Publicações do autor

Nem Shakespeare

Deputados votam denúncia da PGR contra Michel Temer e ministros (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Mais uma peça do teatro insano que se chama política brasileira tomou os horários das emissoras de TV. Tudo bem ensaiado e os atores não precisaram nem da coxia para dar as deixas. Mas isso não é novo para ninguém, e por ser tão previsível, nos humilha.

Isso, humilhação! Esse é o sentimento que se apodera de nós a cada vez que assistimos a um espetáculo mambembe de atores medíocres, textos decorados e o dinheiro da plateia já distribuído pelo diretor e guardado nas malas.

Vivemos de golpes, roteiros que vão mudando conforme a peça se desenrola, mal escritos, certamente por nenhum Shakespeare, mas coalhado de traidores tão cruéis, que nem ele, o Bardo de Avon, poderia imaginar.

Então, onde estamos mesmo? Ah! No Brasil. Aliás, nos Brasis, pois por ser tão grande e confuso se divide em escalas de tragédias e desníveis, formando um aglomerado de estupefações, perdido entre três poderes que mais parecem um só ou nenhum, mancomunados, cada qual salvando sua pele com descaramento e perfídias, escondendo a sujeira debaixo do tapete ou em bancos da Suíça.

Vamos ao teatro. Muitos não gostam de dividir o palco e esticaram suas falas além do necessário, levantando bordões de amor à pátria.

Desnecessário.

A peça acabou e poucos aplaudiram. Quem esperou pacientemente todos os atos talvez tivesse a esperança de que alguns atores se confundissem e trocassem o texto, o sim pelo não. Mas, embora pífios, são experientes, macacos velhos na artimanha de representar e têm muito tempo para decorar.

Outra grande obra está sendo escrita. Grande no mau sentido. Logo vai estrear. Não é de graça, mas não percam. Afinal, todos nós já pagamos pelo o ingresso. E muito caro.

Fora da Caixa (*para a Rosana)

CARMEN CAGNO **

Íamos os três apertados no banco da frente do Gordine. Eu no meio, meu amor dirigindo e o amigo poeta do outro lado. Abraçados, cantávamos alguma coisa do João Gilberto. E mais uma vez transgredíamos. Minha família proibira aquele namoro fora da caixa. Afinal, ele era músico e nem de longe se assemelhava a um dos inúmeros “bons moços” indicados para uma adolescente burguesinha.

Eu devia ter 16, 17 anos e desde que me lembrava sempre estivera fora da caixa.

O que não dava pra explicar aos que estavam do lado de dentro era a felicidade, a liberdade daqueles dias. Amávamos intensamente, descobríamos o desejo a cada minuto, nos perdíamos em poesia, encontros musicais e corríamos num raro fio de sensibilidade e encantamento.

Eu escrevia versos nos guardanapos de papel em cada um dos barzinhos que frequentávamos religiosamente, inaugurando a sagrada devoção à boemia. Noites inteiras de papo, música, trocas, laços cada vez mais apertados.

Esses eram nossos rituais sagrados. Desistira da religião havia alguns anos, desde que minha avozinha querida e profundamente crente não conseguira me explicar por que eu devia me enfiar num confessionário semanalmente para falar de pecados que não tinha. Por que não podia me entender diretamente com aquele Deus tão onipresente.

Compor músicas, entregar-me sem culpa ao desejo que pulsava, cultivar com carinho cada pequeno pedaço de afeto. Tínhamos uma alma limpinha e ainda não havíamos experimentado as dores de sermos tão humanos.

Isso foi antes da política, da ida pra cidade grande, do fecundo percurso profissional, da independência, da formação intelectual, da repressão política, das passeatas aos gritos de liberdade, dos amigos mortos e torturados, do mergulho em outros amores, da vida que continuaria pulsando e me entregando presentes cada vez mais valiosos – para o bem e para o mal.

