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Um cheiro de vó

Às vezes, do nada, me vem um cheiro característico da vó Ana. Dia desses o senti em local dos mais inusitados, no meio do pátio da empresa em que trabalho, praticamente vazio no final de tarde.

O cheiro da vó tinha uma mistura de pele antiga com fumo de corda, que ela costumava deixar pendurado em um gancho da sua cozinha. Às vezes eu a assistia montar seu cigarro de palha sentada numa cadeira que colocava na saída para o corredor – sempre o mesmo ritual de cortar um pedaço do rolo, desbastá-lo a canivete sobre um pedacinho de palha e depois enrolá-lo com dedos desfigurados de artrose.

Depois, segurando o cigarro entre os dedos polegar e indicador, sorver a fumaça numa primeira tragada comprida, que lhe encolhia as maçãs flácidas da face, para depois soltá-la no mundo em baforadas fartas.

O que será que ruminava sentada ali com aqueles olhos arregalados e de pupilas perdidas dentro de alguma lembrança?

A vó não era de conversar, principalmente coisas do coração. Não sabia.

Também não era de “melação” – como chamava jocosamente gestos físicos de carinhos. Não me lembro de uma vez em que eu tenha recebido um beijo gratuito seu ou mesmo um abraço.

Mas de seu fogão vintage todo branco de frisos pretos da marca Cosmopolitan sempre saíam, quando eu pedia, ainda que acompanhados de reprimendas, bolinhos de chuva (mesmo sem chuva), bolos de fubá, bananadas e – o que eu mais gostava – mingaus de fubá ou farinha de milho, para aquecer em dias de frio ou nos fazer suar em convalescenças de febre.

Seus últimos anos conosco coincidiram com minha fase de rebeldia adolescente. Jamais a desrespeitei – ai de mim se o fizesse com pais que castigavam severamente o desrespeito aos mais velhos! -, mas também nunca tive paciência com suas ranhetices e críticas indignadas com os avanços geracionais da mulher.

Arrependo-me.

Carrancuda, só vi a vó chorar uma vez, de emoção, no casamento de minha irmã do meio, Liz.

Nós a perdemos pouco tempo depois, aos 68 anos, com pele e corcunda de 90 e pulmões estragados pelos cigarros.

Mas tenho pra mim que seu espírito ainda está por aí a velar por nós deixando de aviso seu cheiro de pele antiga e fumo.

O céu da vó e do vô

LÍVIA KOMAR BARUSCO *

Ela deitava com o irmão na grama bem aparada dos fundos, no quintal da velha casa da vó e do vô. Ficavam de costas lado a lado, porém com uma distância necessária para que pudessem abrir os braços e se tocarem as mãos. Lá, no interior do interior, banhados pelos verões ensolarados, longe da poluição da cidade grande, imaginavam desenhos onde apenas tinham nuvens brancas.

Vinte e cinco anos se passaram quando eles repetiram a mesma cena, em outro palco. No terraço do apartamento dele, do outro lado do mundo, com outro céu nublado e nuvens não tão bonitas, eles se deitaram no chão frio e usaram aquela tela cinza lá do alto para passarem um filme de suas vidas. Em outro canto, o que já foi o preferido deles, havia morrido a última peça daquelas memórias. A vó ia embora ficar ao lado do vô, que morrera quando ainda eram adolescentes.

Entre um vinho e outro, ativavam suas memórias. Na infância, até parecia que eles existiam para estar ali, em todas as férias desde que se conheciam por gente. Na casa da vó e vô eles eram livres, sem escola, sem piano, ballet ou natação. Na casa da vó e do vô eram ajudantes de jardinagem, boleiros ocasionais, marceneiros de passagem, colhedores de frutas direto do pé. Tomavam café com bolo de fubá feito na hora e ouviam moda de viola contando os besouros da parede do alpendre. Andavam de carrinho feito pelo vô e comiam o bolo de chuva da vó, mesmo que as tardes fossem ensolaradas.

A menina desconhecia saias naquele período mágico e gostava de balançar na rede e sentia-se voando enquanto o mundo a sua volta dançava feito bailarina em torno dela. O menino gostava de subir no telhado da casa e certa vez, escondido, fumou uma bituca da palha do vô até ficar tonto. Ele não aprendeu a lição, pegou gosto e fuma da hora que acorda até o último bocejo do dia.

Estavam tão distantes da vó, mas com histórias tão vivas que preferiram sentir a dor desse momento juntos, em um mundo só deles – que resolveram mais uma vez compartilhar depois de adultos. O vô e a vó foram embora de vez e levaram com eles aquele refúgio fascinante de outrora. Nunca mais as frutas teriam gosto de pé de goiaba da casa do vô. Nunca nenhum sabor de café coado conseguiria penetrar tão fundo a alma como o que o da vó. Nunca mais sentiriam aquele cheiro de amaciante da camisola da vó e nem da mão áspera do vô ao se darem boa noite. Nunca mais. E ao constatarem tantas perdas, dormiram em lágrimas de saudade ali mesmo, no relento.

De manhã, em uma das cidades mais chuvosas do planeta, fez-se sol com nuvens brancas. O homem e a mulher despertaram do porre de vinho e de dor e, deitados, deram as mãos novamente. Calados e emocionados, agradeceram juntos a oportunidade de um dia ter vivido tudo aquilo que nunca mais ousariam querer viver sem a vó e sem o vô.

 

* Lívia Komar Barusco é jornalista especialista em marketing, assessora
de imprensa e mãe do Matteo


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

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