Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2022 também assessora de comunicação; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

A razão da música estar em mim

Meu pai, Elizio Pereira (Zague para os boleiros), partiu para outro plano no dia 8 de fevereiro de 2023. Foi ao som de uma playlist de bossas-novas de Tom Jobim e parceiros, que montei especialmente, a conselho de uma amiga – “toca pra ele músicas calmas, que ele goste de ouvir”. E meio que inconscientemente escolhi só coisas que eu escutava na primeira infância, muito por influência dele, que sempre mantinha em casa discos de MPB e fitas cassete de sambas – num tempo em que só existiam sambas canções e raiz.

Naquela quarta-feira eu já tinha entendido que o papí (como nós, as três filhas, o chamávamos) havia desistido. Não era do feitio dele, que voltou de algumas emergências médicas inacreditáveis com otimismo inabalável, mas o fato é que não aceitava mais comida nem remédios há mais de 24 horas. Só água ainda pedia, com um fiapinho quase inaudível de voz, que eu precisava encostar meu ouvido pra escutar. “Não aguento mais”, justificava quando eu insistia em oferecer meus caldos. Super compreensível, já que ele vinha se desmanchando em náuseas e enjoos antes mesmo de tentar engolir qualquer comida. Mesmo assim, liguei pro seu nefrologista pra perguntar “o que é que eu faço?” e calhou da orientação dele bater com a do médico da família que passou vê-lo naquele mesmo dia: “respeita a decisão do paciente”.

Sem mais o trabalho de esvaziar sua bolsa de ileostomia e com medo dele não ter força pra apertar a campainha que pus a seu lado pra me chamar (estava tão fraco e  confuso!), decidi passar a tarde no quarto com ele. Coloquei minha caixinha de som sem fio sobre a cômoda, criei a playlist na Apple Music e pus pra tocar. Primeiro me sentei aos pés dele, único lugar vago na cama toda entrincheirada com travesseiros pra ele não cair. Então o assisti movendo com esforço o próprio corpo pelo colchão, no sentido anti-horário até deitar a cabeça no meu colo. 

De vez em quando eu habilitava a função karaokê do player pra eu mesma cantar alguma faixa, e ele arregalava os olhos numa expressão de susto, que até agora fico me perguntando se foi mesmo de surpresa ou incômodo (rs… tendo a me entusiasmar quando o tom da música facilita pra minha voz aguda).

Minha mão sobre a de meu pai: idênticas.

Devemos ter ficado cerca de 1h assim, até eu me lembrar de levantar pra pendurar no varal a roupa que havia posto lavar na máquina. Quase não fiz força pra colocar seus 55 kg de pele e ossos (distribuídos por 1,85m de altura!!!) de volta à posição certa na cama. Quando voltei, vendo que ele dormia, abaixei um pouquinho o volume da música, peguei meu livro e passei a ler sentada na cadeira de rodas que ficava ao lado da cama. Com uma mão segurava o livro e com a outra a dele (já disse que minha mão é uma cópia fiel e menor da dele?).

E assim ficamos não sei por quanto tempo mais – talvez 1h ou 2h – eu tirando os olhos do livro de vez em quando para checá-lo. Até que, de uma hora pra outra (ou assim me pareceu), a mão dele gelou na minha. Daí pra frente me lembro de pouca coisa. Sei que liguei pra minha irmã e pro Samu, mas só recordo do que falei na ligação pro Ma, meu marido, já num choro descontrolado: “Papí descansou. Vem pra casa, por favor”.

Não chorei mais depois disso, mas desde então não consigo parar de escutar “Bossas Tom Jobim & Cia” (como nomeei a playlist). Ao longo da última semana, até a turbinei, chegando a ouvir várias versões das minhas preferidas, com diferentes intérpretes, pra escolher a melhor de cada. Mas teve música que entrou duas vezes porque não consegui decidir entre um(a) e outro(a) intérprete e/ou arranjo mais lindo.

O Marcio começou a ficar preocupado com minhas audições repetitivas. “Deixa ele ir embora, Silvia”, disse. E expliquei que deixei, sim. Até confessei que tinha rezado pra ele descansar, e que, misturado com susto, piedade e mais uma tantada de sentimentos que eu não sei descrever agora porque nunca senti antes, também teve alívio no meu choro.

Hoje, completada uma semana do seu  desencarne, ainda ouço a playlist, mas juro que sem tristeza alguma. Em parte porque – vamos combinar! – não tem baixo astral que resista às bossas do Tom. E em parte (e esta é difícil de explicar, mas vou tentar) porque essas músicas me transportam de volta a um tempo de pureza do qual nem lembranças visuais eu tenho – só uma memória de sentimentos.

Papí não foi um pai perfeito (algum é?) e nós três guardávamos alguns ressentimentos dele, por ter sido um pai muito autoritário. Mas hoje, ouvindo as músicas, eu procuro, procuro e não encontro mais nenhuma mágoa em mim.  Só lembro que ele também foi um pai que amou demais (por isso nos sufocava) e foi o responsável por eu ter crescido em um lar musical. Mesmo arranhando mal o violão (nunca fez aulas), sempre nos convocava a cantar em roda canções brasileiras das antigas com ele tocando – nos chamava de seu “Trio Esperança”.  