O caminho tortuoso, cheio de surpresas e descobertas, foi uma escolha natural, orgânica, sem a segurança previsível dos que seguiam pela estrada principal – aquela asfaltada, reta, certeira, povoada  de setas e avisos, com destino conhecido. Mergulhar para dentro da vida sem paraquedas era criar asas cada vez mais poderosas; era o frio na barriga e, às vezes, um tombo cheio de arranhões e cicatrizes. Mas nada nesse mundo valia a emoção  do voo. Nada descrevia a sensação de planar e descobrir paisagens.

Hoje eu olho pra trás e abençoo essa narrativa que tem contado minha vida. Na maioria dos capítulos continuo a construir uma história meio na contramão. E agradeço diariamente por esse privilégio quando olho pra minha filha e me orgulho do que vejo; quando abraço meus amigos que percorreram esses caminhos; quando me entrego a um amor com a inocência e a inteireza que sentia no banco da frente do Gordine, há mil anos atrás.

 

Carmen Cagno
Jornalista, escritora, professora brilhante, palavreira incomparável
e amiga querida da vida toda


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

 

O Grande Costureiro

Sempre quis ter um vestido da Maison Dior. Ou de Armani, mais minimalista, cores sóbrias e de uma elegância sem par. Os da Dior ou Channel povoam os sonhos femininos talvez mais pelo charme da griffe, pelos modelos desfilados no tapete vermelho da premiação do Oscar, usados por mulheres deslumbrantes, aquelas roupas esvoaçantes de tecidos exclusivos. Seda pura, brocados, transparências…É como se usando um vestido daqueles qualquer mulher se transformasse numa diva. Coisas de mulher, diriam, mas conheço muitos homens também cobiçando ternos e modelitos dos atores. Essa é outra história. Homem bem vestido é o must.

Estou falando de costura? Sim. Um ofício delicado, sob medida, que não é para qualquer um. É preciso ter o dom. Nas provas, tira um pouquinho desse lado, aumenta um centímetro na manga, abaixa um pouco o decote e, assim, a peça vai se moldando ao corpo como um segundo eu, e as escolhas dizem muito sobre quem veste, dizem os psicólogos. Uma arte, na verdade. Mas, um pouco em extinção, assim como a dos alfaiates que tiveram de se render aos ternos prêt-à-porter, nem sempre de boa qualidade, feitos em séries, sem personalidade.

Bem, o que me fez pensar em costura foi quem? Isso mesmo: Michel Temer. Olha, vamos nós engolindo o descaramento noticiado sem escrúpulos, abertamente, escancaradamente, o que me faz lembrar um dito popular: “Os cães ladram e a caravana passa”. É isso. A caravana passa e nem latimos mais, pois nada consegue deter os passos desses homens de ternos bem feitos, barrigas de cerveja e cabelos tingidos de acaju.

Não há como tirar o mérito do grande costureiro Temer. Ele é meticuloso, paciencioso, conhece as medidas de seus clientes como ninguém. Primeiro faz o molde, corta, alfineta e alinhava com perfeição. E vai para a prova. Se ficar um pouco largo, nada que uma boa alfinetada – ui, desculpe, foi sem querer – não resolva. Afinal, quem gosta de alfinetes perfurando a pele?

E então, ele parte para a obra final: costura, pedala, costura noite adentro para dar tempo de vestir a todos com perfeição e levar o troféu. Incrível como ele consegue uma nova roupagem até para quem não estava mais escalado para o desfile. Como esse mineiro tão bonito vai ficar de fora? Não, não vai não! Ele mesmo, o estilista em pessoa, dispensando os ajudantes, comanda sozinho o atelier e resolve rapidamente o equívoco. E nós – ah, nós! – assistimos ao show macabro, desejando que todos tropecem na passarela sob os flashes, de preferência do Weber Sian. É o que nos resta. Ou não?

