Categoria: A Loka dos Livros

Crônicas da advogada, mediadora de leitura e sobretudo leitora Luciana Gerbovic.

Entre conchas, choros e sussurros, um pouco de alegria

Sempre gostei de antiguidades. Há uma senhora centenária que mora em mim e que fica toda eufórica quando encontra lugares ou coisas que lhe eram familiares. Foi assim que me senti quando conheci o centro antigo de São Paulo, por exemplo, sei lá quantos anos eu tinha. Nunca me diverti muito vendo arranha-céus espelhados com elevadores panorâmicos que falam com a gente, tão o contrário do que sinto ao ouvir o estalar do piso de madeira de casarões. Quem será que já passou por aqui?, fico imaginando. Amaram?, Sofreram? Riram? Dançaram nesse piso?

Meu filho me perguntou, ontem mesmo, qual era minha matéria preferida na escola. Sempre foi História. E ele não se conformou. Gostar de ficar sabendo dessas velharias, credo, mãe! Mas como entender as novidades, meu filho, sem saber das velharias? Não somos também parte das histórias dos nossos antepassados? Não carregamos deles mais do que a carga genética? Não somos frutos de escolhas passadas?

Essa semana comecei um curso de croata e quase todos ali, na tela do computador, mencionaram a vontade de se embrenhar mais nas raízes. Só de ouvir alguns sons emitidos pelo professor já fui parar na cozinha do meu tio-avô, onde minha bisavó croata, todos os sábados, se reunia com os filhos. Eu não entendia nada do que diziam, mas o som daquelas palavras, sempre entrecortado por risadas, era um fundo me sussurrando que tudo estava bem. Fazer aula de croata é voltar a esse quintal, como colocar aquelas conchas no ouvido e ouvir o mar. Ainda isolados por conta da pandemia, essa concha, que minha outra avó, a de família espanhola, mantinha na sala, me faz falta.

Essa semana também, depois de meses saindo muito pouco de casa, e ainda assim para ir praticamente à farmácia e ao supermercado, precisei arrumar os óculos quebrados. Andei um pouco pelas ruas do centro de São Paulo, dessa vez sem conseguir reparar nas belezas que meus olhos sempre procuram e enxergam. Dessa vez, mais do que nas outras, tudo o que eu via eram pessoas pedindo comida e dinheiro. Sim, há ainda mais gente nas ruas. Frequento o Centro há muitos anos. Há muitos anos também ando mais a pé e de transporte público do que de carro em São Paulo. Por escolha. Foi um ótimo tratamento, aliás, para a síndrome do pânico, cujas crises vieram quase todas enquanto eu estava engarrafada nas ruas, trancada dentro de um carro. Mas nessa última saída, a mais longa do ano, achei que a crise podia voltar. Comprei água com gás para um homem que passava mal na calçada, lanche para um pai com duas crianças, dei dinheiro, dei umas bolachas que tinha comprado para mim, a agonia me tomando enquanto meus olhos se enchiam daquele desespero todo. Voltou à memória a imagem antiga de uma mulher defecando na calçada, o corpo escorado na parede de um restaurante, olhando para os lados na tentativa de perceber se alguém a via ou não. Eu vi. Nunca mais esqueci. Tem gente que não tem nada. Absolutamente nada. Nem lugar para cagar, foi o que pensei. Passei dias com a imagem daquela mulher na retina. E como constatei essa semana, ainda a tenho aqui. Porque, eu queria contar para o meu filho, isso que vemos hoje já estava lá atrás, nas velharias. História é o caminho, meu filho, não só de onde viemos, mas também para onde iremos.

Estou para acabar a leitura de “Um defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves. Novecentas e quarenta e sete páginas. Já são uns dez dias não querendo fazer mais nada a não ser ler esse livro. Essa mulher negra defecando nas ruas de São Paulo já estava lá, nas ruas de Salvador e de São Sebastião no século XIX. O que fizemos nesses anos todos para melhorar? O que fizemos de efetivo em todos esses séculos? Temos um problema de fundação. Tem um monte de velharia, nas palavras do meu filho a nos mostrar isso. Entre pisar nas madeiras dos casarões e chamar os elevadores só com a voz, há ainda um monte de gente sem teto e sem canto para guardar suas conchas. Se olharmos para trás, dá para ver que o caminho escolhido apontava para isso. Se olharmos agora, dá para ver que lá na frente teremos a mesma sensação de termos pegado o caminho errado.

Voltei para casa como se tivesse entregado minha alma para tantos pedintes na rua. Escolhi um livro para ler com meu filho, um que nos contasse sobre histórias já passadas e ainda presentes. Um que nos mostrasse que estamos mais em círculo do que imaginamos. O sussurro das conchas a embalar nossos sonos. E no dia seguinte ele acordou querendo saber mais sobre os caminhos percorridos até aqui. E eu sigo na esperança de que conhecer o passado pode melhorar o futuro.

Mundo encolhido

Da janela de onde trabalho, em casa, vejo a reabertura do clube. As oito quadras de tênis nunca estiveram tão cheias. Uma das primeiras atividades liberadas e imagino que até quem nunca pegou em uma raquete achou que agora era um bom momento para começar. Um jogador longe do outro, distância segura, super segura, eu vejo daqui, mas minha mente não consegue deixar de pensar nas gotas de suor que podem voar carregando vários coronazinhos. Sim, minha mente é invadida por essas imagens, coloca até asas em gotas de suor. Já achei também que vírus podia ter asas, mas quem entende do assunto me falou que não é assim e não viaja, Luciana!

Nas aulas de ciências, quando criança, tive que deixar a sala de aula várias vezes. Quando estudamos elefantíase, senti meus tornozelos inchando e meus pés se pregando no chão. Tive que correr para o banheiro antes que fosse tarde. E o livro com a ilustração do ciclo da esquistossomose? Pra quê, senhoras e senhoras, pra quê? Eu levantava os pés do chão (sim, de cimento, com piso, em uma escola urbana) com medo dos caramujos que podiam levar sei lá o quê para a minha corrente sanguínea. Nas aulas eu tive sintomas de catapora, sarampo, caxumba e rubéola. Se bobear até de gripe espanhola. Quando Pedro Collor morreu, um neurologista quase perdeu a paciência ao me convencer que minhas dores de cabeça não eram um tumor.

No surto da H1N1, eu no final de uma gestação, a família se preocupou com a quantidade de álcool gel que eu mantinha em casa. Meu filho nasceu e eu me perguntava se faria mal enfiá-lo na banheirinha com esse gel (o rosto para fora, claro). Nunca permiti que um médico me explicasse com detalhes algum procedimento mais invasivo que precisei fazer. Em uma das vezes, um exame ginecológico chato (mais chato do que normalmente é) e doído (mais doído do que normalmente é), o médico me explicou que ele era obrigado a dar detalhes de como seria o exame, justamente porque era muito mais chato e muito mais doído. Me recusei a ouvir. Ele reforçou que era obrigado a me explicar e começou. Eu tapei os ouvidos feito criança, com direito a “lálálálálá” e tudo.

Essa semana fui buscar uma encomenda na rua. Pra quê! Ao entrar no prédio de volta, de máscara, me deparo com um visitante, também mascarado, entrando comigo. Corri para o elevador enquanto ele era anunciado, o contrário do que costumo fazer, mas não deu tempo. Ele chegou e eu ainda esperava o elevador. Todo animadinho, com som portátil e tudo. O elevador chegou, ele abriu a porta, até me ofereceu passagem, e eu tensa como se tivesse que andar na prancha de um navio pirata. Não aguentei: vamos juntinhos mesmo? Meu medo falou mais alto que minha boa educação (apesar de eu saber ser bem mal educada). Ele entendeu. Pode ir, me disse. Agradeci, super envergonhada, quase gritei quando a porta já estava fechada: normalmente não sou assim!, mas deixei pra lá. Saí o mais rápido que pude quando o elevador chegou no meu andar. Pode ser muito cansativo carregar a minha mente. Por isso o dia acaba e abro um livro, acendo uma luminária nova que comprei de uma pessoa que faz uma por uma, com as próprias mãos. Luminária que está ao lado de alguns cadernos, também feitos por um único par de mãos. Reduzir um pouco o tamanho e o volume do mundo. Pode ser bom.

Estou em reforma, desculpe a bagunça

Passei em frente à TV ligada e vi uma cena de novela, como acontece desde que me entendo por gente. Atores brancos e atrizes brancas. Foi só isso que consegui enxergar. E é só nisso que tenho pensado. Onde está população negra do meu país, população que, aliás, é a maior parte dele? Estudei em escolas particulares a minha vida toda. Na primeira, entrei com menos de um ano e saí com quatorze. Tive uma colega negra nesse tempo todo. Sim, eu me perguntava por que só ela. Sim, eu me enfureci quando um menino a chamou de café. “Não passa a bola para a café!” Corri atrás do moleque, chamando-o de leite. “Se ela é café, você é leite, e daí?” Eu devia ter menos de nove anos, foi como consegui agir. Eu não entendia bem o que estava acontecendo, mas sentia que era muito injusto. E me enfureci de novo quando vi que fui a única a me manifestar. “Você ouviu o que ele falou?”, mas a bola já estava em campo de novo, ninguém para dividir comigo a indignação. Tinha algo muito errado e quanto mais comecei a falar, mais comecei a ser vista como uma pessoa que cria problemas.

A mãe de uma amiga uma vez abaixou o vidro do carro para gritar para um menino negro que corria pela calçada. “Pega ladrão, pega ladrão!” Sim, era uma adulta que se deu a esse trabalho. Por pura diversão. Perguntei, de dentro do carro do qual ela tanto se orgulhava (coitada, só teria mesmo coisas materiais para se orgulhar), o que ela estava fazendo, ao que ela me respondeu: “você não sabe? Preto quando corre é porque está fugindo da polícia”. De novo, eu tinha menos de dez anos, e só consegui dizer algo como “credo, não é nada disso.” Ela insistiu, disse que eu ainda não sabia como eram as coisas. Hoje fico feliz em ver que até agora não aprendi como são as coisas do ponto de vista dela. Aliás, quero mais que ela me odeie. Essa visão de mundo não me interessa. Nunca me interessou e passou a me interessar menos ainda depois que me tornei mãe.

E mesmo com todo esse senso de justiça que costuma me guiar (de novo, posso não saber bem o que se passa, mas sinto que não deveria ser assim), não foi sem susto e tristeza que entendi que sou racista. Eu entendi que não tem como ter crescido no Brasil e não ser racista. Sou racista quando me omito, sou racista quando sinto mais medo ao cruzar com um negro do que com um branco numa rua deserta, sou racista quando sou atravessada por pensamentos como “nossa, um juiz negro!; nossa, uma médica negra!”, sendo que nunca ouço uma voz interna dizendo “nossa, um juiz branco!; nossa, uma médica branca!”.  Sim, o racismo está lá, na minha estrutura, no meu inconsciente. É muito mais perverso do que eu podia imaginar.

“Mas, Luciana”, outro dia alguém me falou, sempre em tom de consolo quando me assumo racista, consolo que não busco e que justamente confirma o racismo estrutural, “você trata os negros tão bem, nunca fez nada contra eles”. “Pois é”, respondi, “tratar bem uma pessoa é só questão de educação. Não fazer mal a alguém é só questão de humanidade. A não ser que alguém não considere uma pessoa negra, pessoa. Não é?” Pareceu que não para aquela pessoa, que insistiu, dizendo que ela até abraça e beija a faxineira. E eu olhando para aquela cena na TV, brancos e brancas brancos e brancas brancos e brancas. É só isso que enxergo agora. Como é viver em um lugar onde pessoas com a sua cor de pele são a maioria e nunca são vistas em lugares de poder e destaque? Restaurantes? Qual a cor da pele de quem está comendo e de quem está servindo? Como meus pais nunca me chamaram a atenção para isso? Nas capas de revistas, sejam elas de moda ou de negócios, qual a cor da pele das pessoas destacadas? Nas escolas, qual a cor da pele de quem dirige, de quem ensina e de quem limpa? E assim fui abrindo os olhos e não conseguindo mais fechá-los, a ponto de às vezes perder o sono.

Repasso as escolas onde estudei, os lugares em que trabalhei, os lugares onde estou hoje e exerço alguma influência. Alguma coisa está errada. Muito errada. Aquele silêncio todo da minha infância, como se o racismo não existisse, como se o fato de não escravizarmos mais as pessoas tivesse resolvido a questão, como se abraçarmos as empregadas domésticas bastasse, como se não maltratar alguém só por causa da cor da pele já fosse até mais do que suficiente, e não se fala mais no assunto, não pergunte, não me incomode, não me faça refletir sobre as razões de eu, branco, estar só entre iguais em lugares de poder e destaque, está tudo bem, tudo resolvido, não posso correr o risco de sair desse lugar tão confortável em que estou. E a frase de Angela Davis martelando na cabeça, “não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”, e meu pensamento todo tomado por essa missão.

Preciso desaprender para aprender tudo de novo. Amigas e colegas negras com uma paciência infinita para me ensinar. Não sei como não cortam a minha cabeça branca. Se fossem os brancos, penso, já teriam cortado. E a literatura (a literatura sempre) escrita por negras e negros, me ajudando na desconstrução (salve Cidinha da Silva, minha guia dessa semana). Que das ruínas eu seja capaz de me construir um ser humano melhor. Do jeito que está, já deu.

Pelas janelas indiscretas ou não

Outro dia li em alguma postagem em algum lugar que existe um verbo em alguma língua (tem cara de alemão) para expressar aquele sentimento de cobiça pela luz acolhedora das casas alheias. Nunca resisti a essa luz, que para mim é sempre amarela. Eu, crescida em uma chácara no interior e em uma cidade onde todas as amigas e amigos moravam em casas, ficava maravilhada quando ia a São Paulo. Me demorava em cada prédio com inúmeras luzes que me faziam querer entrar pelas janelas. Além de me perguntar como seria morar em cima ou embaixo de alguém, imaginava que dentro de cada janela com luz amarela havia pessoas reunidas em volta de uma mesa com café e pão quente. Há pouco tempo, com uma amiga ao lado (quer dizer, há pouco tempo antes da pandemia, quando andávamos ao lado de amigos), olhei uma dessas janelas e disse: parece que está tudo tão bem lá dentro, né? É, parece, ela disse, mas você sabe que não está, né? E a pandemia nos permitiu entrar por todas essas janelas.

São tantas reuniões, algumas parecem intermináveis, que depois de uma hora já fico arrastando a tela para o lado para enxergar pelas frestas. Nas estantes com livros, clássico da pandemia, espremo os olhos para tentar identificar algum título. Nessa investigação, sim, eu ficaria horas. Os quadros e pôsteres nas paredes. Os vasos de plantas. Há quem goste de pedras, com ou sem fontes. Janelas com cortinas. Persianas. Outro dia me apaixonei por uma poltrona, mas não tive coragem de perguntar, eu nunca tinha falado com aquela pessoa, onde ela havia sido comprada. Em outra reunião, com alguns conhecidos e outros desconhecidos, vi uma pessoa (dentre as desconhecidas) comendo e tomei a liberdade para dizer que jantaria com ela. Fiz meu prato e até brindamos enquanto a reunião começava. E não são poucas as vezes em que o papo no chat migra para outras questões: Fulano, esse quintal é da tua casa? E você, Fulana, está na praia? Nossa, que objeto é esse aí no canto, uma luminária? Bonita, hein? E aquela máquina de escrever aí no canto, funciona? E por alguns minutos me sinto próxima das pessoas, convidada a entrar em um canto especial da casa de cada um.

Penso agora que a sensação é parecida com a que tenho quando abro um livro. Abrir um livro é sempre aceitar um convite para conhecer algo de especial. E terminar pode deixar tanta saudade. Li a Trilogia do Cairo já faz uns vinte anos. Até hoje penso em Amina, Khadiga e Aisha. Chego a me perguntar, durante uma caminhada ou enquanto seco o cabelo, por exemplo, o que elas estarão fazendo. Porque Naguib Mafhouz me abriu a porta da casa dessa família e eu entrei. E talvez, daqui alguns anos, eu me pergunte como estará a dona daquela máquina de escrever e o que estará fazendo aquele cara com quem jantei antes de começar uma reunião e que provavelmente nunca mais vi.

Que dia é hoje?

Escrevo às quintas para o texto ser publicado às sextas. Quando entrego o texto já penso no próximo. Às vezes escrevo um na segunda, mudo na terça, escrevo outro na quarta e na quinta tudo o que escrevi não serviu de nada. Sempre sai um texto novo. E hoje, enquanto escrevo, é quinta, mas passei o dia, até este momento, na quarta. Acordei na quarta, tomei café na quarta, trabalhei na quarta, almocei na quarta e estou quase indo dormir… na quinta. Porque é quinta. E é julho. E já passou da metade de julho e da metade do ano e nessa semana mesmo eu me peguei pensando qual estação viria depois do verão, como se eu estivesse no verão. Porque foi no verão que nos trancamos em casa. E essa semana assisti a uma aula sobre tempo e espaço na literatura.

Passei a semana pensando na G.H., criação de Clarice Lispector. E assisti ao filme “Nostalgia da Luz” (obrigada, Luana Chnaiderman). O presente não existe, de acordo com os astrônomos. Estamos sempre no passado. Viu? Já passou. Devo ter ficado tão impregnada desta ideia que resolvi passar o hoje no ontem. Confesso que estou me sentindo uma criança desgarrada da mãe no meio de um shopping center.

Já faz algumas semanas que vivo com a sensação de ter perdido algum compromisso importante. Checo os e-mails, o Whatsapp, o Facebook, o Instagram, nenhum recado. Se perdi, certamente não era importante, mas a partir dessa sensação ganhei uma neurose nova: checo os e-mails e o Whatsapp freneticamente, com medo de ter deixado passar alguma informação que não poderia ter passado. Checo mensagens com mais frequência do que passo álcool gel. Tenho escrito mais lembretes para mim mesma. E mesmo assim passei hoje no ontem. Estou sugestionada pelas férias escolares das crianças? Precisarei me deixar bilhetes me lembrando de checar o dia da semana? Eu, já tão cheia de agendas e de alarmes, não terei me dado hoje, na verdade, de presente? Será que deixei de pagar alguma conta? Qual neurose nova ganharei amanhã?

Amanhã é sexta, acaba de me ocorrer, o que não tinha me ocorrido nesta manhã, por exemplo, e descobrir que amanhã é sexta é sempre uma alegria, ainda que eu vá continuar no exato lugar em que estou agora. Mas sexta parece que sempre vai ser sexta, ao mesmo tempo em que ficar alegre porque é sexta só me faz pensar na mediocridade que é viver uma vida pautada pelo trabalho. