Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2022 também assessora de comunicação; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Richard Armitage

Richard Armitage

Se você considerar separadamente cada traço do inglês Richard Armitage – os lábios muito finos para o tamanho da arcada (levemente recuada em relação ao queixo meio pontudo), o nariz grande e mal desenhado e os olhos fundos – concordará que ele também não se encaixa no padrão masculino de beleza do cinema.

Mas assista-o utilizando este conjunto na interpretação de uma cena de grande emoção (como a que postei ao final deste texto, por exemplo). O olhos azuis claros adquirem uma intensidade de agulha, os músculos da face se contraem à mercê da expressão e a boca articula com ferocidade e determinação. E a voz…

Ahhhh, a voz de Richard Armitage…! Como no caso de Matthew MacFadyen, é seu grande trunfo, com a diferença de que Armitage é muuuuito melhor ator. A ira de seus personagens dá medo, bem como sua tristeza desperta vontade de niná-lo ou sua expressão amorosa faz derreter. Por este motivo não entendo o porquê de sua carreira continuar restrita à TV inglesa, onde até recentemente ele arrancava suspiros no papel de Guy of Gisborne, do seriado “Robin Hood”.

No “The Internet Movie Database” – o banco de dados mais completo sobre o mundo do entretenimento na rede – consta que ele emenda um trabalho em outro na TV desde 1999, sempre em episódios de minisséries ou seriados. Não encontrei nenhum longa metragem em sua cinematografia, mas o registro de experiências anteriores em teatro e musicais explicam a voz forte e sempre bem colocada, o talento interpretativo, a boa linguagem corporal e a grande presença em cena.

Eu o conheci na pele de John Thornton, protagonista de “Norte e Sul”, adaptação em quatro capítulos feita pela BBC de romance homônimo da inglesa Elisabeth Gaskell, cuja obra se assemelha em muitos pontos à de outra inglesa muito filmada pelo cinema ocidental: Jane Austen.

Assisti à série e A-DO-REI! Principalmente, claro, devido à atuação de Armitage. Entendi porque os fãs de Jane Austen estavam defendendo a sua escolha para o papel de Mr. Knightley na adaptação de “Emma” que a BBC rodou em 2009 (volta-e-meia a emissora inglesa programa uma nova adaptação de uma obra da escritora). Mas o escolhido foi mesmo Johnny Lee Miller, o protagonista da série “Eli Stone”, da Sony, que já viveu antes um personagem de Austen: foi Edmund na versão para o cinema de “Mansfield Park” (que no Brasil passou com o título de “Palácio das Ilusões”). A Emma de 2009 tem a atuação de Romola Garai, a boazinha Amélia de “Feira de Vaidades” e a Briony adulta de “Desejo e Reparação”.

‘Dúvida’: todas as certezas são frágeis

“Sempre tive medo de pessoas que têm certeza de tudo”.

Esta frase, que li há muitos anos, não sei em qual livro ou filme, ficou em minha memória para sempre. Hoje sei porque: as pessoas que mais temi na vida exerceram algum tipo de autoridade opressora sobre mim e este é o tipo exercido pela personagem que deu o Oscar de Melhor Atriz deste ano a Meryl Streep, no filme “Dúvida” (Doubt, EUA, 2009), de John Patrick Shanley.

A atriz interpreta (divinamente, como sempre) uma freira assustadora, que dirige com mãos de ferro um colégio religioso. Quando um dos padres professores profere em missa um sermão sob o tema “Dúvida”, ela passa a investigá-lo. Em dado momento, julga-o capaz de molestar o único garoto negro da escola, que, isolado, recebe dele apoio e atenção especiais.

O roteiro é hábil em despertar também em nós, espectadores, a dúvida sobre a culpa ou inocência do padre, mas, a mim, pessoalmente, causou muito maior assombro o comportamento autoritário da freira, que não vacila em acusá-lo, mesmo sem provas concretas. Para culpá-lo, ela maximiza evidências vagas relatadas pela jovem freira interpretada por Amy Adams, também indicada ao Oscar de atriz coadjuvante pelo papel – o filme, aliás, rendeu quatro indicações de atuações naquele ano: além de Meryl e Amy, também para Viola Davis e Phillip Seymour Hoffman.