solidão

THIAGO ROQUE *

os vizinhos não sabem dizer quando começou.
gostam da solidão. velhinha quieta, na dela, faz mal pra ninguém.
anda pra cima e pra baixo com uma dessas ecobags.
o que encontra, coloca na sacola. e leva pra casa.
garrafa pet, lata de alumínio, cafuné na cabeça.
sapato velho, risada vencida, papelão.
alegria rasgada, bola furada, pente quebrado.
cabe na sacola? entra sem pedir licença – na sacola, na casa, na vida da solidão.
não demorou para o sobradinho virar um amontoado de objetos.
objetos que você olha. que você sente.
tudo sujo, sem brilho, com validade vencida.
tudo dado por vencido.
no começo, solidão até tinha um espacinho pra cada item.
na caixa vermelha, por exemplo, guarda os cumprimentos.
muitos deles gritados, sinceros, motivo de orgulho.
abria aquela caixa todos os dias, num ritual quase cristão – com direito a sinal-da-cruz.
vieram mais objetos. mais caixas.
mais.
ah, as caixas da solidão…
cores, tamanhos, conteúdos. guardam tudo – até um pouco de vida.
afinal, o que ia pra caixa era o que se perdia na cabeça e já não cabia mais no coração.
com o tempo, tudo foi desbotando.
caixa, cumprimentos, sinal-da-cruz.
ganharam aquele tom borrado da paleta esquecimento.
tão fora de moda…
quando solidão se dá conta, está tudo junto, dividindo caixas e angústias.
parece tudo um desespero organizado.
um desespero só.
de cartão de visita a memórias.
de disco antigo a desprezo.
de bem-querer a revistinha de horóscopo.
aliás, solidão é de libra.
do signo a velhinha corpulenta lembra.
quer dizer, lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
por isso, guardava tudo.
para lembrar. para tentar lembrar.
para que fossem lembrados.
o primeiro beijo, a primeira camiseta dos stones, o primeiro amor, o primeiro filho.
muitos primeiros. vagas lembranças.
ora, devem estar pela casa. onde? nas caixas – onde mais?
não podem morrer. não podem subir na boleia do tempo e partir sem olhar pra trás.
não podem. não.
mas, com frequência, acontece.
então, solidão vai para as ruas encontrá-los de novos.
de sentimentos a sachê de mostarda.
amarelos feito as caixas dos documentos.
ou ficam na caixa marrom?
lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
mas não reconhece nada. ninguém.
tudo parece estranho. tudo parece diferente. tudo parece frio demais.
mas sabe que tem algo ali. é questão de lembrar. é questão de viver.
e, assim, a sacola se enche.
muitas vezes, solidão precisa das duas mãos para dar conta do peso de seu destino.
sim, o fardo é pesado. ela não liga.
evita pedir ajuda. as pessoas não entendem porque precisa de tudo aquilo.
não entendem o que é segurar nas mãos algo que perdeu lá atrás – e continuar incompleta.
procurar, em cada lápis, cada latinha, cada fagulha de sofrer, uma peça do quebra-cabeça.
em casa, parte da sacola vai para as caixas da solidão.
parte se esconde pelo chão, aos olhos de quem prefere não ver.
parte se recusa a deixar a sacola.
sabe que será outro no dia seguinte.
sabe que será essencial. que solidão vai precisar.
e ela sempre precisa.
e sempre sorri quando enconta algo.
revira lixo. pega algo. sorri. põe na sacola.
ajoelha. limpa algo. sorri. põe na sacola.
folheia o jornal. vê algo. sorri. põe na sacola.
solidão também acumula sorrisos.
por isso que todo mundo gosta da solidão.
velhinha sorridente…
parece sempre estar de bom humor.
talvez esteja.

 

(*) Thiago Roque
Jornalista e palavreiro sofisticado, tenta escrever um livro há mais de 15
anos – quem sabe agora…


 

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A arte, essa estranha arte

Em que pesem – e muito – os comentários nem sempre elegantes sobre as mais recentes exposições nos museus e galerias de arte no Brasil, e por mais estranho que pareça, vejo um lado positivo. Não sou Pollyana, mas estou aprendendo a medir os fatos da vida em algum ponto entre o oito e o oitenta.

A discussão infindável nas redes, com argumentos até grosseiros de um lado, e outros tentando explicar, que digamos, é inexplicável, mostrou a que veio a arte. Arte é reflexão e não enfeite de parede combinando com móveis e tapetes.

