A Humanização

E chegamos em dezembro.

Desde março meu discurso em casa é para tentarmos chegar em dezembro com saúde. Se as crianças vão perder o ano letivo e estudar tudo de novo no ano que vem e se os adultos vão precisar se endividar para pagar as contas, são problemas que resolveremos depois. O foco nesse 2020 foi outro. Ou, dito de forma mais bonita pelo escritor Valter Hugo Mãe, no livro “A desumanização”, em trecho que me chegou pelo Whatsapp de um grupo de leitura:

Havemos de dezembrar. Dizia eu. Faltava pouco para o fim do ano. Era o meu pai, nos tempos de maior conversa, que o pedia. Depois de cada dificuldade, esperava que dezembrássemos todos. Que era prometer que chegaríamos vivos e salvos ao fim do ano, entrados em janeiro, começados de novo. A resistir.

Dezembramos, pois. Havemos de janeirar. Havemos de continuar sonhando e resistindo e insistindo. Havemos de fazer concessão ao uso do gerúndio. Havemos de aprender a desacelerar. Talvez a comprar menos nesse Natal. Quase um ano inteiro isolados em casa nos fez ver que o consumismo não tapa os nossos buracos, não? Nós precisamos que os aparelhos celulares funcionem e só. Ninguém sairá saltitante pelas ruas cheias de bolas vermelhas caindo do céu porque comprou um telefone, por mais inteligente que ele seja.  Não vamos sair dançando pela sala se usarmos este ou aquele amaciante de roupas. Vamos dançar pela sala se colocarmos uma música para tocar, ainda que dentro da nossa cabeça. E se tivermos companhia, melhor ainda. Não tem par de sapato que substitua o olhar de uma pessoa amada. Dividir um poema com uma amiga acalenta mais do que uma sacola cheia de roupas. Tente. Uma calça jeans no armário é suficiente. Por que tenho uns dez batons na gaveta se uso sempre o mesmo? Para que três aparelhos de jantar se o mais gostoso mesmo é encher a casa de gente querida e cada um que coma onde der e como der? Os pratos, cada um de jeito, equilibrados nas nossas mãos enquanto nos acomodamos no braço do sofá e até sentamos num cantinho, no chão? Quem se preocupa com pratos e copos iguais se o ambiente está tomado por risadas? Havemos de ter tudo isso novamente.

Havemos de ter vacina para todos e não primeiro para os membros do Ministério Público, como está na notícia que li hoje. Aqueles dentre os mais privilegiados, com mais condições materiais de se proteger, querendo a frente da fila. Sim, quando penso na vacina, por exemplo, eu não deixo de pensar: vai ter para os meus filhos? Porque sou umbiguista e medrosa como creio que todos humanos são. A diferença, penso eu, está na nossa disposição de todos os dias, por mais que doa, nos tirarmos do centro do mundo.

Havemos de aprender a dezembrar, todos os anos, com mais comunhão.