Na casa em que crescemos, quando a vitrolinha verde não estava ligada, era o rádio/toca-fitas que ele instalou no armário da cozinha, com caixas de som distribuídas pelos quatro cômodos da casa estilo “vagão” (era fio que não acabava mais). E porque também tínhamos uma relação física com a música, decretávamos trégua de qualquer desavença pra dançar um bolero ou sambinha com ele (também era “pé-de-valsa”), fosse sobre o tapete da sala, em um churrasco de quintal ou em um baile do clube.

Tem uma música que o Bono (U2) compôs pro pai dele – à época também com câncer terminal – que diz em um trecho: “You’re the reason I singYou’re the reason why the opera is in me” (Você é a razão d’eu cantar / Você é a razão da ópera estar em mim). Desde a primeira vez em que ouvi ‘Sometimes You Can’t Make It On Your Own’ eu soube que esses versos serviam pra ser ditos por mim ao meu pai. Mas nunca disse – um monte de histórico ruim me bloqueando…

Talvez ouvir a playlist seja meu jeito de finalmente admitir pro universo (e pra ele) que o papí é a razão da música fazer parte de mim. E – caramba! – nem consigo descrever o quanto sou grata por isso!

Ouvir música me salvou nos momentos mais obscuros da minha vida, me consolou nos mais tristes e me deu prazer nos mais felizes. Não tem ocasiões em que me sinta melhor do que em um show de um ídolo musical ou em um barzinho com música ao vivo bem feitinha. Graças à música encontrei o Ma, um completo desconhecido levado à minha casa pra tocar violão que nunca mais sairia da minha vida (amém!).

Espero que meu pai tenha ouvido toda a playlist (fico em dúvida se ainda estava consciente, pois não ouvi mais sua voz depois que a pus tocar) e que tenha gostado. Também espero que, onde quer que esteja, receba o afago da minha imensa gratidão.

Vai com Deus, papí. Amo sim (já achei que não)! Fica em paz.

A semiótica delicada de Jane Campion

A cineasta Jane Campion em locação de ‘O Ataque dos Cães’, que ela roteiriza e dirige.

 

Com imenso prazer celebro, com esta postagem, o retorno da neozelandesa Jane Campion ao cenário do cinema mundial, com “O Ataque dos Cães” (The Power of the Dog), faroeste intimista em cartaz na NETFLIX.

Campion não assinava um longa-metragem desde 2009, quando narrou o caso de amor entre o poeta John Keats e Fanny Brawne em “Brilho de Uma Paixão” (Bright Star) – o menos brilhante de seus longas. Para a televisão, seu último trabalho foi a criação dos roteiros para a série de suspense “Top of the Lake”, protagonizado por Elisabeth Moss (a Jane de “O Conto da Aia”), que teve a primeira temporada exibida em 2013, e a segunda só em 2017 (ambas atualmente disponíveis no streaming da HBO Max).

Campion costuma descansar de dois a quatro anos entre uma produção e outra, mas sempre faz valer a pena a espera e o nosso tempo em frente à tela para conferir seu cinema autoral, seminalmente feminino e de semiótica sutil – significando que as principais explicações de suas obras residem nos detalhes e no que não é dito.

Foi assim em seu primeiro longa, “O Piano” (The Piano, 1993), aplaudido e premiado por público e crítica – inclusive com os Oscar de Melhor atriz, para Holly Hunter, e de Atriz Coadjuvante para Anna Paquin, então a mais jovem a receber uma estatueta (4 aninhos) – e continua sendo em “O Ataque dos Cães”.

Jesse Plemons e Kirsten Dunst

Neste faroeste, Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons interpretam os irmãos Phil e George, vaqueiros à frente de uma fazenda de gado herdada dos pais. Quando percebe George se enamorando de Rose (Kirsten Dunst), cozinheira de um restaurante de estrada, Phil imediatamente antipatiza com a viúva e seu filho adolescente, Peter (Kodi Smit-McPhee).

Componentes caros ao gênero – como cenários rurais característicos do início da colonização do oeste selvagem dos Estados Unidos e vaqueiros montados e armados – estão presentes. Exceção feita à violência explícita de lutas e tiroteios regados a muito sangue.

Mas não se engane, a violência se fará presente e não só no sentido figurado. Porém, você terá que prestar atenção para percebê-la. As pistas estão todas lá, nos detalhes, como sói acontecer no cinema de Campion.

Kodi Smit-McPhee e Benedict Cumberbatch

Nada é o que parece e isso é tudo o que consigo dizer sobre “O Ataque dos Cães” sem cometer spoilers. Mas, se ajudar, posso pinçar, na obra pregressa da cineasta, exemplos de como ela consegue exprimir muito (principalmente sentimentos e emoções) com pouco. Uma cena emblemática de “O Piano”, por exemplo, pode até servir de teste para saber se você está pronto para o cinema da diretora e roteirista: se não conseguir captar toda a sensualidade contida na cena em que George (Harvey Keitel) descobre um furo na luva de Ada (Holly Hunter), não vai alcançar a semiótica delicada de sua narrativa.