Acho que pessoas que jamais se interessaram por arte, são as que mais postam comentários exacerbados, condenando as performances, quadros e idéias de anos e até séculos atrás. Podem não gostar, não entender,condenar – isso é um direito – mas não precisa ofender.

E o interessante são os argumentos, dos dois lados, de quem acusa e de quem defende, palavras duras, levadas para o lado pessoal, criando até inimizades e ligando os defensores ao esquerdismo. Ainda não encontrei esse ponto de encontro.

E penso que, apesar de algumas exposições terem se encerrado em função da pressão dos internautas e deputados que propõem tortura, o sentimento e as ideias do artista eternizadas na tela atingiram camadas que, por mais indignados que estejam, não podem deixar de refletir, lá no âmago: que negócio estranho é esse?

Parece que ninguém nunca viu ou ouviu falar nas esculturas que enfeitam praças e obeliscos pelo mundo afora, os registros de figuras nas cavernas e abrigos pré-históricos. Elas estão nos livros, nas páginas de história e não me lembro de ver questionada a liberdade de criá-las a não ser nos regimes fascistas, o que é melhor esquecer.

Estamos discutindo arte, conversando, o que é quase inédito num país que pouco preserva sua história e vivia em silêncio antes do espaço aberto pelas redes sociais. A conversa foi parar nos programas de televisão, no face, no Twitter, no Whats,  virou pauta, e isso me parece bom, pois nos dá a oportunidade de ouvir, comparar, concordar, discordar, aceitar, ou repelir.  Apesar do clima muitas vezes desconfortável, estamos falando de arte, essa desconhecida por muitos, e que agora, ainda que de forma estranha, começa a fazer parte de nosso olhar.

E assim, vamos conhecendo melhor o mundo como ele é – cheio de diversidades, opiniões, sentimentos – e não como gostaríamos que fosse, um mundinho particular, só nosso, cultivado entre as paredes de casa.

Quando as pessoas eram mais iguais

BLANCHE AMÂNCIO *

Nasci numa cidadezinha que amei – e amor não acaba. Pelo menos não deveria. Auriflama era um lugar onde todo mundo conhecia todo mundo, e disso já se conclui que, como seres humanos que somos, aquilo parecia uma grande família italiana.

Nos anos 1950 minha mãe bebedourense tinha concluído o Magistério e sonhava com uma classe lotada de alunos. Na época, onde o Estado tivesse aula disponível as professorinhas abraçavam com boa vontade. E foi assim que ela atravessou o interior paulista para parar na região da Vila Áurea. Chegava a atravessar rio a cavalo para lecionar nas fazendas.

A família do meu pai era de Araçatuba e tinha a Fábrica de Colchões Silva, a Fábrica de Ladrilhos Silva e meu tio Lázaro Silva foi o primeiro prefeito de Auriflama, em 1965. Mas isso é outra história. Fui criada lá.

As classes tinham aquelas carteiras pesadas de madeira e ferro e os alunos sentavam-se sempre em dupla. Era o filho do prefeito com o filho do coveiro, o filho do juiz com o da professora. Isso nunca mais vai acontecer!

Apelido? Não havia o maldito bullying, então a criatividade corria solta: Burralê para Alexandre, Pimentinha e, se até o final desta minha escrita me ocorrer outros, citarei.

Fora das classes, a simplicidade não incomodava os novos deuses. Eu entrava na sala do juiz, de chinelos e pedia para ele assinar minha autorização de viagem – pois viajava 3 horas aos sábados para estudar piano em outra cidade. “Minha filha, você precisa pedir para seu pai assinar este documento”. “Sim, senhor, só um minuto porque meu pai está lá fora”, eu respondia. No corredor, eu mesma fazia a assinatura e entrava na sala de novo, desta vez com o documento corretamente preenchido.

Não havia restaurantes. Só um para viajantes. No açougue, na venda, na quitanda, uma cadernetinha bastava. Na volta da escola, o dono da padaria dava bala para as crianças. Os estudantes mais ousados entravam na casa da professora e olhavam as perguntas da prova que seria aplicada no dia seguinte.


