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‘This Is Us’ e as marcas da infância em nós

Um casal apaixonado é obrigado a interromper a comemoração de aniversário do marido porque a mulher entra em trabalho de parto dos trigêmeos que esperam. O parto transcorre difícil. Um dos bebês morre e, em meio ao luto, o marido decide adotar, no lugar do filho perdido, um recém-nascido abandonado que chorava no berçário do hospital ao lado dos filhos sobreviventes. O grande e essencial detalhe é que aquela família branca leva para casa um casal de filhos biológicos de sua cor e um adotivo negro.

Assim começa a história da família Pearson, protagonista da série norte-americana “This Is Us”, da NBC, exibida no Brasil pelo canal Fox Premium e disponibilizada (com uma temporada de atraso) na plataforma de streaming da Amazon, Prime Vídeo.

Nem sei explicar por que demorei quatro temporadas inteiras para escrever sobre esta produção, que acompanho desde o episódio piloto, sofregamente, tendo chegado a me emocionar até as lágrimas em vários deles – talvez porque eu demore mesmo pra conseguir colocar em palavras as emoções que certas obras dramatúrgicas acordam dentro de mim, especialmente quando abordam relações familiares (meu ponto fraco). E “This Is Us” as aborda  com uma sensibilidade e profundidade surpreendentes, sob a batuta do seu criador, o norte-americano Dan Fogelman – mesmo roteirista de “A Vida em Si” (Live Itself, EUA/ESP, 2018). Seu grupo de roteiristas sabe usar com maestria o microcosmo daquela família peculiar para mostrar como, mesmo naquelas repletas de amor, surgem conflitos e tragédias que deixam marcas por toda a vida de seus integrantes, principalmente aqueles ocorridos durante a infância.

Mandy Moore surpreende pela versatilidade

A narrativa é cheia de flashbacks, que exigem do casal de atores protagonista muita versatilidade dramática, já que precisam atuar aparentando várias idades diferentes em cada cena. No papel da mãe, Rebecca, a também cantora Mandy Moore – quem diria? – se sai melhor que Milo Ventimiglia (o pai, Jack) neste desafio. Juro por Deus que esqueço completamente que ela não é uma idosa de 60 e tantos anos nas cenas contemporâneas da série, e não é por causa da maquiagem, mas pelo gestual, pela gradação da voz e principalmente pelo olhar, que a atriz dosa diferente para cada idade da personagem.

A primeira e segunda temporadas exploram mais os impactos que uma tragédia ocorrida na adolescência dos trigêmeos tem nos adultos que eles se tornaram, mesmo eles tendo sido criados por pais exemplares. Da terceira à quarta , o vai-e-vem do tempo torna-se mais ousado, com flashbacks retroagindo ainda mais, até a juventude dos pais, mas com acréscimo, também, de cenas de futuro – um artifício que acabou se mostrando perigoso de manejar com a pandemia chegando no hiato das quarta e quinta temporadas para mostrar que a realidade consegue ser ainda mais surpreendente que a ficção, podendo ameaçar a continuidade da história.

Mas, ao menos nos primeiros episódios da quinta temporada, Dan Fogelman conseguiu se sair muito bem

Chrissy Metz, Sterling K. Brown e Justin Hartley são os “Big Three”, como os trigêmeos se chamam desde a infância

no alinhavo das cenas de futuro próximo jogadas no final da quarta – não sei se será tão bem sucedido com o alinhavo das cenas de um futuro distante mostrando os trigêmeos mais velhos e com filhos crescidos, que vêm sendo repetidas desde a terceira temporada… mas cada coisa a seu tempo!

Por ora, esta fã está satisfeita em constatar que a narrativa segue bem amarrada e linkada à realidade atual. Os personagens iniciam esta temporada imersos na realidade da pandemia, motivo pelo qual foram escalados menos personagens por cena e algumas tiveram de recorrer a efeitos especiais de montagem para colocar os atores no mesmo cenário após filmarem em separado. Mas a coisa toda é tão bem feita que o espectador sequer percebe – mais uma prova de que uma (boa) história bem contada pode tudo contra imprevistos na produção!

O quarto episódio dá pistas de que a onda de protestos do movimento “Black Lives Matter”, desencadeada nos Estados Unidos pelo assassinato do segurança George Floyd por um policial, será usada como gancho para mais um conflito não resolvido na infância de Randall, o filho negro que cresceu na família de brancos. Mas também tem mais flashbacks espinhosos da infância dos outros irmãos vindo por aí, para comprovar uma reflexão que o trigêmeo Kevin – o astro de Hollywood – resume em voz alta ao final do terceiro episódio:

“Eu tive os melhores e mais conectados pais que se possa imaginar e mesmo eles deixaram passar tanta coisa…”.

