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‘Pantera Negra’ pra sempre

por Thiago Roque    

O ano era 1966, a temperatura nos Estados Unidos subia com a luta pelos Direitos Humanos por parte da população negra. As HQs, que retratavam como ninguém as mudanças da época, saíam na frente de novo e trouxeram pela primeira vez Pantera Negra, um herói negro, em suas páginas.

Lá se vão 50 anos até o mesmo Pantera Negra integrar, após aparição em “Capitão América – Guerra Civil” os 10 anos do Universo Cinematográfico Marvel com filme próprio. E, mais uma vez, para fazer história – apesar de “Blade” ainda levar o crédito de primeira obra cinematográfica com protagonista negro.

Mas faz história porque “Pantera Negra” não é apenas mais um filme de herói do estúdio preferido da moçada. É, também e principalmente, um necessário manifesto sobre a diversidade.

Tão necessário que a Academia não conseguiu ignorá-lo. Assim, pela primeira vez em 91 anos, um filme de herói rompe a barreira das indicações técnicas – “Pantera Negra” foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, além de Melhor Figurino, Melhor Mixagem e Edição de Som, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Direção de Arte e Melhor Canção Original.

 “a Academia não conseguiu ignorá-lo. Assim, pela primeira vez em 91 anos, um filme de herói rompe a barreira das indicações técnicas”

O retorno de T’Challa (Chadwick Boseman) a Wakanda para ser coroado rei dá início a uma jornada por um universo sem igual nos filmes da Marvel. O diretor Ryan Coogler nos apresenta uma nação que se equilibra entre o futurismo e o orgulho de suas tradições, que fala a língua da ciência moderna e os inúmeros dialetos dos ancestrais. Cores, figurinos, olhares, sonoridades, tudo é meticulosamente pensado e detalhado para apresentar ao espectador o que ele deve ter ignorado (propositadamente ou mesmo sem querer) por anos e anos: a cultura negra – e de uma forma tão provocativa que, daqui pra frente, você deve sentir falta de uma estampa geométrica colorida ou mesmo de um batuque em outros filmes…

Photo: Matt Kennedy..©Marvel Studios 2018

Michael B. Jordan é Erik Killmonger e Chadwick Boseman T’Challa em ‘Pantera Negra’

“Pantera Negra” também nos presenteia com um dos melhores vilões da saga Marvel até aqui: Killmonger (ponto para Michael B. Jordan) vem carregado de idealismo e de sede por justiça – não se assuste se, em determinado momento, você até torcer um pouquinho por ele. O personagem carrega as frustrações de um povo excluído, sofrido, maltratado – e faz de tudo isso combustível para seus atos. É dele a melhor frase do filme: “Jogue-me no oceano com meus antepassados, que pularam dos navios porque sabiam que a morte era melhor do que a escravidão”.

“às mulheres foram reservados relevância, bons diálogos e incríveis takes de ação”

Mas se engana você se acha que apenas os homens brilham neste filme: às mulheres foram reservados relevância, bons diálogos e incríveis takes de ação (as cenas na Coreia do Sul, meus amigos!), seja com Okoye (Danai Gurira), general do exército das Dora Milaje, seja com a espiã Nakia (a sempre competente Lupita Nyong’o), seja com Shuri (Letitia Wright), uma cientista brilhante, jovem e descolada – ah, ela também é irmã do rei T’Challa, quase esqueci.

Além do protagonismo feminino, vale destacar também a convivência entre a antiga e a nova geração de atores negros – se Michael B. Jordan e Letitia Wright brilham pelo time dos jovens, Forest Whitaker (Zuri) e Angela Bassett (a rainha-mãe Ramonda) fazem a trama toda passar por seus diálogos para ganhar história, equilíbrio e uma dose de drama. E, claro, não decepcionam.

Como também não decepciona a trilha sonora que corre durante todo o filme – que tem consultoria de Kendrick Lamar. Vale dar o play depois.

Se os filmes de heróis surgem para inspirar o melhor nas pessoas, “Pantera Negra” surge não só para corrigir uma falha histórica com a população negra, mas também para mostrar que o mundo perde demais quando comete o erro de negar sua tão rica pluralidade.

