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Mãe de pais

Nunca fui mãe.
Não cheguei sequer a engravidar, portanto não conheço a sensação de receber um teste positivo, de ter meu corpo se transformando pra formar um novo ser e confesso que não invejo conhecer a famosa “mãe de todas as dores” (com o perdão do trocadilho) de parir uma criança de parto normal sem anestesia – Deus sabe que conheço muitas dores físicas incapacitantes e não sei se aguentaria uma pior!

No entanto, sempre tive o maior respeito por pais e mães. Respeito tanto que, apesar de sempre ter desejado filhos, não tive coragem de tentar engravidar quando finalmente pude escolher – antes faltava um pai, depois estabilidade financeira e depois tempo, mas o que realmente me impediu foi a covardia. É que cresci filha caçula em uma família de poucos recursos, com um pai que passava a semana fora para atender clientes em outras regiões num tempo em que telefones fixos eram luxo e celulares uma ficção. Então assisti muito de perto aos sacrifícios e dificuldades enfrentados por minha mãe para conciliar a criação das três filhas com o dinheirinho extra que precisava fazer olhando filhos de vizinhos e prestando serviços de manicure. Depois testemunhei a loucura que foi para minhas irmãs mais velhas conciliarem trabalho e maternidade.

Faltou coragem da minha parte, mas Deus achou um jeito de me fazer experimentar um simulacro de maternidade: mexeu seus pauzinhos para garantir que eu, entre as três irmãs, tivesse como cuidar mais de perto de meus pais quando minha mãe perdeu toda a mobilidade. Foi quando finalmente entendi a utilidade de ter sofrido um acidente grave de moto que me deixou quase um ano sem andar entre 2016 e 17 – recebi todo o amor e suporte de minha família na ocasião, mas mesmo assim senti na pele como é difícil depender fisicamente de outro ser humano.

Depender do outro implica muito além de vulnerabilidade física, mas também (e muito mais) vulnerabilidade emocional e psicológica; implica muita vergonha por se ter sempre companhia ao fazer necessidades fisiológicas; culpas – como, por exemplo, de sua bexiga funcionar tão bem que o cuidador fica com o sono picotado por ter de posicionar a comadre pra você mais de uma vez na madrugada; enfim, de precisar que outra pessoa refaça toda a sua rotina para conseguir estar presente na hora de lhe dar café da manhã, almoço, jantar e banho.

Qualquer semelhança com os tão alardeados clichês da maternidade  (“nunca mais dormi depois de virar mãe”) não é mera coincidência. A era de longevidade em que vivemos tem nos imposto uma parentalidade intensa de nossos pais, já que o progresso da ciência anda mais rápido do que a competência de nossos governantes em garantir suporte institucional para uma qualidade de vida na maturidade. Nossa família ainda teve sorte, pois pude abrir mão (não sem prejuízos) de trabalhos para cuidar de meus pais, mas e os filhos que não podem parar de trabalhar?

Mesmo os que podem nem sempre estão preparados física e psicologicamente para isso. E é preciso estar, pois pode apostar que há muita diferença entre trocar fraldas e dar banhos em um bebê e fazê-los em um adulto de 80 quilos, de quem você já dependeu e a quem deveu obediência a vida toda. Isso sem falar na pesada carga mental que é administrar agendas de consultas médicas, exames, remédios, contas de farmácia que só aumentam (aposentadoria que não) e ter sempre que ligar antes pra saber como é a acessibilidade daquele laboratório ou consultório onde é preciso levar sua mãe cadeirante – PASMEM! Alguns não têm sequer estacionamento pra desembarcar deficiente e outros nem elevador como alternativa à escada (aprendi da pior forma!), etc, etc, etc…

O que também aprendi com as experiências de cuidada e cuidadora é que, quando se está no papel de quem cuida, nada pode ser sobre você! Não interessa se você tem todo o seu tempo disponível ou se precisa “equilibrar pratos” para conciliar os cuidados a seu idoso com os de sua família nuclear, seu trabalho ou o que for: não pode deixá-los sentir que atrapalham um pouquinho que seja seus planos, pois já estão se sentindo um estorvo e incapazes o suficiente sem você reclamar. E se você acha que é difícil estar no papel de cuidador, não tem noção do quanto mais difícil é estar na posição do cuidado, posso garantir!

Ter estado neste lugar me fez entender que não se trata de teimosia, por exemplo, quando um idoso leva tombo teimando em tentar fazer coisas que seu corpo não suporta mais: é vergonha de depender! E os choros fáceis não são manha ou chantagem emocional, mas vulnerabilidade psicológica decorrente de não se reconhecer em seu próprio corpo. As irritações e os maus humores não são rabugices, mas pura manifestação de impotência. Sem falar do medo de que nada nunca mais volte a ser como antes – e no caso deles o mais provável é que não volte mesmo.

Confesso que precisei do acidente para aprender esta empatia, pois meu déficit de atenção sempre me fez muito voltada para dentro de mim, portanto desligada do outro (o que me rendeu uma vida inteira de problemas de sociabilidade, mas essa é outra história). Posso dizer que, atualmente, sou uma “egoísta em reconstrução”, porque ainda não me tornei a melhor “mãe” do mundo para meus pais. Uma mãe virginiana, hiper organizada e responsável, sim, mas que ainda perde a paciência às vezes (me desculpo cada vez mais rápido!). Ainda preciso me lembrar de não reclamar perto deles e, ao menos por enquanto, não sei como disfarçar o cansaço e as dores físicas. 