“Eu entrava na sala do juiz, de chinelos e pedia para ele assinar minha autorização
de viagem – pois viajava 3 horas aos sábados para estudar piano em outra cidade”


Por muito tempo, na Rua Feliciano Salles Cunha, uma das principais, os boiadeiros passavam com suas boiadas e seguiam embora. A vizinha, de vez em quando, fazia um terço que, para criança, não acabava mais. As eleições pegavam fogo! Ai de quem fosse contrário a alguém. De qualquer forma, você sempre levava paulada.

Os passeios eram nas cachoeiras. Nos anos 1970, você pedia um telefonema interurbano para a telefonista, na central telefônica – diga-se de passagem, uma casinha superapertada que só cabia mesmo a telefonista, o telefone e o cliente. Lá pelas tantas, a mulher avisava a família que tinha conseguido completar a ligação. A mãe descia em bloco, correndo pela rua, com os filhos atrás, para falar com um parente distante.

Coitado de quem fosse o alvo da frase “me espera na saída”. As festas das escolas atraíam toda a cidade – quermesses, desfile da fanfarra e outras comemorações cívicas. O padre pressionava as crianças encapetadas para se confessarem: “matei aula”, “joguei ovo no colega da classe”. Eram pecados gravíssimos.

Certo dia chegou o primeiro bandido na cidade – muito amador, por sinal. A molecada, eu inclusive, ficava na esquina da delegacia espiando e esperando para ver a cara desse bandido, certamente um ladrão de galinhas. Os encapetados subiam nos muros dos vizinhos e simplesmente cortavam o varal – lembrando que lençol naquela época era de algodão e olhe que tinha os de linho, e tudo branco, os quintais de terra, quando muito, grama. Daí que se conclui que isso sim era quase terrorismo.

Nem tudo era tanta pureza, mas as pessoas eram mais iguais. Não havia digital influencer. Eu nunca entrei de salto na sala do juiz. Todo mundo jogava queimada. Professor era respeitado. Autoridade não era Deus. Amizade era para sempre. Tal qual hoje.

 

* Blanche Amancio
Jornalista e empresária na Texto & Cia. Comunicação, coralista de
orquestra e ‘mãe’ da gata Velminha


 

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Quer Dançar Comigo?

O bailinho estava animado. Um daqueles bailinhos de estudantes, quando ainda não nos dávamos conta de que a ditadura iria nos engolir. Adolescentes, éramos nós. Daquela vez o arrasta-pé foi na quadra de esportes de uma faculdade. Fui com algumas amigas e estávamos naquela fase bonita do despertar para o amor, o romantismo, o toque, o contato com o sexo oposto. Bem, havia também quem quisesse contato com o mesmo sexo – isso não muda, mas não era esse o caso.

Eu usava vestido tubinho acima do joelho, scarpin, rabo de cavalo e franja. Estava me achando. Os rapazes ficavam de um lado e as garotas, de outro da pista. Então, nós, as meninas, esperávamos um sinal do bonitão e íamos ao encontro, ou ele chegava mais perto. Só sei que era bom: twist, rock e músicas lentas para momentos mais aconchegantes.

Costumávamos dançar até às onze da noite e íamos para casa comentando sobre tudo o que aconteceu: o mais bonito, o mais atrevidinho, roupas, cabelo, etc. Alguém sempre voltava acompanhada, e o casal caminhava na calçada oposta, um pouco mais atrás para preservar a intimidade de alguns beijos inocentes.

Segurar na mão era o máximo, mão no ombro, então!!

Bem, voltemos ao bailinho. Já disse que estava eu me achando o máximo naquele vestido tubinho e de batom rosa-chá. Então, um lindo, mas muito lindo rapaz fez o esperado sinal. Não hesitei nenhum segundo e caminhei segura em direção à pista.

Mas, ele passou direto. O sinal era para outra garota que estava logo atrás de mim.

A vergonha!

Fiquei parada no meio da pista, sem saber se voltava ou se continuava, disfarçando, como se eu estivesse apenas atravessando de um lado para o outro.

Resultado: fui direto para o banheiro, onde permaneci um longo tempo até criar coragem e sair de fininho, rezando para ninguém me ver.

Nunca mais voltei lá. Bobagem, podem estar pensando? É, pode ser. Mas vai dizer isso para uma adolescente!!

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

O amor incondicional dos ipês e outras árvores

ELIVANETE ZUPOLLINI BARBI *

Embevecida pelos ipês amarelos, brancos, rosas que, neste ano, atraíram nossos olhares e provocaram uma competição extraoficial de fotos e selfies nas redes sociais, também fui assaltada pela intensidade da natureza que continua desafiando os homens e mostrando seu indomável poder – para o bem e para o mal.

Dias desses, a caminho do trabalho, numa rua comum, com buracos, matos e lixo, dois ipês rosa empinhocados desafiavam os postes de cimento, cabos e fios que fazem das ruas brasileiras um emaranhado feio como a política nacional. Explodiam, sem pudor, dezenas de buquês, centenas, talvez milhares, de pequenas flores capazes de emocionar corações moles, arrancar suspiros profundos e pendurar pontos de interrogação em mentes que só fazem pensar.

Além da genética, da botânica, das condições climático-ambientais, o que são os ipês? Por que florescem tanto nessa Ribeirão marrom e seca? Nasceram com a missão de nos ensinar a dar o melhor, incondicionalmente? Para além de Darwin, qual o mistério criador e evolutivo que reuniu neste planetinha Terra – uma insignificante poeira nas galáxias infinitas – tanta beleza, generosidade, esplendor, perfeição?

Não se trata aqui de uma reflexão teológica, filosófica, nem mesmo existencial, pois me falta competência. Nem mesmo armas de poetas tenho eu para, num tecido “palavreiro”, denunciar as reais intenções dos ipês. Mas, que há intenções ali, há. E são divinas!


‘É uma beleza deusa que se veste com seda, projeta
sua maestria, executa a mais sublime sinfonia’


É uma beleza deusa que se veste com seda, projeta sua maestria, executa a mais sublime sinfonia. A mesma deusa simplesmente dá. No seu tempo. Não espera. Segue seu instinto, seu ritmo. Ama sem moeda de troca. Num movimento constante, cresce, se renova, perde folhas, brota novos galhos. Floresce. E nos dá a sensação de que, ao passarmos sob aquela tenda rosa de flores, estamos abençoados. Eis a natureza deusa cumprindo sua missão.

Diante da natureza dos ipês, botânicos, ambientalistas, poetas, garis e jardineiros têm diferentes definições. Para mim, eles são deuses, por definição de meu pai. Aliás, árvores, em geral, são verdadeiras entidades. Daquelas bem xamânicas ou iorubás, que fazem a ponte entre a terra e o céu com uma facilidade estonteante. Nem se importam se estão no cerrado ou na floresta. Estão. Não perguntam de onde vieram, para onde vão, se têm mérito, se são o povo escolhido. Não sentem culpa por suas raízes arrebentarem as calçadas. Não questionam se são amadas ou cuidadas. Amam. E se dão. Inteiras.

 

* Elivanete Zuppolini Barbi
Jornalista, professora universitária, palavreira
modesta e amiga querida

 


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O Café da Dona Aurora

Dona Aurora era uma senhora bem idosa, de cabelos branquinhos como algodão, que morava com o filho na casa ao lado da minha. Como o filho trabalhava, ela passava o dia todo cuidando da casa e fazendo crochê com uma agulha muito fininha.

Eu era criança, e uma das coisas que eu mais gostava era olhar as flores do jardim de dona Aurora. Os pezinhos de violeta eram minha paixão, as pequenas flores ficavam embaixo das folhas e exalavam um perfume inesquecível, inebriante.

Dona Aurora era espanhola e eu adorava o sotaque dela.

Todos os dias, depois de voltar da escola e fazer a tarefa que ninguém conferia, eu batia palma no portão de Dona Aurora e ela sempre amável me convidava para entrar. Então, eu passava um bom tempo sentada numa poltrona na sala, perto dela, vendo-a e admirando como ela fazia crochê com uma agulha tão fina. Um pontinho minúsculo atrás do outro e ela ia fazendo as toalhinhas delicadas.

Mas outras coisas me encantavam naquela casa. Eu gostava de perambular até a cozinha só para ver a tigela de vidro cheia de água com os legumes descascados e picados todos do mesmo tamanho, em cima da pia. Ela dizia que era para fazer a sopa quando o filho voltasse do trabalho.

Então, quando chegava a hora do café da tarde, ela preparava leite condensado com café e me dava uma xícara. Para mim, era um deleite, pois em minha casa não havia leite condensado.

Um belo dia, fiz propaganda do leite condensado , e meu irmão – também criança – quis ir comigo. Sentamos os dois na sala e esperamos o café. Muito amável, ela fez uma xícara para cada um.

Daí pra frente, todos os dias, eu e ele com a maior sem cerimônia, chegávamos e ficávamos sentados, os pés balançando mal tocando o chão – esperando a hora do café.


‘Então, quando chegava a hora do café da tarde, ela preparava leite
condensado com café e me dava uma xícara. Para mim, era um deleite’


Não sei o que ela pensava ou sentia. Criança não se importa muito com essas coisas, nunca imaginam estar incomodando. No nosso caso, queríamos apenas beber aquele café delicioso cheio de leite condensado.

Um belo dia, minha mãe saiu de casa e resolvemos fazer um agrado a dona Aurora, uma retribuição pelo café. Pegamos dois mamões verdes no quintal e fizemos um doce, na verdade uma gororoba, uma sopa de mamão. Arrumamos a mesa com pratos e talheres e chamamos dona Aurora para comer. Ela foi. Sentou-se à mesa com requinte, como convidada de honra.

Meu irmão encheu um prato para ela com a sopa de mamão e ficamos os dois em pé, como dois soldados, de frente para ela, esperando o resultado. Devia estar péssimo, porque de vez em quando ela parecia estar engolindo um pedaço de sabão. Mas comeu tudo, sorriu, agradeceu e foi para casa cambaleando, apoiada na bengala.

Não sei se passou mal, teve dor de barriga ou o quê. Só sei que nós dois ficamos muito felizes por ter retribuído os tantos cafés com leite condensado que ela nos dava.

Lavamos os pratos, deixamos tudo como estava e tivemos de jogar fora o que sobrou da gororoba para não deixar nenhum vestígio. Minha mãe nunca soube disso. Mas eu lembro sempre, quando tomo café e quando vou fazer pudim.

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

O Silêncio da Madrugada

CAROLINA S. PEGORINI *

“É estranho pensar no quanto a gente muda com o passar dos anos”, ela refletia, enquanto fitava as estrelas.

Sejam grandes mudanças na personalidade ou singelas mudanças de atitude no cotidiano, fato é que quase ninguém passa pela vida sem se modificar num ou noutro aspecto, em maior ou menor grau.

Por exemplo, quem diria que ela, que gostava de chegar em casa com o nascer do sol e costumava considerar que um final de semana sem sair à noite era um final de semana perdido, desperdiçado, não vivido, viria a tornar-se caseira, introspectiva e quase sem vontade de ver outras pessoas?

Não, ela não havia envelhecido, tampouco sabia dizer com precisão o instante e o motivo exatos em que essa transformação ocorreu. Só sabia que, aos poucos, foi aborrecendo-se e perdendo a vontade de cumprir aquele ritual clássico das sextas e sábados de equilibrar-se num salto fino, entrar num lugar lotado, ouvir música alta, socializar com os mesmos de sempre e procurar afinidades em quem acabara de conhecer.

Cansou-se dessa rotina. O interesse pelas noitadas na rua havia se dissipado sem maiores explicações. “Acho que foi um processo gradual. Aquelas noites em claro eram cheias de ruído… ruídos vazios e ensurdecedores, na maioria das vezes”, ela pensava.

Entretanto, uma coisa permanecia inalterada: seu encanto pela madrugada. Ficar em casa não significava ficar dormindo. Debruçada na janela do quarto, contemplava o céu noturno, as estrelas e a luz do luar que clareava a exuberante natureza ao redor. De vez em quando descia as escadas e rumava ao jardim, deitava-se no gramado e admirava a beleza do firmamento. Os únicos sons audíveis eram o farfalhar das folhas das árvores sacudidas pela brisa, o cricrilar dos grilos e um ocasional bater de asas de algum morcego errante. Por vezes, os pingos de chuva que batiam no telhado, nas vidraças e nos canteiros compunham uma melodia agradável e propícia ao sossego de sua mente.

Mas o que mais reinava nessas horas era o silêncio, o sagrado e limpo silêncio imaculado, não poluído pelos incômodos barulhos urbanos presentes nas horas do dia. O silêncio era um companheiro invisível que apresentava momentos perfeitos para a reflexão e a autoanálise. Isso só era possível devido à quietude que apenas as madrugadas proporcionam. Estando em casa ou na rua, ela era notívaga convicta, acreditava que esta característica era imutável e que a acompanharia até o fim.


‘Debruçada na janela do quarto, contemplava o céu noturno, as
estrelas e a luz do luar que clareava a exuberante natureza ao redor’


Porém, quando era um pouco mais jovem e sua alma ainda fervilhava diante das incontáveis atrações que o mundo lhe oferecia, não queria saber do silêncio. Considerava-o enfadonho e desinteressante, coisa de gente insossa, que não buscava novidades e se conformava com o tédio. Pouco compreendia quem pensava de outro modo; na verdade, sequer fazia questão disso. Sua ânsia de viver intensamente combinava com volume alto, com velocidade, com múltiplos estímulos que a cercavam sem deixar espaço para o discernimento.

Conforme o tempo passou e sobrevieram as lições preciosas que a vida ensina na marra àqueles que não aprendem por bem, ela finalmente percebeu que precisava pensar. Pensando, compreendeu que seria prudente afastar-se. Afastando-se, constatou que necessitava de uma pausa. E então notou que o mar de ruído em que estava imersa vinha, há muito, impelindo-a a voltar-se somente para o exterior. Sua cabeça confusa e exausta lastimava, pedindo uma mudança. Resolvida, buscou o silêncio e encontrou na madrugada o seu refúgio amigo.

Agora, anos depois, ela está em paz. Meditou, redescobriu-se, reconheceu-se. Passou a apreciar a própria companhia. Continua tendo a rotina de trabalho-estudo-família-lazer, como manda o figurino, mas seu olhar está diferente. Mudou o foco, e, por isso, achou bom mudar também de endereço. Valorizou a simplicidade. Aprendeu que nem tudo o que reluz é ouro, e que não precisava de muito para sentir-se feliz. Também aprendeu a falar menos e ouvir mais. Os hábitos tão arraigados foram perdidos sem muito esforço, como uma roupa que já não serve e da qual ela nem sente falta. As antigas dúvidas foram respondidas e deram lugar a novas perguntas, no ciclo infinito de busca que move adiante a humanidade.

Ao cair da tarde, ela volta para casa e tira os sapatos. Troca o apertado traje social por um vestido leve e confortável. Desliga o celular. Solta o cabelo e senta-se no sofá da varanda, apreciando o pôr do sol. Fecha os olhos ao aspirar o perfume das flores de bergamoteira e ouve o gorjeio dos pássaros que se empoleiram nos galhos, despedindo-se da luz do dia. O vento suave embala suas reflexões e, vencida pelo cansaço da semana, ela adormece sem perceber. Quando desperta, vê o luar banhando o jardim: as horas se passaram e a lua nasceu, por trás da casa, tingindo o cenário de branco azulado. Ela se levanta e desce os degraus, caminhando descalça pelo gramado. O único som que pode ser ouvido é o de sua respiração; até o vento cessou. Ela sorri. O silêncio chegou.

 

* Carolina S. L. Pegorini
Palavreira e leitora de bom gosto, apreciadora de toda forma de arte e,
como muitas de nós, nascida por engano com um ou dois séculos de atraso

 


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