Mas não se preocupe se o seu olhar ainda não estiver pronto para ela. Ainda vai poder aproveitar as brilhantes atuações do elenco de “Ataque dos Cães – o que no caso de Cumberbatch e Dunst não é surpresa nenhuma.

Grata, Uchôa!

Quem me conhece um pouco sabe que leitura, música, filmes e séries são hábitos meus que beiram a compulsão (renuncio a noites de sono por um bom livro ou série). Já quem me conhece melhor ainda entende que tenho um único vício (com tudo o que qualquer vício tem de incontrolável e irracional): HISTÓRIAS. Mas não qualquer história. Só as bem contadas – percebam que não digo “boas” histórias porque não acredito nisso de história ruim, só em “mal narrada”.

Esse vício em “histórias bem contadas” influenciou minha vida inteira, pois me levou a escolher o jornalismo como profissão. E dentro dessa profissão, cultivo alguns ídolos que me conquistaram por seus talentos em narrá-las. Um deles soube que se despede esta semana da maior emissora aberta do Brasil pra continuar contando histórias, mas em formato de livros – pelos quais passarei a aguardar ansiosamente, como sempre o fiz em relação às suas brilhantes reportagens.

Não me lembro quando foi a primeira vez que assisti a uma reportagem de Marcos Uchôa, mas sim do encantamento que me causou. “Que texto! Que maravilhosa simbiose entre narração e imagens”, pensei. Foi como descobri que jornalismo de televisão não precisa ser essencialmente visual e que é possível usar um vocabulário rico sem ser hermético, utilizar metáforas e figuras de linguagem sem perder a clareza ou soar enfadonho!

Já admirava, então, o texto charmoso de Pedro Bial, mas Uchôa elevou a narrativa de jornalismo para TV a outro nível. Culto, sempre compartilhou com generosidade seu conhecimento com o grande público em reportagens ricas em contextualizações. Ou seja, nunca subestimou a capacidade de cognição do grande público – tenho pra mim que ele consegue se fazer entender desde por uma minoria tão culta quanto ele, até pela maioria menos escolarizada, porque é generoso o bastante pra ser tão didático quanto enciclopédico.

E como é versátil! Como correspondente estrangeiro, cobriu de guerras (sete) a Olimpíadas e Copas do Mundo de Futebol. Como repórter local, cobre com o mesmo talento um assunto urbano e um noticiário de política.

Por tudo isso me acostumei a aguardar suas reportagens e crônicas (ah… que saudades das crônicas de correspondentes do Jornal Hoje) como um fã à apresentação de um ídolo da música. Acho que sentia o mesmo prazer que eles quando me informava por suas reportagens.

Graças a Deus, Uchoa não é um talento isolado no jornalismo de TV – também cultuo outros dois, mais jovens… dois Pedros, a propósito: Bassan e Vêdova. Mas percebo que esse modelo de jornalista culto e completo, capaz de cobrir com alta qualidade qualquer assunto, não faz mais escola, ao menos na TV aberta.

Aliás, suspeito que cada vez mais o jornalismo em geral relegará grandes talentos como eles aos bastidores, e jogará  holofotes e câmeras sobre profissionais com mais informação do que conhecimento (tem diferença!), mais opinião do que clareza, mais marketing pessoal do que generosidade no compartilhamento dessas informações. Uma pena!

Por isso achei importante deixar aqui o registro deste tempo em que ainda há profissionais do mais alto quilate fazendo jornalismo de alta qualidade ao alcance das grandes massas. É um privilégio! Mas está acabando (a despedida de Uchoa é o primeiro sintoma).

Antes que seja tarde, então, quero dizer que sou muitíssimo grata, Uchôa! E fiquem firmes, Bassan e Vêdova. Vou continuar seguindo (e me encantando com) os textos de vocês.

Meus ‘pais’ Zé

Acordei hoje com a notícia do desencarne do jornalista, fotógrafo e empresário José Mário Sousa, o querido “Zé Mário”. Querido por mim e por gerações de jornalistas que, como eu, tiveram sua primeira oportunidade na área graças à sua generosidade e fé.

O Zé tinha fé de sobra, principalmente nas pessoas. Graças a ele pude me desvencilhar de um emprego no qual sofria muito para cometer meus primeiros erros e acertos em uma redação de jornal – saudoso Jornal de Ribeirão, semanário que era feito em um dos prédios do campus da Unaerp, onde me formei, em 1991. Lá o Zé Mário também foi nosso professor de Fotografia no curso de Jornalismo. Conseguiu me fazer acreditar, por um tempo, que meu futuro no Jornalismo passava pela Foto (minha paixão pela palavra venceu).