Assustadora esta freira que olha nos olhos de todos e diz exatamente o que deve ser feito, que não admite que possa haver outras versões para o que é certo, que acua a todos com suas certezas

O desfecho do filme reserva destinos surpreendentes aos antagonistas. Nada é o que parece ser e descobrimos que há algo de frágil na autoridade de quem não admite questionamentos. Se as certezas são sua sustentação, o que acontecerá a essas pessoas quando a mínima dúvida começar a corroer este pilar?

Com o tempo, também deixei de temer as pessoas que têm certeza de tudo, porque, no fundo, todas as certezas são frágeis.

Terapia de grupo para ‘luluzinhas’

A “formulização” dos roteiros de cinema pela grande indústria torna cada vez mais raro eu me divertir com uma comédia romântica. É que assistir muitas vezes a filmes que seguem a mesma fórmula de  roteiro, feita para atrair grandes bilheterias, faz a gente adivinhar  o que vai acontecer e até sentir muita vergonha alheia com cenas e diálogos piegas ou desfechos forçados. Um saco, né?!

Mas, graças à “Nossa Senhora dos Cinéfilos”, alguns roteiristas ainda conseguem inovar e, às vezes, até brincar com as fórmulas batidas do cinemão, como foi o caso em “Sintonia de Amor” (sobre a qual já escrevi aqui), e a comédia romântica tema deste texto: “Ele Não Está Tão a Fim de Você” (He’s Just Not That Into You, EUA, 2009), com direção de Ken Kwapis.

Há muito tempo eu não me entregava sem reservas a um “filme para luluzinhas” (que, aliás, adooooro quando bem feito!). Dei boas risadas, mas também me enterneci com alguns trechos mais românticos e/ou dramáticos de cada uma das histórias paralelas que se entrelaçam no filme.

O roteiro escancara a tendência feminina em encontrar desculpas e significados ocultos para a covardia masculina em “falar a real” para as mulheres. Ou seja, assumirem, sem truques, com toda a franqueza que o sexo oposto merece, o que realmente querem em um relacionamento.

Não posso falar sobre todas as mulheres, mas eu mesma me vi em mais de uma situação emblemática reproduzida no filme e sei que várias amigas também (não é, Karen Rodrigues e cia.?). Todas descobrimos que pode ser bem catártico nos permitirmos dar boas gargalhadas ao nos vermos no “espelho social” que o cinema, às vezes, propicia.

Admiro até que FUI (observem o tempo do verbo) a personagem de Ginnifer Goodwin, romântica incurável que busca um relacionamento sério, mas vive caindo nas “mentirinhas” que os homens contam para simplesmente “pegar” o máximo de mulheres que puderem. E quando os potenciais candidatos a namorado não ligam de volta após o primeiro encontro, levanta todo tipo de hipóteses psicanalíticas para desculpá-los. Quem faz Ginnifer acordar para evidências de que as tais desculpas que os homens dão significam simplesmente que eles não estão a fim dela é o personagem de Justin Long, barman “sincerão” de quem se torna amiga. Ele passa a ser seu consultor na interpretação das “desculpas” que os homens dão, para que ela pare de perder tempo tendo expectativas com quem não merece.

Só cito o perfil da personagem de Ginnifer porque é aquele com o qual me identifiquei, mas a partir das experiências das amigas dela, outras situações se ramificam em um mosaico das dúvidas que assombram os relacionamentos modernos. Tenho certeza que todas encontram similares na realidade, mas desconfio que a coisa toda só terá graça para quem estas situações já ficaram no passado…

Rir de tudo é muito mais fácil quando a doença não está mais instalada.

Harry Potter: lições que podem salvar uma geração

Tenho uma inveja boa da geração que cresceu assistindo/lendo à série Harry Potter. A minha não contou, no cinema, com um produto dramatúrgico que lhe alcançasse tão certeiramente neste período crucial de passagem da infância para a adolescência. Descontados os resumos inevitáveis para fazer caber a história de cada livro nos roteiros de cinema, a saga do bruxinho resultou muito bem filmada e interpretada para as telonas. Acaba sendo um suporte visual para a mágica obra literária de J. K. Rowling, que soube dosar com maestria em seu caldeirão doses de fantasia, mitologia, arquétipos psicanalíticos e temas caros ao universo infanto-juvenil.

Vamos deixar de lado os preconceituosos que torcem o nariz para qualquer dramaturgia que vire fenômeno de massa e admitamos: a série “Harry Potter” é a obra (bem sucedida) de uma geração. E esta é uma ótima notícia! Porque quem cresceu com a série pode ter apreendido, com os conflitos enfrentados pelo bruxinho órfão, valiosos valores morais por assimilação inconsciente – alguns deles perdidos dentro dos novos modelos de família, em que muitos pais atarefados (ou desinteressados) demais deixam à escola a formação moral que deveria vir de casa.

O padrinho Sirius explica a Harry que todos temos o mal e bem dentro de nós e o que define quem somos são nossas escolhas

É grande a carga de lições passadas pela obra e elas podem salvar uma geração da tendência ao ódio e à intolerância, por exemplo. Entre as mais importantes, a de que são as escolhas pessoais e não uma pré-determinação genética ou cármica que definem o tipo de pessoas que somos/seremos. Outra: de que a intolerância está na raiz dos regimes autoritários e de toda guerra.

A saga traz ainda lições sobre amizade, abnegação e sacrifício – qualidades reduzidas ao status de cafonice em um modelo de conduta individualista cada vez mais em voga nesta era da informação. Harry não será o único herói a dar exemplo delas. Como pontuou muito bem o crítico de cinema Luiz Carlos Merten, à época do lançamento de “Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2”, o último filme da saga descortina outro herói, “o verdadeiro herói, que tem que trair para servir o objeto de sua devoção”. O que carrega bravamente o ônus da antipatia e do julgamento injusto em nome de uma causa maior que ele mesmo.

E correndo o risco de assumir de vez a pecha de cafona, atrevo-me a dizer que ainda não inventaram nenhuma motivação mais legítima para escolher o que é certo – pautando como certo o que é bom para toda a coletividade – do que “gostar do outro como de si mesmo”. Isso lembra alguma coisa?

‘O Casamento de Rachel’: de perto nenhuma família é normal

Anne Hathaway e Rosemary DeWitt interpretam irmãs no drama ‘O Casamento de Rachel’

Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira“.
Leon Tolstói, in ‘Anna Karenina’

 

Volta e meia o cinema coloca à prova as frases acima, convidando o espectador a adentrar a intimidade de famílias exemplares na aparência, mas disfuncionais nos bastidores. Esta modalidade de enredo ganhou um representante fora da curva em “O Casamento de Rachel”, produção de um grande estúdio filmada com pegada de independente pelo diretor Jonathan Demme (“O Silêncio dos Inocentes” e “Filadélfia”).

O drama rendeu a primeira indicação ao Oscar de Melhor Atriz da carreira de Anne Hathaway (“O Diário da Princesa” e “O Diabo Veste Prada”), que mereceu! Ela está de arrasar no papel de Kimmy, dependente química que recebe autorização da clínica de reabilitação na qual se trata – não pela primeira vez – para comparecer ao casamento da mais velha, Rachel. A condição é que se submeta a testes de urina antes e depois do evento e freqüente reuniões diárias do Narcóticos Anônimos pelo tempo que precisar se ausentar.

Nos poucos dias entre o jantar de ensaio do casamento e a cerimônia oficial, assistimos à família tentar dar um aspecto de normalidade às relações com a caçula problemática, que tenta fazer “remendos” aqui e ali. Mas há muitas feridas abertas em cada um por episódios traumáticos causados por seu vício. Antigos ressentimentos com os quais todos evitavam lidar vêm à tona, revelando, inclusive, que todos têm sua parcela de responsabilidade em cada drama familiar.

A câmera de Demme acompanha as ações e reações de cada personagem muito de perto, dando, às vezes, um clima de documentário à produção. Em outras de um filme caseiro de evento familiar. Em todos os casos, temos a incômoda impressão de estarmos olhando para o que não deveríamos, por um buraco da fechadura. Talvez até tenha sido esta a intenção do diretor ao filmar de uma forma tão intimista: fazer com que nos sintamos intrusos em cenas que são da conta apenas daquela família.

Ao final, nem todos os ressentimentos são resolvidos e ou todas as culpas perdoadas, mas a mensagem que fica é a de que, por mais forte  os dissabores e decepções, o amor tem o poder de manter unidos entes que nem sempre conseguem conviver juntos sem se machucarem.

O holocausto pelos olhos de uma criança

Chamem de inconsciente coletivo do cinema ou simplesmente oportunismo a atual a onda de filmes que busca rever o nazismo de pontos de vistas de protagonistas incautos, como “Um homem bom”, por exemplo – que mostra a perspectiva de um cidadão de bem seduzido pelo regime do fuher -, e “O menino do pijama listrado”, que assisti recentemente.

Neste último, a perspectiva é a de um garoto de oito anos de idade, que curte feliz a alienação da infância em um bairro nobre de Berlim. Quando seu pai – um militar do qual ele muito se orgulha – é promovido, a família toda se muda para uma região rural. Ali está instalado nada menos que um dos campos de concentração do nazismo, que será gerenciado pelo pai.

Seu contato com uma realidade até então impensável para sua família perfeita se dará através de uma cerca, à margem da qual ele passa a encontrar, todos os dias, um menino mais ou menos de sua idade que, a exemplo dos demais habitantes daquela estranha “fazenda”, só veste pijamas.

Aos poucos ele descobre que os “fazendeiros” não estão ali por escolha, mas como punição por serem judeus, delito cuja gravidade ele jamais entenderá a extensão.

Como em “A Culpa é do Fidel”, o tempo todo o ponto de vista que prevalece é o da criança. Nós, espectadores, sabemos o que cada pista que o menino pesca da realidade à sua volta significa, mas somos forçados a acompanhar pacientemente suas descobertas, o que acaba sendo instrutivo (qualquer novo ângulo de um mesmo problema é revelador).

O desfecho é dramático, como é de se esperar em qualquer filme que toque, ainda que superficialmente, o tema do holocausto.

Cinema ocidental e cultura indiana: paquera antiga

Já havia citado em minha postagem sobre o ótimo “Quem quer ser um milionário” que o encontro entre Bollywood (o cinema de entretenimento indiano) e o cinema ocidental não é tão novidade assim. Para provar, relaciono abaixo quatro filmes nos quais a “paquera” entre a cultura indiana e o cinema ocidental resultaram em ótimo entretenimento (em minha opinião, claro).

“Driblando o destino”, de 2003, tem produção e atores ingleses, mas o roteiro e a direção são assinados por indianos – ou descendentes deles. Sua maior curiosidade é trazer três atores à época ainda pouco festejados, mas que se tornariam, em poucos anos, verdadeiros “queridinhos da indústria”: Keyra Knightley – ainda na puberdade, aparece aqui de aparelhos nos dentes em um papel secundário; Pasminder Nagra, que viria a interpretar a médica Neela Rasgotra do seriado E.R. (“Plantão Médico” no Brasil); e Jonathan Rhys Meyers (de “Ponto Final – Match Point” e “O Som do Coração”) que à época nem sonhava em ser escalado como protagonista em um filme de Woody Allen.

No filme, a personagem principal é a adolescente Jesminder, filha de uma família indiana radicada em Londres que faz questão de seguir, em seu pequeno e fechado círculo social, os mesmos costumes tradicionais do país natal. Isso tem um custo alto para as filhas, divididas entre a obediência aos pais e a atração exercida pelos costumes mais liberais do país em que cresceram.

Jane Austen na Índia

No ano seguinte, a mesma diretora de “Driblando o destino”, Gurinder Chadha, assinaria uma adaptação “bollywoodiana” do clássico de Jane Austen “Orgulho e Preconceito”. Sob o título de “A Noiva e o Preconceito”, a co-produção anglo-americana resultou em um misto DIVERTIDÍSSIMO de comédia romântica e musical.

A história, quem curte Jane Austen -o u todas as adaptações cinematográficas já feitas de seus livros – já conhece bem: dois amigos ricos chegam à cidade e viram alvo de uma mãe ávida para casar algumas das suas quatro filhas solteiras. No caso de “A Noiva e o Preconceito”, a cidade é Nova Delhi, capital da Índia, e os amigos dois advogados – um americano e o outro indiano em férias no país natal .

A atriz indiana Aishwarya Raí foi descoberta pelo cinema ocidental neste filme e voltou a protagonizar outra produção anglo-americana com um pé na Índia no ano seguinte: “O Sabor da Magia” (“The Mistress of Spieces”), em que Gurinder Chadha assina a coprodução. A direção ficou a cargo do desconhecido Paul Mayeda Berges. Neste romance Aishwarya interpreta Tilo, dona de uma loja de especiarias em São Francisco (EUA) que possui o dom mágico de transformar seus ingredientes em poções para curar as pessoas. Porém, ela só mantém o dom se mantiver-se fiel às regras sagradas de nunca provar alguma de suas receitas ou se apaixonar, o que, claro, vai acontecer!

A força das raízes

“Nome de família”, da indiana Mira Nair, é o único drama desta lista. Sensível, mostra o esforli de um casal indiano para se adaptar aos Estados Unidos sem abrir mão de sua identidade indiana. Em sua segunda parte, o filme enfoca a segunda geração pelos olhos do filho mais velho, Gogol. Sentindo-se mais americano do que indiano, o jovem tenta encontrar a própria identidade enquanto lida com as tradições de sua família e toda a influência externa da cultura americana.

O que todos esses filmes têm em comum, além de uma pequena amostra dos costumes e cultura indianos, é um modo de filmar bem diferente do modelo hollywoodiano. As histórias são leves, o ritmo mais lento, porém nem um pouco enfadonho, o que para mim foi um convite à contemplação.

Para os momentos que só precisamos sair um pouco da realidade .

Palavras como lâminas: a dramaturgia de Tennessee Williams

Tennessee Williams em 1956

Logo nos primeiros 10 minutos do filme “Gata em Teto de Zinco Quente” (Cat on a Hot Tin Roof, EUA, 1958) o espectador  recebe, com um primor de concisão e densidade dramatúrgica, as principais informações sobre os personagens: que o principal é um alcoólatra, seu irmão um tolo, a cunhada uma interesseira, a esposa linda, mas desprezada … e todos – menos ele – estão de olho na herança do patriarca doente.

Não quis dar spoiler, mas uma amostra do grande talento com que o dramaturgo norte-americano Tennessee Williams – que assina a peça roteirizada para este filme de Richard Brooks – tece histórias fortes com muito poucos recursos cênicos, em tomadas alicerçadas principalmente em diálogos robustos, carregados de significados. São traços de sua verve de bem-sucedido autor teatral (escreveu mais de 30 peças ao longo da carreira).

A dramaturgia de Williams é tão forte que, mesmo quando suas peças viram filmes com roteiro adaptado por outras pessoas, sua assinatura pode ser percebida no estilo da narrativa e dos diálogos. Costumo dizer que ele usa as palavras como lâminas cortando os interlocutores, despindo-os de suas máscaras  de normalidade para mostrar angústias, medos, desejos, culpas e pecados. Também ajudam a revelar o contorno psicológico que o autor desenha meticulosamente para cada um.

No sentido horário, ‘Gata em Teto de Zinco Quente’, ‘De Repente no Último Verão’, ‘Esta Mulher é Proibida’ e ‘Uma Rua Chamada Pecado’

É verdade que só “feras” pegaram a direção de filmes com histórias de Williams, como os mestres John Huston (“Noite do Iguana”), Elia Kazan (“Boneca de Carne” e “Uma Rua Chamada Pecado”) e Joseph L. Mankiewicz (“De Repente, no Último Verão”), além dos ótimos Sidney Pollack (“Esta Mulher é Proibida”), George Hoy Hill (“Contramarcha Nupcial”) e Brooks (além de “Gata em teto…”, “Doce Pássaro da Juventude”), entre outros. Mesmo assim, para mim, não deixam de ser todos “filmes de Tennessee Williams”.

O dramaturgo também roteirizou muitas de suas peças para a tela grande, a maioria em parceria com outros roteiristas mais afeitos à linguagem cinematográfica. As mais famosas são a já citada “Gata em Teto de Zinco Quente” e “Uma Rua Chamada Pecado” (A Streetcar Named Desire, EUA, 1951), que imortalizou as atuações memoráveis de Vivien Leight (a Scarlett O’Hara de “E o Vento Levou”) e Marlon Brando.

Um jeito de dizer claramente sem dizer de fato

Outra característica que considero genial na obra deste escritor é sua habilidade em abordar tabus sexuais de forma subliminar, numa época em que a sociedade consumidora de dramaturgia ainda era muito pudica e a censura rígida quanto aos chamados “moral e bons costumes”. Era preciso prestar muita atenção a certas metáforas inseridas nos diálogos e também nas construções sugestivas de algumas cenas para “enxergar” as situações que envolviam sexo.

Graças a este modo de dizer claramente, sem dizer de fato, os mais ingênuos simplesmente não entendiam a totalidade do que era exposto, mas o pouco que entendiam era o bastante para não perderem o impacto da história. Por exemplo: na primeira vez que assisti a “Uma Rua Chamada Pecado”, muito jovem ainda, na cena mais forte do filme só entendi que Leigh e Brando se enfrentaram numa cena em que ela saiu subjugada. Só na segunda vez que o vi, mais velha e amadurecida, compreendi como: houve um estupro ali. Também só entendi da segunda vez que Blanche era ninfomaníaca (uns pedaços de diálogos dela aqui, uma tentativa de sedução de um jovem acolá são as evidências). O filme, aliás, é todo sobre desejo e suas implicações, como o nome original (Um bonde chamado desejo) sugere. Consideradas as minhas perspectivas em cada ocasião, a importância da cena mais forte foi assimilada por mim em ambas as vezes, e saber ou não sobre a compulsão sexual de Blanche não diminuiu a força da história em nenhuma delas.

Katherine Hepburn e Elisabeth Taylor em ‘De Repente, no Último Verão’

A leitora Carmen Cagno também lembra, muito acertadamente, a sutileza com que é dada a entender a homossexualidade do protagonista em “Gata em Teto de Zinco Quente”.

E um último exemplo: em “De Repente, no Último Verão” (Suddenly Last Summer, EUA, 1959), Katherine Hepburn (divina, como sempre) acaba de perder o filho adulto, Sebastian, e entrega a sobrinha com tendências suicidas (Elisabeth Taylor) aos cuidados do psiquiatra Montgomery Clift, confiando que ele a tratará com lobotomia. Quando o psiquiatra inicia uma terapia com a paciente, porém, médico e espectador vão descobrindo juntos que, de todos os segredos escondidos na história daquela família, os da instável sobrinha não são os mais escandalosos. Uma das cenas mais fortes do filme consegue passar ao espectador toda a selvageria de um episódio de homofobia sem mostrar a violência de fato.

Crítico do establishment

Outro traço da dramaturgia de Williams é a crítica ácida e impiedosa à ordem estabelecida na sociedade norte-americana, com sua ideologia dominante impregnada de alienação e individualismo. É verdade que o conjunto de sua obra descreve mais a cultura sulista dos EUA, já que ele era daquela região (nascido no Mississipi, viveu também no Missouri), mas Williams consegue colocar todo o pensamento estadunidense nos microscosmos de suas peças.

Sinto falta, na dramaturgia cinematográfica de hoje, desse sotaque teatral nos roteiros, de histórias que não subestimem nossa capacidade de dedução e raciocínio e de roteiristas que não tenham medo de criar diálogos robustos e cheios de camadas. Mas, infelizmente, Tennesse Williams só existiu um!

A imprensa retratada no cinema

Por ser jornalista, sempre me interessou saber como o cinema retrata a imprensa em diferentes produções. Das que assisti até hoje, porém, foram poucas as que retrataram com um mínimo de fidelidade os bastidores do jornalismo ou o modus operandi de seus profissionais. Na maioria, os jornalistas são descritos de forma caricata – ou como profissionais sem ética obcecados por um furo ou como românticos “quixotes” desafiando o establishment – e quase sempre sem nenhuma preocupação com prazos de fechamento.

Os jornalistas das comédias românticas, então, sequer são vistos dentro de uma redação, pendurados ao telefone ou concentrados na tela do computador (como costumamos passar a maior parte de nosso tempo em serviço). Têm tempo para tudo, fazendo muitos espectadores acreditarem que o jornalismo é a profissão mais glamourosa do mundo.

“Adoro Problemas”, por exemplo, mostra Julia Roberts e Nick Nolte como dois jornalistas que se apaixonam enquanto disputam quem dá primeiro cada notícia. Festejados como estrelas em seu metier, eles vestem-se na última moda, misturam opiniões pessoais a fatos em seus textos e nunca estão dentro de uma redação (totalmente fora da nossa realidade).

“Sintonia de Amor” é uma ótima comédia romântica, a despeito da forma pouco realista com que retrata a jornalista interpretada por Meg Ryan. Também sempre bem vestida, a personagem nunca aparece fazendo uma reportagem ou sendo pressionada com prazos pela editora, que é muito boazinha, por sinal. Em dado momento até concorda em aprovar uma viagem, às custas da publicação, para a jornalista passar quanto tempo precisar do outro lado do país conhecendo quem ela acredita ser sua “pessoa certa” (acreditem, há editores legais, mas bonzinhos assim, JAMAIS!).

É uma delícia ver, em “Jejum de Amor”, de Howard Hawks (dos também ótimos “Levada da Breca” e “À Beira do Abismo), as mil confusões que o editor interpretado por Cary Grant apronta para impedir o novo casamento da ex-mulher, também sua melhor repórter. Rosalind Russel está fantástica no papel, tanto que sua interpretação inspirou outros personagens jornalistas do cinema – Jennifer Jason Leight , por exemplo, a reverenciou em sua interpretação da jornalista carreirista de “Na Roda da Fortuna”, filme-homenagem dos irmãos Coen ao cinema de Frank Capra -, mas sua personagem também era glamourosa demais para ter alguma conexão com a realidade.

Neste gênero, só me lembro de um filme que retrata com alguma veracidade os bastidores da imprensa. “O Jornal” acompanha apenas um dia na redação de um tablóide americano em que o editor (Michael Keaton menos canastrão que o habitual) tenta conciliar as demandas da esposa (Marisa Tomei) – também sua melhor repórter, em licença-maternidade e carente de atenção – com a administração de uma equipe de repórteres que manda para a rua levantar todos os lados da manchete do dia.

Glenn Close está fantástica como a administradora que ele tem que tourear para conseguir mais prazo para apurar bem a história, sob pena de dois inocentes serem condenados pela opinião pública. “Publique que foram eles hoje. Amanhã publicamos que não foram”, diz ela tentando convencê-lo a cumprir o deadline (horário de fechamento) da gráfica.

Uma das passagens de que mais gosto no filme é aquela em que o editor (Robert Duval) narra para uma Glenn Close obcecada por prestígio um episódio em que ele, então correspondente internacional em um evento mundial, aceita, junto com outros colegas, o convite de um artista para badalar em um bar chique. Todos se divertem até chegar a conta, astronômica, que ninguém conseguiu pagar. Era sua forma de fazer a deslumbrada em questão entender que “apesar de circular neste mundo (das celebridades), nós (jornalistas) não fazemos parte dele” (você aí, que pensa em seguir a carreira, LEMBRE-SE BEM DESTA LIÇÃO).

O Dossiê Pelicano” não é comédia romântica, mas também trata o repórter interpretado por Denzel Washington como uma espécie de superstar da notícia, que de repente toma ares de detetive-herói quando começa a ajudar a estudante de Direito vivida por Julia Roberts (dá um tempo, né?)

Os verossímeis

Quem diria que num filme de ficção baseado em quadrinhos encontraríamos um exemplar verossímil de muitos editores inescrupulosos e carrascos que existem por aí? Não sei os demais coleguinhas, mas a mim o personagem J. Jonas Jamison, da trilogia “Homem Aranha“, soa muito familiar.

Mas é no gênero drama que o jornalismo encontra seus críticos mais ferozes. Grande clássico da sétima arte, “A Montanha dos Sete Abutres” (Billy Wilder, claro!) traz Kirk Douglas (ótimo, sempre!) na pele de um jornalista inescrupuloso que faz de tudo para voltar a ter prestígio, retardando o salvamento de um mineiro que está preso nos escombros de uma mina para alimentar sua coluna.

No cinema brasileiro, o filme que melhor enfoca os bastidores da imprensa, em minha opinião, é “Doces Poderes“, não por acaso dirigido por uma jornalista, Lúcia Murat. A história principal gira em torno de uma editora (Marisa Orth, desconfortável em um drama), que chega à redação de uma TV de Brasília para comandar a cobertura das eleições.

O filme é cheio de depoimentos em primeira pessoa de outros personagens jornalistas que falam dos “sapos” que têm que engolir na profissão, principalmente neste tipo de cobertura. Os “coleguinhas” também vão reconhecer cenas muito familiares, como Marisa Orth correndo contra o tempo para editar a fita de uma reportagem que acaba de chegar “da rua” e precisa entrar na edição do jornal a minutos de entrar no ar.

Mas, de todos os filmes que retratam a imprensa que já vi ,existe um, baseado em fatos reais, que está no topo da minha preferência, e não é o semi-documental “Todos os homens do presidente“, que toda faculdade de jornalismo obriga seus alunos a assistirem por mostrar os bastidores da investigação sobre o famoso caso Watergate, responsável pela renúncia do presidente Richard Nixon.

Adoro e RECOMENDO a todos “O Informante“, com os fantásticos Al Pacino e Russell Crowe nos papéis, respectivamente, de um pauteiro do jornalístico televisivo “60 Minutos” e sua fonte, um ex-executivo de uma indústria de cigarros. Por ser baseado em livro do próprio Lowel Bergman (o jornalista em questão), que narra sua história real, mostra com fidelidade os bastidores da imprensa norte-americana.

Bergman e Wingand (o executivo) sofrem o diabo depois que o primeiro convence o segundo a testemunhar contra toda a indústria, que subtraiu ao público a informação de que cigarro vicia. A postura do jornalista na defesa de sua fonte, contra toda a campanha de difamação e de destruição que a indústria arma contra ela, é de dar orgulho a qualquer “coleguinha”. Este sim deveria ser obrigatório nas faculdades de jornalismo… e na disciplina de “Ética na comunicação”.

Por fim, antes que alguém me acuse de ter esquecido de citar o clássico supremo “Cidadão Kane“, lembro que o foco do filme nem está sobre o personagem de um simples jornalista, mas de um magnata da imprensa – ou seja, sobre um “dono de jornal” – por isso, não há como analisar a verossimilhança do filme para com o jornalismo real (pelo menos do meu ponto de vista).

Bem, estes são alguns dos filmes que eu vi retratando, bem ou mal, a imprensa. Se alguém mais – jornalista ou não – tiver mais lembranças ou indicações a fazer, por favor, manifeste-se.

CINÉLIDE: porque gosto de boas histórias

O CINÉLIDE nasceu como um blog de cinema, em 2008. Ficou hospedado no portal do jornal em que eu trabalhava, em Araraquara, até 2012, quando migrou junto comigo para o ACidade ON, de Ribeirão Preto. Em setembro de 2018, passa a ser uma seção no Palavreira.

As mudanças de endereço não mudaram o perfil do CINÉLIDE e nem sua razão de existir: compartilhar meus pontos de vista sobre filmes e séries.

O motivo é simples: adoro histórias bem contadas! Se vêm com suporte audiovisual, melhor ainda.

Mas não esperem textos herméticos, pois não me encaixo numa elite cinéfila que assiste à tudo com a lente do crítico de arte. Realizo-me completamente como público e é como tal que escrevo, porque minha relação com as obras dramatúrgicas é mais emocional do que racional.

É verdade que, por assistir muita coisa, o nível de exigência sobe. Passa-se a reconhecer as mesmas fórmulas em diferentes filmes, enjoa-se delas e começa-se a buscar incessantemente por uma história que nos surpreenda…

Se você pensou em um viciado eternamente à procura da sensação da primeira dose da droga, passou bem perto. A diferença é que  acabo encontrando – a cada 30, 40, 50 histórias que devoro – aquela que arrebata. Aí… a excitação é tanta que quero dividir com o mundo.

CINÉLIDE registra minhas melhores descobertas.

Mas quero companhia nesta busca. Por isso, sinta-se super à vontade para dar dicas, comentar e criticar toda e qualquer postagem.

Sem sua participação, esta jornada não tem razão de ser.