O Pantera Negra sabia disso lá em 1966. Mas ó: ao menos, essa (injusta) espera de 50 anos valeu a pena.

 

Thiago Roque é jornalista, cinéfilo e descalvadense orgulhoso.

‘Vice’ vale cada indicação

por Thiago Roque     

O diretor Adam McKay colecionou elogios com “A Grande Aposta”, filme que destila sarcasmo e referências pop para explicar como os Estados Unidos quebraram financeiramente em 2008. Entre explicações sobre o quase incompreensível mercado norte-americano e definições econômicas criadas para serem inteligíveis, um elenco pra lá de competente mostrava como o cinismo, a ganância e o imediatismo criaram uma crise sem precedentes na terra do Tio Sam

Bom, “Vice” repete e melhora a fórmula na maneira de apresentar os fatos – agora, sobre a história e as histórias que cercam Dick Cheney, famoso político republicano que foi vice-presidente no governo George W. Bush (2001-2009).

Primeiro, os cortes de cena e as referências explicativas surgem mais equilibrados, com mais timing e menos exagero cinematográfico – tem uma cena com os protagonistas num jogral shakespeariano que é prova viva disso.

Segundo, o elenco à disposição entrega atuações pra lá de convincentes – Christian Bale arrasa em todas as fases de Dick; Amy Adams também faz por merecer cada elogio na pele de Lynne Cheney; e Sam Rockwell entrega um Bush-filho caricato e tão imbecil que é impossível não se divertir.

Christian Bale arrasa em todas as fases de Dick

Não à toa, os três estão indicados ao Oscar – Bale como Melhor Ator, Adams como Melhor Atriz Coadjuvante e Rockwell como Melhor Ator Coadjuvante. O estilo de McKay trouxe as indicações para Melhor Filme, Diretor, Roteiro Original e Edição. De quebra, o longa completa suas oito chances da estatueta dourada com Melhor Maquiagem e Penteado – igualmente merecido, aliás.

Ah, é verdade, quase me esqueci: “Vice” vale cada indicação.
Muito por trazer à tona os mandos e desmandos de um vice-presidente que, nos bastidores, se recusou a ser um mero espectador da política norte-americana. E o fez por causa de sua trajetória: um jovem problemático, beberrão, que estagiou com figuras mais folclóricas do que competentes no Congresso dos Estados Unidos e foi, pela lealdade, se mantendo nas entranhas do poder em busca de uma redenção que nunca mereceu. Deixou como legado um gabinete pautado pela falta de transparência, a atuação pós-ataques do 11/9, a desnecessária Guerra do Iraque e, acredite, a gênese do Estado Islâmico.

Não bastasse todo esse menu político como espinha dorsal, Christian Bale coloca a película em outro patamar cinematográfico falando pouco e sendo muito. Conforme vai perdendo cabelo e ganhando (muito!) peso, distribui um sem-número de poses, sorrisos e trejeitos que parecem ter sido forjados com o personagem – ao ponto de, numa cena, um diálogo de Cheney com a mulher é feito durante a escovação dos dentes! E o único discurso mais longo do personagem é um mea-culpa ao avesso no melhor estilo “House of Cards”, mas já no final da fita.

“não é um filme fácil, de humor sandleriano e que vai entregar
a você uma biografia completa e mastigada do político republicano”

E ao mesmo tempo em que humaniza o político impopular (aqui, entram as cenas com a filha Mary), Bale mostra o motivo de Cheney ser uma pessoa tão criticada e tão pouco querida pela sociedade. E acredite: nada sobrevive à necessidade de ser relevante – nem mesmo o próprio Dick Cheney. Qualquer chance de torcer pelo político é encerrada logo depois de você pensar em simpatizar com ele, fique tranquilo(a).

Mas não se engane: “Vice” não é um filme fácil, de humor sandleriano e que vai entregar a você uma biografia completa e mastigada do político republicano – e isso pode jogar contra o sucesso do longa. Prepare-se para receber recortes da história de Dick Cheney – logo no começo, o diretor avisa que ele o elenco fizeram o melhor possível.