O passamento do Zé tão jovem (69 anos) me fez lamentar não ter lhe feito nenhuma visita mais demorada desde que voltei a Ribeirão Preto, em 2012, após 17 anos trabalhando fora. Nos esbarramos em alguns eventos para a imprensa. Nos cumprimentávamos rapidamente, como velhos conhecidos que éramos… eu me dizendo que teria tempo, “uma outra hora”, de pagar uma visita para lhe falar de minha gratidão.

Graças ao Zé, não só tive a primeira valiosa experiência no Jornalismo, mas também conheci pessoas que se tornaram amigas do coração para o resto desta vida minha. E Deus sabe que, não fosse aquela redação, essas mesmas pessoas nunca teriam se dado a chance de me conhecer e descobrir que eu não era tão arrogante quanto o meu TDA (Transtorno de Déficit de Atenção) fazia crer – né, Maria Elena “Bil” Covre, Sheila Guimarães & cia? (RISOS).

Não ter encontrado um tempo para o Zé Mário em vida me levou a outro olhar desconfortante para o meu espelho interior (tenho olhado muito pra ele desde que iniciei terapia e Reforma Íntima). Enxerguei – não pela primeira vez – como tendo a me lembrar mais dos chefes ruins que tive na profissão e menos dos que me ajudaram tanto. E olhe que tive dois “Zé” extraordinários nessa trajetória, que me ensinaram muito – muito mais do que eu merecia, percebo agora.

O Zé Mário tinha esse perfil de “pai” carinhoso, que incentiva e joga os rebentos no mundo pra saírem nadando sozinhos. Mas sabia, sim, exigir resultados, sem nunca humilhar e sequer levantar a voz. E o Zé Eduardo, ainda entre nós, mas a um oceano de distância física, era um “pai” mais severo e exigente, mas também muito amigo. Sabia valorizar meu trabalho sem precisar elogiar (queria ter aprendido isso) e acreditou em mim quando eu mesma não acreditava. Acho até que o decepcionei um pouco, mas nem assim desistiu de mim.

Sorte que também acredito que nunca é tarde para nada! Sei que o Zé Mário, aonde estiver, estará recebendo minhas preces de gratidão e meu pedido de desculpas pela omissão de “filha”, porque seu coração segue enorme. Já ao outro Zé, atrevo-me a fazer, ainda, um apelo: trate de viver até os 100 pra eu ter tempo de agradecer por tudo, ainda nesta vida!

Vai com Deus, Zé!

Fica com Deus Zé!

Empatia tem poder!

Olha, não ignoro que dou minha cara a tapa com este texto até pra quem me conhece e ama, pois certamente já me ouviu criticar mais de uma vez realities como o Big Brother Brasil (por glamourizar a banalidade e faturar com o que o ser humano mostra de mais mesquinho em seus momentos de vulnerabilidade, etc, etc). Mesmo assim, confesso: EU ASSISTI ao BBB21 até o mais “amado” fim! #prontofalei.

Até hoje, acreditava que havia sido uma das milhões de vítimas do “efeitopandemia”, que fez a gente se viciar em entretenimento barato no desespero de fugir à triste e crua realidade do país. Mas agora há pouco, desidratando de chorar com o documentário “Você Nunca Esteve Sozinha – o doc de Juliette” (Globoplay), entendi um pouco mais sobre minha “virada de casaca”: não foi exatamente ao BBB que me rendi (by the way, mantenho aquela primeira opinião sobre alguns aspectos do programa), mas ao fenômeno que atende pelo nome de Juliette Freire. Com sua empatia e fortaleza, ela ficou maior que o reality.

Comecei a acompanhar sua trajetória lá dentro atraída pela polêmica “Lucas Penteado x Carol Konká”, que ocupou a mídia em massa e mereceu crônicas sobre “cancelamento e assédio moral” até de nomes respeitáveis do jornalismo. Achei que seria coisa de um episódio só, apenas pra eu poder entender do que, afinal, todo mundo estava falando. Então, testemunhei Juliette sendo hostilizada gratuitamente e me condoí (empatia tem poder!). Aí quis assistir outro pra ver se ela conseguia “dar a volta por cima”… Depois outro, pra ver se ela voltava do “paredão”… quando vi, já estava procurando diariamente, nos meus sites de notícias preferidos, as seções “Famosos/Realities/BBB” pra ler como a imprensa estava tratando a participante.

Fui conquistada pela personalidade forte e ao mesmo tempo generosa da paraibana, capaz de se defender “muito bem, obrigada”, mas também de acolher e perdoar quem lhe agride. Admirei cada vez em que ela conseguiu sustentar, com didatismo e leveza, narrativas de sororidade, empatia e orgulho – não aquele orgulho ruim, nascido de egos inflados  ou feridos, mas de pertencimento, de quem abraça a própria identidade com firmeza, sem precisar, para isso, ofender a do outro – em meio à adversidade.

