar de sobreviventes, nos parecia que o cachorro bravo estava sonhando com a namorada. O dia assustado pelo furacão, pelo trem caquético, pelo risco de não termos onde dormir e pela sombra da fome fora neutralizado pela noite no cenário de sallon que redimia os pecados da cidade-bicho.

Não demorou para pegarmos no sono que nos repararia para seguirmos rumo à próxima aventura.

Nosso destino do dia seguinte, Mortara, tinha no nome algo de funesto…

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

Este viajandão baseado em fatos bem reais é a quarta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Vercelli a Nicorvo, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Fio Maravilha, clique aqui