Talvez o suficiente para você clamar pelo “Volta, Temer”.

 

Thiago Roque é jornalista, cinéfilo e dono de um humor “ogro” engraçadíssimo!

solidão

THIAGO ROQUE *

os vizinhos não sabem dizer quando começou.
gostam da solidão. velhinha quieta, na dela, faz mal pra ninguém.
anda pra cima e pra baixo com uma dessas ecobags.
o que encontra, coloca na sacola. e leva pra casa.
garrafa pet, lata de alumínio, cafuné na cabeça.
sapato velho, risada vencida, papelão.
alegria rasgada, bola furada, pente quebrado.
cabe na sacola? entra sem pedir licença – na sacola, na casa, na vida da solidão.
não demorou para o sobradinho virar um amontoado de objetos.
objetos que você olha. que você sente.
tudo sujo, sem brilho, com validade vencida.
tudo dado por vencido.
no começo, solidão até tinha um espacinho pra cada item.
na caixa vermelha, por exemplo, guarda os cumprimentos.
muitos deles gritados, sinceros, motivo de orgulho.
abria aquela caixa todos os dias, num ritual quase cristão – com direito a sinal-da-cruz.
vieram mais objetos. mais caixas.
mais.
ah, as caixas da solidão…
cores, tamanhos, conteúdos. guardam tudo – até um pouco de vida.
afinal, o que ia pra caixa era o que se perdia na cabeça e já não cabia mais no coração.
com o tempo, tudo foi desbotando.
caixa, cumprimentos, sinal-da-cruz.
ganharam aquele tom borrado da paleta esquecimento.
tão fora de moda…
quando solidão se dá conta, está tudo junto, dividindo caixas e angústias.
parece tudo um desespero organizado.
um desespero só.
de cartão de visita a memórias.
de disco antigo a desprezo.
de bem-querer a revistinha de horóscopo.
aliás, solidão é de libra.
do signo a velhinha corpulenta lembra.
quer dizer, lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
por isso, guardava tudo.
para lembrar. para tentar lembrar.
para que fossem lembrados.
o primeiro beijo, a primeira camiseta dos stones, o primeiro amor, o primeiro filho.
muitos primeiros. vagas lembranças.
ora, devem estar pela casa. onde? nas caixas – onde mais?
não podem morrer. não podem subir na boleia do tempo e partir sem olhar pra trás.
não podem. não.
mas, com frequência, acontece.
então, solidão vai para as ruas encontrá-los de novos.
de sentimentos a sachê de mostarda.
amarelos feito as caixas dos documentos.
ou ficam na caixa marrom?
lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
mas não reconhece nada. ninguém.
tudo parece estranho. tudo parece diferente. tudo parece frio demais.
mas sabe que tem algo ali. é questão de lembrar. é questão de viver.
e, assim, a sacola se enche.
muitas vezes, solidão precisa das duas mãos para dar conta do peso de seu destino.
sim, o fardo é pesado. ela não liga.
evita pedir ajuda. as pessoas não entendem porque precisa de tudo aquilo.
não entendem o que é segurar nas mãos algo que perdeu lá atrás – e continuar incompleta.
procurar, em cada lápis, cada latinha, cada fagulha de sofrer, uma peça do quebra-cabeça.
em casa, parte da sacola vai para as caixas da solidão.
parte se esconde pelo chão, aos olhos de quem prefere não ver.
parte se recusa a deixar a sacola.
sabe que será outro no dia seguinte.
sabe que será essencial. que solidão vai precisar.
e ela sempre precisa.
e sempre sorri quando enconta algo.
revira lixo. pega algo. sorri. põe na sacola.
ajoelha. limpa algo. sorri. põe na sacola.
folheia o jornal. vê algo. sorri. põe na sacola.
solidão também acumula sorrisos.
por isso que todo mundo gosta da solidão.
velhinha sorridente…
parece sempre estar de bom humor.
talvez esteja.

 

(*) Thiago Roque
Jornalista e palavreiro sofisticado, tenta escrever um livro há mais de 15
anos – quem sabe agora…


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

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