Virei “cacto” (como se intitulam os até então torcedores e hoje fãs de Juliette). E olhe que eu nem havia assistido a seus piores momentos dentro da casa mais vigiada do Brasil, ocorridos lá pelas primeiras semanas. Fui vê-los só hoje, no terceiro episódio do seu doc: ela sendo covardemente criticada e/ou ridicularizada, a maior parte dos ataques “em bando”, ela sozinha pra se defender. Ainda tentava o diálogo. Ainda forçava-se a entender que cicatriz ou dor fez tal pessoa agredi-la de determinada forma. E sempre conseguindo se impor sem vitimização – algumas vezes até de uma forma autoritária, porque… você sabe… é um fio tênue a separar a firmeza do autoritarismo e ninguém é perfeito o tempo todo, ou não viveria neste mundo.

Eu pensava: caramba, como ela consegue se manter em pé? Porque eu, com um décimo do que ela passou ali, teria me liquefeito em choros convulsivos, ido embora pra casa e me fechado em um quarto escuro por uns dez anos, cheia de vergonha por ter me mostrado tão vulnerável em público.

Daí que eu quis ser ela. O Brasil inteiro quis e este foi o verdadeiro fenômeno!

Em um período tão cheio de discursos de ódio e intolerância, a gente (finalmente!!!) quis se espelhar em alguém que sabe pregar a paz mesmo ferida, que exerce a amorosidade sem se deixar diminuir ou subjugar.

Não é pouco, senhoras e senhores. Na verdade, é muito! Principalmente no Brasil de hoje.

Além disso, o carisma de Juliette, aliado a seu jeito simples e espontâneo, faz a gente festejar suas conquistas como se fossem nossas – ou de um familiar muito querido. Por isso nem rola inveja: parece a gente lá (já disse que empatia tem poder?!).

Acho que eu e os mais de 31,5 milhões de cactos que a seguem no Instagram estávamos precisando lembrar (e/ou descobrir e/ou acreditar) que existe no mundo gente forte e generosa como Juliette e que não é tão diferente assim de nós. Isso é um alívio! Dá esperança.

Então, ‘bora lá passar da torcida pra reforma interior necessária pra gente também ser mais assim? Eu ‘tô na lida!

Prece pra meus ídolos viverem pra sempre

A cada aniversário de Bethânia, Caetano, Gil, Chico Buarque ou qualquer um de meus “ídolos supremos” (tenho que rankeá-los por adjetivos, porque tenho muitos e em todas as artes) me vem sempre o mesmo desejo-pensamento-mega-egoísta: “tem gente que devia aniversariar pra sempre!”. Nunca morrer nem parar de fazer arte.

Porque, do contrário (aiaiai… não gosto nem, de pensar)… Imagine nunca mais ouvir uma nova música ou um  álbum inteiro, novinho em folha, na voz da Maria Bethânia!!! Sobe um frio pela minha espinha imaginar nunca mais assistir a um novo show ao vivo (mesmo que gravado) com sua interpretação magnética e arrebatadora! (Caetano, Gil e Chico idem, mas não foram eles a aniversariarem neste 18 de junho).

Descobri da pior forma o quanto dói isso de perder alguém com o poder de “salvar seu dia” (por vezes sua vida)” só com a sua arte: tinha 21 anos quando morreu Fred Mercury – pra mim a voz mais linda do rock de todos os tempos! (entre os vivos é a do Eddie Vedder). Fiquei muito triste na hora, mas não me descabelei. Só fui sentir luto pesado mesmo cerca de um ano depois, quando fazia mais uma maratona auditiva do Queen e caiu minha ficha de que nunca mais ouviria nada novo na voz dele. Cara… nem sei descrever o abismo que encarei com aquela ausência!

Quando se foram Renato Russo e Cassia Eller, eu já tinha a dimensão real do impacto de uma perda dessas pra quem tem música como religião – lembro exatamente onde estava quando recebi a notícia sobre a morte de ambos… a da Cássia até que cheiros senti na hora e de como, de repente, aquele início de noite agradável com meu amor numa mesa de pizzaria perdeu todo o sentido.

Até hoje, quando ouço alguma gravação da Cassia cantando, me vem esse luto reincidente: “aaaaai… nunca mais novas interpretações viscerais nessa voz passional, que rasga o ouvido e apura os sentidos…”. E aqueles agudos arrepiantes de barítono do Renato cantando poemas que falam tão pra dentro de mim… como não ter saudades doloridas?!?!

Scott Weiland (Stone Temple Pilots) e Chris Cornell (Soundgarten, etc) não estão em minha categoria de “supremos”, mas também sinto falta.

É tão sério pra mim isso de saudades artísticas que, a cada vez que um de meus ídolos aniversaria, faço uma prece de gratidão. Fiz uma hoje por Bethânia, logo que fui lembrada de seu aniversário no primeiro telejornal da manhã. Depois, pus no rádio do carro sua playlist pra tocar, começando por “Onde Estará o Meu Amor” e cantarolei junto com uma alegria de festa! Percorri o trânsito caótico entre minha casa e a de meus pais no clima que toda obra de arte arrebatadora causa em mim: uma sensação de plenitude e perfeição, como se tudo no mundo estivesse exatamente onde deveria estar.

E agora mesmo, vendo outra matéria sobre o aniversário de Bethânia no telejornal da noite,  atrevi-me a rezar outra prece – esta bem mais egoísta: “por favor, Deus, faça ela aniversariar pra sempre! (E também Caetano… e Gil… e Chico… e Marisa… e Nana… Zélia… Eddie… Zizi… McCartney… Herbert… e o parêntese não fecha, nem o texto acaba porque a lista não tem fim…

Mãe de pais

Nunca fui mãe.
Não cheguei sequer a engravidar, portanto não conheço a sensação de receber um teste positivo, de ter meu corpo se transformando pra formar um novo ser e confesso que não invejo conhecer a famosa “mãe de todas as dores” (com o perdão do trocadilho) de parir uma criança de parto normal sem anestesia – Deus sabe que conheço muitas dores físicas incapacitantes e não sei se aguentaria uma pior!

No entanto, sempre tive o maior respeito por pais e mães. Respeito tanto que, apesar de sempre ter desejado filhos, não tive coragem de tentar engravidar quando finalmente pude escolher – antes faltava um pai, depois estabilidade financeira e depois tempo, mas o que realmente me impediu foi a covardia. É que cresci filha caçula em uma família de poucos recursos, com um pai que passava a semana fora para atender clientes em outras regiões num tempo em que telefones fixos eram luxo e celulares uma ficção. Então assisti muito de perto aos sacrifícios e dificuldades enfrentados por minha mãe para conciliar a criação das três filhas com o dinheirinho extra que precisava fazer olhando filhos de vizinhos e prestando serviços de manicure. Depois testemunhei a loucura que foi para minhas irmãs mais velhas conciliarem trabalho e maternidade.

Faltou coragem da minha parte, mas Deus achou um jeito de me fazer experimentar um simulacro de maternidade: mexeu seus pauzinhos para garantir que eu, entre as três irmãs, tivesse como cuidar mais de perto de meus pais quando minha mãe perdeu toda a mobilidade. Foi quando finalmente entendi a utilidade de ter sofrido um acidente grave de moto que me deixou quase um ano sem andar entre 2016 e 17 – recebi todo o amor e suporte de minha família na ocasião, mas mesmo assim senti na pele como é difícil depender fisicamente de outro ser humano.

Depender do outro implica muito além de vulnerabilidade física, mas também (e muito mais) vulnerabilidade emocional e psicológica; implica muita vergonha por se ter sempre companhia ao fazer necessidades fisiológicas; culpas – como, por exemplo, de sua bexiga funcionar tão bem que o cuidador fica com o sono picotado por ter de posicionar a comadre pra você mais de uma vez na madrugada; enfim, de precisar que outra pessoa refaça toda a sua rotina para conseguir estar presente na hora de lhe dar café da manhã, almoço, jantar e banho.

Qualquer semelhança com os tão alardeados clichês da maternidade  (“nunca mais dormi depois de virar mãe”) não é mera coincidência. A era de longevidade em que vivemos tem nos imposto uma parentalidade intensa de nossos pais, já que o progresso da ciência anda mais rápido do que a competência de nossos governantes em garantir suporte institucional para uma qualidade de vida na maturidade. Nossa família ainda teve sorte, pois pude abrir mão (não sem prejuízos) de trabalhos para cuidar de meus pais, mas e os filhos que não podem parar de trabalhar?

Mesmo os que podem nem sempre estão preparados física e psicologicamente para isso. E é preciso estar, pois pode apostar que há muita diferença entre trocar fraldas e dar banhos em um bebê e fazê-los em um adulto de 80 quilos, de quem você já dependeu e a quem deveu obediência a vida toda. Isso sem falar na pesada carga mental que é administrar agendas de consultas médicas, exames, remédios, contas de farmácia que só aumentam (aposentadoria que não) e ter sempre que ligar antes pra saber como é a acessibilidade daquele laboratório ou consultório onde é preciso levar sua mãe cadeirante – PASMEM! Alguns não têm sequer estacionamento pra desembarcar deficiente e outros nem elevador como alternativa à escada (aprendi da pior forma!), etc, etc, etc…

O que também aprendi com as experiências de cuidada e cuidadora é que, quando se está no papel de quem cuida, nada pode ser sobre você! Não interessa se você tem todo o seu tempo disponível ou se precisa “equilibrar pratos” para conciliar os cuidados a seu idoso com os de sua família nuclear, seu trabalho ou o que for: não pode deixá-los sentir que atrapalham um pouquinho que seja seus planos, pois já estão se sentindo um estorvo e incapazes o suficiente sem você reclamar. E se você acha que é difícil estar no papel de cuidador, não tem noção do quanto mais difícil é estar na posição do cuidado, posso garantir!

Ter estado neste lugar me fez entender que não se trata de teimosia, por exemplo, quando um idoso leva tombo teimando em tentar fazer coisas que seu corpo não suporta mais: é vergonha de depender! E os choros fáceis não são manha ou chantagem emocional, mas vulnerabilidade psicológica decorrente de não se reconhecer em seu próprio corpo. As irritações e os maus humores não são rabugices, mas pura manifestação de impotência. Sem falar do medo de que nada nunca mais volte a ser como antes – e no caso deles o mais provável é que não volte mesmo.

Confesso que precisei do acidente para aprender esta empatia, pois meu déficit de atenção sempre me fez muito voltada para dentro de mim, portanto desligada do outro (o que me rendeu uma vida inteira de problemas de sociabilidade, mas essa é outra história). Posso dizer que, atualmente, sou uma “egoísta em reconstrução”, porque ainda não me tornei a melhor “mãe” do mundo para meus pais. Uma mãe virginiana, hiper organizada e responsável, sim, mas que ainda perde a paciência às vezes (me desculpo cada vez mais rápido!). Ainda preciso me lembrar de não reclamar perto deles e, ao menos por enquanto, não sei como disfarçar o cansaço e as dores físicas. 

Mas outra coisa que também acabei de aprender na prática (e aí vem outro clichezão) é que “nenhuma mãe é perfeita”… e está tudo bem! O importante é ter pra nós mesmas a consciência de que demos o nosso melhor. Tenho sido “a melhor mãe que posso” pra meus pais e peço todos os dias a Deus: por favor, Senhor, que esteja sendo suficiente!

 

P. S. Toda a minha gratidão ao meu amado marido, Márcio, que foi o melhor cuidador que uma acidentada poderia ter e nunca deixou transparecer o quão difícil era!

‘Bela Vingança’ não poupa ninguém

Já disse neste espaço que minha torcida para o Oscar 2021 de Melhores Filme e Diretor estava com a chinesa Chloe Zhao, que assina roteiro e direção do sensível “Nomadland” (EUA, 2020). Pois, aos 45 segundos do segundo tempo, minha torcida mudou para Emerald Fennell, de “Bela Vingança” (Young Promising Woman, EUA, 2020), e por motivos justificadíssimos.

Estreante nos papeis de roteirista e diretora, a também atriz Emerald fez um filme absolutamente necessário nestes tempos em que movimentos como o #MeeToo jogam no ventilador a impunidade dos crimes sexuais praticados contra a mulher.

Carey Mulligan está excepcional no papel da protagonista, Cassie

“Bela Vingança” vai além ao narrar a história de Cassie (Carey Mulligan excepcional!), a jovem promissora do título original – uma alusão ao fato dela já ter sido uma brilhante estudante de Medicina. Mostra que esse tipo de abuso ocorre muito mais do que nós, como sociedade, conseguimos enxergar – ou admitir – e não é cometido só pelo sociopata violento, que age em becos escuros ou domicílios invadidos.

Ao passar suas noites em bares a fingir-se de bêbada para flagrar homens prestes a se aproveitarem sexualmente de sua vulnerabilidade, Cassie demonstra que o abuso pode ser praticado pelo “cara legal” ao lado. Ou seja, basta a oportunidade se apresentar que, de dentro do vizinho respeitador, do crush de faculdade ou do “date” sedutor, pode emergir o estuprador em potencial, construído dentro deles por séculos de machismo estrutural.

Quando Cassie reencontra um colega de faculdade, agarra a chance de vingar-se do que a fez abandonar a promissora carreira universitária: o abuso cometido contra a amiga de infância, Nina, que acaba morrendo (supostamente por suicídio) após não conseguir acolhimento nem dos amigos, nem da faculdade e ainda ser culpabilizada pelo ocorrido – como se embriaguez constituísse uma licença para o estupro.

A genialidade de Fennell revela-se na forma didática e inacreditavelmente leve e bem-humorada com que narra essa história de vingança. Ela consegue construir uma justiceira que foge ao estereótipo da psicopata, que acaba sendo moralmente reprovada mesmo tendo se tornado uma devido a um trauma sofrido. Sua Cassie é uma vingadora “do bem”, pois não usa de violência, e se faz algum mal é só a si mesma.

Uma amostra genial de seu didatismo (e aqui entra um alerta de semi-spoiler) é a cena em que Cassie prepara o cenário de sua vingança final. Repare em algumas respostas que ela dá à presa da vez ante seus protestos contra avanços aparentemente sexuais… Há frases que as mulheres estão cansadas de ouvir em rituais de assédio, como a clássica “não farei nada que você não queira”.

Porque, SIM, TODAS NÓS já sofremos assédio alguma vez (ou muitas) na vida, em diferentes níveis, ambientes e condições de vulnerabilidade. Ou seja, é sistêmico mesmo, e tão naturalmente praticado que chegamos a legitimá-lo, como faz a reitora de faculdade (mais um alerta de spoiler) ao dizer que não podia estragar a vida de um jovem promissor porque uma garota decidiu se colocar numa posição “vulnerável”. Em outras palavras, entre a palavra do menino e da menina, e entre estragar a vida do jovem agressor e da jovem vítima, a mulher que lute!