Ou seja, mesmo nas melhores famílias, nada é perfeito!

Por isso recomendo esta série para todos, seja lá o tipo de família que você tiver, até para todos aprendermos com seus personagens a nos perdoarmos, tanto como filhos quanto como pais. Vale o tempo!

‘Os 13 Porquês’: vai encarar este espelho?

Com sua quarta temporada recém-lançada na plataforma de streaming Netflix, “Os 13 Porquês” segue carreira como uma das séries mais polêmicas dos últimos tempos. Parte por abordar o tema espinhoso do suicídio, motivo de críticas de profissionais de saúde mental, que a acusam de fornecer vasto material para o chamado Efeito Werther – em Psicologia, o ato de emular (copiar ou igualar) um suicídio do qual se tem conhecimento localmente ou por meios de comunicação.

Pessoalmente, respeito a ressalva dos profissionais, que justifica uma criteriosa avaliação por parte de pais e responsáveis antes de darem acesso à série pelos jovens. Mas considero “Os 13 Porquês” igualmente necessária, porque didática. Mostra de forma clara e séria as piores consequências que podem advir de atos que adolescentes costumam praticar irresponsavelmente – principalmente o bullying, porta de entrada para outros comportamentos mais graves e até criminosos, como homofobia e estupro.

Na primeira temporada, a adolescente Hannah Baker se suicida sem deixar bilhete ou carta para os pais. Sigilosamente, porém, deixa um depositário de sua confiança incumbido de passar, a 13 pessoas específicas, fitas cassetes com áudios gravados por ela. O que todas têm em comum é o fato de cada uma ter contribuído com uma razão para Hannah ter tomado sua decisão extrema – os 13 porquês. A escolha da mídia obsoleta é proposital, já que vamos descobrindo que os bullying sofridos pela jovem são amplificados pelo uso das ferramentas tecnológicas desta geração imagética: celulares com câmeras, redes sociais, aplicativos de comunicação instantânea, etc.  Acompanhamos tudo do ponto de vista do tímido Clay Jensen, que nutriu uma paixonite por Hannah e parece ser o último dos destinatários a ouvir as fitas. À medida que ele avança nas audições, uma teia de novos mistérios vai sendo tecida.


A série é nos obriga a pensar se aquele espelho incômodo que Hannah Baker esfrega na cara de seus bullyers não reflete também a todos nós


A segunda temporada mostra os pais de Hannah lutando por justiça pela filha, e alguns dos envolvidos nos 13 porquês tendo de lidar com as próprias sequelas emocionais. Também leva o espectador a conhecer detalhes da vida pregressa dos ex-bullyers, que, se não justificam, ao menos explicam como e porque certos jovens agem de determinada forma – sobre o que também é valioso refletir.

Na terceira, as investigações sobre um assassinato revelam novos segredos insuspeitos, inclusive sobre Hannah, que fazem Clay questionar se a conhecia realmente e até duvidar da própria sanidade. Ao mesmo tempo, sugerem que ninguém é inocente e nem todo o vilão é irrecuperável.

A quarta temporada vem encontrar os alunos da Liberty High no ano de suas formaturas. O grupo de amigos que ajudou Clay a se livrar de uma acusação de assassinato tem que lidar agora com culpa, questões de saúde mental e vício em drogas.

Em todas as temporadas, o que mais me chamou a atenção foi a surpresa com que muitos dos personagens bullyiers encaravam as consequências de seus atos quando confrontados. Isso diz muito sobre um “sonambulismo” endêmico que percebemos nas atuais gerações, que postam o que querem nas redes sociais, sem pesar as consequências – ou sem se importarem mesmo, como se a possibilidade de vidas serem destruídas não fosse real.

A série toda acaba sendo muito perturbadora, porque nos obriga a pensar se aquele espelho incômodo que Hannah Baker esfrega na cara de seus bullyers não reflete também a nós todos, como sociedade. Ninguém é poupado, nem os omissos (saca o ditado “para o mal vencer basta os bons não fazerem nada”?).

Quem tiver coragem de encarar este espelho corre o risco de não se arrepender.

Não perca ‘Littles Fires Everywhere’!

Uma silhueta loira observa uma mansão em estilo colonial ser consumida pelo incêndio. Pouco depois é a dona da silhueta em questão (Reese Whiterspoon de arrasar!) quem sequestra a total atenção do espectador com apenas uma expressão, em close. Perplexidade, dor e impotência misturam-se naquele rosto de olhos esgazeados, que parecem perdidos em outro tempo e lugar enquanto um oficial de polícia questiona sua dona sobre “quem teria interesse em atear fogo em sua casa com sua família dentro?”.

Ali! É como somos fisgados já nas primeiras cenas de “Little Fires Everywhere”, série que acaba de entrar para o catálogo de streaming da plataforma Prime Vídeo, da Amazon. Passamos os oito episódios seguintes conjeturando que fato devastador pode ter levado àquele incêndio e, principalmente, àquela expressão digna de Globo de Ouro de Reese Whiterspoon (ela já ganhou um por seu papel em “Johnny & June”).

Em mais este acerto de sua Hello Sunshine Produtora – que está se especializando em produções protagonizadas por mulheres marcantes -, Reese interpreta a personagem Helena Richardson, mãe, esposa, jornalista e cidadã exemplar de Shaker Heighs, localidade-modelo de Ohio (EUA), onde até o tamanho da grama nas casas é definido por lei municipal. Ali, Helena leva uma “vida de comercial de margarina”, regida por um planejamento rígido, que ela controla com ajuda de um kanban (quadro/agenda) gigante afixado em sua cozinha americana – para desespero de sua caçula, a rebelde Izzy.

Seu equilíbrio começa a ser quebrado quando chegam à cidade Mia e Pearl Warren, uma artista conceitual e sua filha adolescente, que levam uma vida libertária, cada temporada em uma cidade, às vezes chegando a dormir dentro do chevette azul usado com o qual percorrem o país. Seguindo um impulso, Helena aceita alugar a casa que recebeu como herança dos pais para aquela família, convencendo-se de que o faz por compaixão, pois só pode concluir que tenham uma vida tão diferente da sua por falta de opção melhor (primeiro preconceito estruturado… check!),

Helena e Mia não poderiam ser mais diferentes: uma branca e orgulhosa de seu pertencimento social; outra negra e ciosa de sua liberdade. Uma amizade forçada se insinua entre elas quando, percebendo o interesse da filha pelos novos amigos da família abastada, Mia acaba por aceitar uma oferta de Helena que encobre outro preconceito: de que funcionária doméstica é um trabalho óbvio para qualquer mulher negra (racismo estruturado… check!).

A interação que se desenvolve a partir daí suscitará conflitos para além das famílias de Helena e Mia, colocando em pauta debates sobre preconceitos racial, de gênero e, principalmente, tabus sobre a maternidade.

O roteiro é tão bem amarrado e os finais de cada episódio sempre tão intrigantes que não consegui parar de assistir até chegar ao final da temporada. Mais importante do que  um ótimo entretenimento,  “Little Fires Everywhere” é um convite à reflexão sobre preconceitos tão arraigados em nosso modo de agir em sociedade que, às vezes, sequer os percebemos.

Não perca!

‘O Conto da Aia’: Distopia factível

Não me lembro de uma obra de ficção ter me amedrontado tão seriamente quanto “O Conto da Aia” (“The Handmaids Tale”). Seu potencial de realidade é cada dia maior nestes tempos, em que assistimos à escalada da intolerância e de discursos autoritários.

Inspirada no livro homônimo da escritora canadense Margareth Atwood, a obra se passa em um futuro próximo distópico, em que os antigos Estados Unidos – renomeado Gilead – são governados por uma teocracia cristã militarizada e autoritária.

Neste regime, as mulheres são subjugadas. Por lei, não têm permissão para trabalhar, possuir propriedades, controlar dinheiro ou até mesmo aprender a ler. Se não são esposas obedientes, tornam-se empregadas – as chamadas Marthas – ou pior: se pertencem à minoria que resta fecunda, em um mundo dominado pela infertilidade, tornam-se aias.

Cruamente falando, as aias são escravas sexuais mantidas pelas famílias da casta superior exclusivamente para gerarem seus filhos. Elas são fecundadas pelo marido em uma espécie de estupro consentido travestido de ritual religioso. Engravidadas, permanecem com a criança que geram até o desmame, antes de serem enviadas para outra família.

A história toda é narrada pelos olhos da aia June Osborn (Elisabeth Moss, de “Mad Men”), renomeada OfFred. Aliás, começa aí, pelo novo nome, a objetificação da figura da aia, que perde seu nome e passa a ser chamada, em cada casa que “serve”, pelo pronome Of (“de”, indicando posse de alguém) acrescido do primeiro nome do senhor que a fecundará. Assim, temos OfJoseph, OfBryan, OfJohn…

June inicia a história na casa do comandante Waterford, que tem um alto posto no regime. Sua mulher, Serena, é uma intelectual que participou da elaboração da nova ordem. Sem saber, no início, em quem confiar, mesmo entre os de sua casta, June tenta sobreviver ao processo de desidentificação, sem saber onde está a filha, que lhe foi tirada de ser escravizada.

Os horrores vão crescendo a cada episódio, mas, ao contrário de quando assistimos um filme de terror, o medo não passa duas horas depois. Fica com você, volta e se intensifica ante os noticiários, que mostram um Donald Trump eleito presidente com discurso xenófobo e ultranacionalista da nação mais potente do mundo e um Bolsonaro preconceituoso e autoritário eleito presidente do Brasil.

Você acredita cada vez mais que, sim, essa distopia é perigosamente possível.

 


Originalmente pelo serviço norte-americano de streaming Hulu, “O Conto da Aia” começou a ser exibida no Brasil em março de 2018, pelo canal pago Paramount Brasil.

Nossos idosos não são mais aqueles

Quando escrevi pela primeira vez sobre a série cômica “Grace & Frankie”, em 2015, achei que não houvesse mais o que explorar na história de dois casais idosos que se reconfiguram da forma mais inusitada (ou não nestes tempos “gay friendly”): os dois maridos “saem do armário” ao mesmo tempo para assumirem sua relação homo-extraconjugal, que já dura 20 anos – dos 40 que os dois casais mantinham amizade e vidas entrelaçadas.

Mas a série da Netflix chega à sua terceira temporada em grande forma, obrigada!

Embalada por um timing cômico sofisticado e, de certa forma, codificado – significa que nem todos vão entender as piadas, principalmente quem está na faixa abaixo dos 40 anos -, a série aborda com extrema verdade e inteligência os conflitos que o novo perfil de idosos têm tido de enfrentar atualmente.

Nossos idosos de hoje não são mais sombras das pessoas que foram apenas esperando para morrerem em cadeiras de balanço, camas de hospital ou quartos de asilo. Principalmente os das classes média acima, mantêm-se funcionais e lúcidos, o que, de certa forma, até os torna mais sensíveis aos tratamentos preconceituosos das novas gerações, pois eles não se sentem como os seus jovens o tratam: seres ultrapassados.


“Nossos idosos de hoje não são mais sombras das pessoas que foram apenas esperando para morrer em cadeiras de balanço”


Na segunda temporada, exibida em 2016, Grace e Frankie tiveram de lidar com o processo de despedida de uma amiga com câncer que manteve uma vida “solar”, positiva e generosa até o melancólico fim, enquanto Robert e Sal tentavam se entender após o primeiro descobrir que o segundo teve um “sexo de despedida” com a ex-mulher.

Grace e Frankie chegam ao último episódio enfrentando a triste conclusão de que são tratadas como peças inúteis no xadrez familiar, mas prometendo que darão a volta por cima iniciando um negócio próprio juntas.

A terceira temporada as encontra enfrentando as dificuldades de praxe para conseguir levantar capital para o novo negócio: fabricação de vibradores específicos para idosas, que respeitem as limitações físicas típicas da fase (artrite, por exemplo), tecido vaginal ultra-delicado e com baixa lubrificação (se você pensar bem, é um baita nicho… rs).

O problema é que nenhum banco se arrisca a conceder empréstimo com amortização de longo prazo para duas mulheres na casa dos 70 anos, a despeito delas gozarem de boa saúde, energia e de Grace ter um bem-sucedido currículo de empreendedora – afinal, ela montou do nada a empresa de produtos femininos que a filha mais velha agora administra e na qual ela não é mais bem-vinda.

Parece uma história triste – e no fundo é -, mas você não consegue chorar nesta série. Se tiver o repertório certo, vai é rir muito, mesmo que no fundo se entristeça por reconhecer que aquelas verdades temperadas com o humor inteligente da roteirista Martha Kauffman (de “Friends”) são é de chorar.

 

P.S. By the way, quero envelhecer como a Jane Fonda!

‘A Nossa Luta’: você está acordado?

Em um dos últimos episódios da série “When We Rise” – que no Brasil será exibida pelo canal Sony sob o título “A Nossa Luta” -, o ativista gay pelos direitos humanos Cleve Jones descreve a um jovem que o entrevista uma ameaça que sua geração não previu: “vocês”, dispara ele – “Sua geração está dormindo (…) como é fazer parte de uma geração sem objetivos?”.

Cleve tem moral para fazer a provocação. Àquela altura, já acumulava, ao lado de outros biografados na série, como Roma Guy, Diane Jones, Ivory Aquino e Ken Jones, 40 anos de militância política pelos direitos humanos e civis da comunidade LGBT, responsável por conquistas como tratamento médico gratuito e irrestrito a doentes de Aids e a derrubada de leis que marginalizavam social e economicamente esta e outras minorias.

Tudo isso enfrentando obstáculos tão gigantescos quanto a epidemia de Aids, que começou sendo chamada de câncer gay e considerada por conservadores “uma resposta de Deus ao pecado da homossexualidade”.

Não pude evitar uma reflexão sobre se este questionamento não serve também para nossas últimas gerações brasileiras – a minha inclusa -, que gozam a liberdade civil pós-regime militar pela qual milhares morreram, mas, por outro lado, assistem quase passivamente a pessoas padecerem por falta de atendimento digno e eficiente de saúde e outros direitos essenciais, só preocupando-se com o seu quintal.


Dá inveja assistir o quão corajosos esses
militantes se mostravam, mesmo assistindo a
amigos morrerem de aids abandonados pelo sistema


Dá inveja assistir o quão corajosos esses militantes se mostravam, mesmo assistindo a amigos morrerem de aids abandonados pelo sistema ou perderem bens e direitos construídos numa vida inteira de relação para usurpadores protegidos pela lei americana, que não estendia os direitos civis a uniões homoafetivas.

Só a história de Cleve, que aos 18 anos deixou um lar rico, cujo pai psiquiatra queria “tratar” sua homossexualidade como doença mental (se preciso com eletrochoques), já emociona. Ele inicia sua militância como assessor do primeiro político assumidamente gay a ser eleito para um mandato político em São Francisco (Califórnia/EUA) – Harvey Milk, o biografado em “Milk – A Voz da Igualdade”, que rendeu um Oscar de Melhor Ator a Sean Penn, com direito a (merecidos) aplausos em pé.

A militância de Cleve e dos outros biografados não para quando Milk é assassinado. Ao contrário, cresce na adversidade.

O diretor Gus Van Sant faz um belíssimo trabalho entrelaçando as histórias pessoais cheias de episódios de discriminação, violência e discursos de ódio desses ativistas com a dos movimentos, sem esquecer o pano de fundo político de cada época.

“When We Rise” está no patamar de produções como “The Normal Heart” e “Stonewall”, que contextualizam as lutas da comunidade LGBT, mas que se parecem com todas as histórias de coragem de quem luta por seus direitos em meio à injustiça. Mais do que recomendáveis, elas deveriam ser obrigatórias para – quem sabe? – todos aprendermos a acordar também.

‘Once Upon a Time’: desconstruindo contos de fadas

Era de se supor que uma produção intitulada “Once Upon a Time” (“Era Uma Vez”), cuja proposta é alinhavar continuações para contos de fadas universalmente conhecidos, tivesse uma narrativa simples, ingênua, voltada para o público infantil. Mas “simples” é tudo o que esta série de TV não é, por mais que se apodere da fantasia.

Os roteiristas Adam Horowitz e Edward Kitsis controem um edifício narrativo engenhoso, usando como espinha dorsal a história de uma cidade com o sugestivo nome de Storybroke (trocadilho em inglês para “história quebrada”), onde personagens de um certo Reino Encantado vivem esquecidos de suas verdadeiras identidades devido a uma maldição lançada pela Rainha Má.

A trama da primeira temporada gira em torno dos esforços do filho adotivo da Rainha, que na cidade assume a persona de prefeita. Ele tenta convencer sua incrédula mãe biológica de que ela nasceu predestinada a libertar aquela população aprisionada em sua própria amnésia.

No meio de cada trama, narrativas paralelas contam em flashback a vida de cada personagem (Branca de Neve, Cinderela & cia), mas a partir de seus finais clássicos, ou seja, para além dos “felizes para sempre”. E assim vai desconstruindo os contos de fadas como os conhecemos.

A cada flashback, a história de um personagem esmiuça as motivações para o conjunto de escolhas que lhe confere – ao menos nas histórias originais – o rótulo de vilão ou herói. À medida que o espectador se aprofunda, descobre que nada – melhor dizendo, ninguém – é (só) o que parece.

A Rainha Má, por exemplo, não foi sempre rancorosa. Forçou-se a endurecer após uma trágica perda. E a Branca de Neve não é exatamente um modelo de virgem casadoira e submissa.

Ambíguo, o mago Rumpletilstiskin passa o seriado todo oscilando entre o bem e o mal, motivado ora pelo medo, ora pela vingança, ora pelo amor. E a grande heroína da trama, a “salvadora” – o vínculo com a vida real na trama – já sobreviveu de pequenos golpes.

Ironicamente, esta abordagem ajuda a tornar os personagens de contos de fadas mais próximos dos seres humanos “reais” – o que, no final das contas, também é a função dos arquétipos – e elimina o recurso “moral da história”, tão caro ao gênero. Simplificador, ele não cabe numa narrativa que explora também os semitons das tramas.

Para resumir, desconfio que Carl Gustav Jung – para quem “os arquétipos do inconsciente coletivo também se expressam através de narrativas, especialmente o mito e o conto de fadas” – teria aprovado “Once Upon a Time”.

Amor, sexo, tensão social e humor de HQ em ‘True Blood’

“Não repare se, por acaso, eu parecer um pouco… morta”.

 

A frase acima é dita por uma vampira adolescente ao namorado humano, com quem pretende perder a virgindade – mas não antes de render-se ao seu reparador sono diurno. “Fico meio doente de dia”, explica docemente, ainda de presas à mostra.

Esse tipo de humor prevalece em quase todas as cenas de “True Blood“, mais uma série sobre vampiros, estes personagens fantásticos que escritores e roteiristas das mais variadas épocas e mídias adoram explorar dramaturgicamente. Da literatura aos quadrinhos, da TV ao cinema, a lista de produtos envolvendo esse gênero de mortos-vivos é grande. Tanto que dei de ombros quando ouvi falar sobre a série. O argumento de “True Blood”, porém, me surpreendeu.

Aqui os vampiros “saem do armário” (digo, do caixão) e passam a conviver entre humanos após terem seus direitos civis assegurados por lei, mas sob a condição de deixarem de matar para se alimentarem. Isso se torna possível com a produção, em escala industrial, da bebida Tru-Blood (trocadilho com o nome da série, que significa “sangue genuíno”), espécie de sangue artificial que supre as necessidades alimentares dos vampiros.

Mas como estamos falando da sociedade humana, na qual nenhuma transição social se dá sem guerra civil, declarada ou não, algumas parcelas da população discordam da integração e vão à luta. Não por acaso, aliás, o seriado se passa no sul dos EUA, berço da Klu Klux Klan (é impagável assistir a vampiros falarem inglês com sotaque sulista).

Do lado dos vampiros também há os que desprezam a nova política, tornando necessária uma organização social paralela, que pune quem fere os estatutos da espécie. Assim é que a comunidade vampira também tem seus xerifes de área, magistrados, governadores e até uma rainha, que volta e meia vai à TV participar de debates com políticos contrários à integração.

E esta prossegue mesmo aos trancos e barrancos, trazendo em seu bojo – como qualquer mudança – muito preconceito, consequências boas (como a abertura de um novo nicho de mercado para os vampiros, com criação até de quartos de hotéis à prova de sol, por exemplo) e ruins (no mercado negro, comercializa-se sangue de vampiro, que tem nos humanos mais ou menos os mesmos efeitos que a cocaína).

Neste quadro, o amor entre diferentes não podia ficar de fora. A protagonista Sookie, uma humana com poderes telepáticos interpretada por Ana Paquin (Oscar por “O Piano”), vive um caso de amor com o vampiro Bill Compton, interpretado charmosamente pelo inglês Stephen Moyer.

Cenas de sexo são o grande apelo da série – tem, no mínimo uma com nudez explícita por episódio -, mas pelo menos todas estão inseridas dentro de um contexto na história. Não chegam a ser gratuitas, mas obrigam a série a ostentar classificação indicativa para maiores de 18 anos.

O humor, nada convencional, é o melhor trunfo de “True Blood”… depois das questões sociais. É irônico, surreal, muito parecido com o das histórias em quadrinhos. Tanto que desconfio que nem todos os espectadores saberão apreciá-lo. Eu adoro! E recomendo.