Mas outra coisa que também acabei de aprender na prática (e aí vem outro clichezão) é que “nenhuma mãe é perfeita”… e está tudo bem! O importante é ter pra nós mesmas a consciência de que demos o nosso melhor. Tenho sido “a melhor mãe que posso” pra meus pais e peço todos os dias a Deus: por favor, Senhor, que esteja sendo suficiente!

 

P. S. Toda a minha gratidão ao meu amado marido, Márcio, que foi o melhor cuidador que uma acidentada poderia ter e nunca deixou transparecer o quão difícil era!

Um Amor para o Rei Lear

Ele parecia um velho feliz. Quem dizia isso? Todos os que o conheciam. Sim ele estava sempre sorrindo apesar da artrite que corroía suas articulações, das dezenas de comprimidos para o coração, diabetes e pressão alta. Mas ninguém nunca perguntou o que Rafael sentia, como ficara depois da morte de sua mulher, Lavínia, quando ficou sozinho naquela casa grande onde foram tão felizes, as noites insones, a solidão dos domingos infindáveis. Nem mesmo os filhos, para os quais ele deixou a empresa próspera, construída com muito suor e pelo comando da qual eles viviam se digladiando. Já disse várias vezes que os filhos não conhecem a história de vida dos pais, como se eles, os pais, existissem apenas depois que eles, os filhos, ficavam adultos.

Nas ocasiões em que estavam juntos, como um almoço comemorativo, Natal e outros desses momentos em que todos parecem se amar, depois de três taças de vinho as coisas mudam um pouco de direção e os assuntos começam a ficar estranhos e cada um vai para um canto formando grupinhos de conversas paralelas. Família.

Ninguém falava com Rafael, podem estar pensando. Engano, falavam sim: como vai a perna, melhorou um pouco? E o cachorro, está lá ainda? Aquele tipo de pergunta feita para não ouvir a resposta, do tipo função fática de linguagem, conversa de elevador – vai descer no quarto andar mesmo, pra que ouvir a resposta? – se é que podemos levar para um lado mais gramatical.

E ele tinha sempre um sorriso, um sorriso de quem sabe ser a vida assim mesmo, um grande teatro que inspira dramaturgos desde que o mundo é mundo. Depois de comer duas fatias de tender ou peru e uma fatia de bolo, ele voltava para casa de táxi ou levado por um amigo do amigo dos filhos que, condoído, dizia: – Eu levo o senhor, não me custa nada – Existe sempre alguém gerado numa forma adequada.

E ele passava três ou quatro semanas sem notícias, sem alô, sem “como vai”. Quando ligava para um deles – os filhos – era tudo muito rápido, estavam ocupados, não podiam falar agora, ligo mais tarde. Ligavam?

Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu. Se eu tivesse estudado em tal escola, se, se, se… Simples assim? Não: é um pouco mais complicado. Mas esse não é o tópico da história.


‘Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu’


Rafael tinha um cachorro, Titã, seu companheiro silencioso, sempre encostado nos pés do dono quando este acomodava os ossos doídos na velha poltrona azul para ler ou assistir a um programa qualquer na televisão, ou passar longo tempo mergulhado em lembranças. E em uma dessas caras lembranças, estava Helena, mas não era a de Troia.

Rafael estava fazendo café quando ouviu a campanhia, numa manhã de setembro, e ficou intrigado, pois era ainda muito cedo para alguém fazer uma visita, o que, aliás, era raro. Não era uma visita e sim a vizinha com um envelope na mão dizendo que o correio colocou a carta por engano em sua caixinha. Uma carta? De quem? De onde? Nesses tempos de email e Facebook? Olhou o remetente e seu coração taquicardou: Helena Viesti.

Caro Rafael… Helena queria revê-lo… sua primeira namorada… Meus Deus, quanto tempo faz isso? Não vou contar aqui a história de Rafael e Helena, só posso dizer que o passado voltou e, com ele, a sensação de ainda ser aquele moço de cabelos negros e olhos verdes fazendo juras de amor àquela moça loira de olhos negros no banco da praça, encantada com o sorriso fácil e gentileza do amado, falando em casamento e felicidade sem fim.

Bem, os caminhos se bifurcaram; ela casou com Alfredo e ele com Lavínia. Mas existem os compartimentos secretos, as caixinhas do coração mesmo infartado. Vamos avançar a fita, pois meu espaço no Palavreira não é tão grande assim.

Helena veio, estava viúva, se encontraram, nenhum dos dois se importou com as rugas e a flacidez do outro. Decidiram ficar juntos, com Titã, é bom lembrar. Mas – existe sempre o mas – os filhos discordaram: – para que isso agora? O senhor vive tão bem sozinho, quem é essa mulher? Ela pode estar querendo tirar proveito de você, de suas posses.

– Que posses? Uma casa, uma poupança de merda e um cachorro? A empresa já é de vocês. Foi um rebuliço. Rafael ouviu sermões, impropérios e ameaças de interdição.

Então, decidiu acabar com o desconforto e reuniu os filhos para uma conversa – eles foram esperando a desistência do pai de ter alguém ao seu lado, de um final de vida mais suave, um afago, uma companheira para todas as horas.

– E então, papai, pensou bem na loucura que está fazendo?

Um filme passou diante de seus olhos. O roteiro fica para a imaginação de todos.
Então, depois de um longo silêncio, Rafael, aquele homem sempre tão gentil, sorriu e respondeu lentamente.

– Sim. Pensei. You know what? GO FUCK YOURSELF!!

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.