Assim, “Bela Vingança” não poupa ninguém – nem as próprias mulheres – ao retratar como todos contribuímos para a cultura do estupro, não só quem o pratica, mas  também quem se omite em denunciá-lo ou puni-lo e até quem nem consegue enxergá-lo, tão entranhado ele está em nossos usos e costumes.

Por fim, destaco a ótima interpretação entregue pela jovem Carey Mulligan: econômica, mas exata, calcada mais na modulação de voz e no olhar. Mesmo concorrendo ao Oscar com veteranas já laureadas, como Viola Davis e  Frances MdDomand, não será nenhuma injustiça se ela vencer. Torcendo por ela!

 

Inconsciente, mas ainda racismo

Sobre a repercussão do episódio de racismo estrutural ocorrido no reality show Big Brother Brasil (BBB), acho que, em vez de jogar pedras, devíamos ajudar as pessoas a enxergarem o próprio preconceito, pois só a partir disso elas vão se conscientizar de que devem mudar. Dito isso, segue minha contribuição neste caso específico:

Quando o participante Rodolfo disse que o cabelo de sua fantasia de “Homem das cavernas” parecia o do colega de confinamento João, foi como este se sentiu – e como entendeu que pessoas como o sertanejo o veem devido a seu cabelo crespo.

Como beleza é um conceito socialmente construído, o episódio mostra que o de Rodolfo está contaminado pela crença (racista sim!) de que cabelo de negro é sinônimo de feiura.

Até acredito que Rodolfo não tenha tido intenção de ofender, mas é esta (a inconsciência) a principal característica do racismo estrutural: está tão arraigado em nosso comportamento e em nossas crenças que não o enxergamos.

Pra enxergar, é preciso, como a outra BBB Camila muito propriamente pontuou, APRENDER, e só se faz isso colocando-se no lugar das vítimas. No caso do Rodolfo, significaria sair do ponto de vista do próprio umbigo (de onde ele só enxerga que não houve intenção de ofender) pra perguntar por que o João se sentiu ofendido.

O João já deu uma pista quando disse que não é porque tem esse cabelo que é um homem das cavernas (uma figura pejorativamente associada à feiura e à brutalidade).

Quando  Rodolfo finalmente enxergar que a comparação fez João sentir-se feio e brutal, deve ir mais fundo na reflexão e SE PERGUNTAR por que uma fantasia de monstro o fez, impulsivamente, compará-la ao João. A resposta sincera a este auto questionamento é que levará ao aprendizado de Rodolfo sobre seu racismo inconsciente.

Espero ter contribuído.

‘Nomadland’ é sobre liberdade e desapego

Eu nunca havia ouvido falar de Chloé Zhao até ela faturar o Globo de Ouro 2021 de Melhor Direção, mas esta chinesa de 38 anos acaba de se tornar minha mais nova diretora de cinema favorita. É que acabo de assistir a “Nomadland”, que Zhao roteirizou, dirigiu e editou, inspirada no livro homônimo da jornalista norte-americana Jessica Bruder, e ainda estou sob o enlevo de sua atmosfera cool e delicada.

Frances McDormand com a diretora Chloé Zhao no set de ‘Nomadland’

Não é um filme para todos, porém, já aviso. Muito menos para o espectador desacostumado a um andamento mais lento (não confundir com arrastado) da narrativa, que neste filme resulta mais visual do que textual – sim, os diálogos são econômicos e só aparentemente banais.

Porque banal é tudo o que “Nomadland” não é, com sua forma muito feminina e emblemática de contar a história de Fern, viúva que após perder emprego e casa devido à falência da maior empregadora de sua cidade, passa a morar numa Van e a viver de empregos temporários. Instigada por uma amiga, Fern experimenta a vida nômade a que muitos norte-americanos são levados pela crise econômica.

A sinopse pode soar algo depressiva para nós, comuns mortais a levarem vidas quadradinhas, mas este seria outro engano. Apesar de ter a crise financeira de 2008 nos EUA como pano de fundo, “Nomadland” não é sobre pobreza; seus personagens estão sempre se despedindo, mas não é sobre perdas; e sua protagonista vive sozinha, mas não é solitária.

“Nomadland” é, sobretudo, sobre liberdade, desapego e estar desperto no momento presente, enxergando as belezas do mundo que nos passam despercebidas quando estamos ocupados demais com nossas ansiedades cotidianas.

Pra provar isso, destaco dois emocionantes mini-monólogos em que as personagens Swankie (idosa que decide passar o tempo que lhe resta de vida viajando em meio à natureza) e Bob (militante que cria uma rede de apoio para os trabalhadores nômades) dão a Fern verdadeiros testemunhos desse olhar livre e desperto. – vocês vão ter que assistir ao filme para conferi-los.

No mais, tenho a dizer que a veterana Frances McDormand segue uma atriz espetacular, que prescinde de caras e bocas para entregar uma interpretação brilhante. Sua Fern equilibra firmeza e doçura, altivez e vulnerabilidade. O resultado é adorável e muito humano.

Grande atriz! Belo filme! Puta diretora!

I’ll see you down the road, Zhao”.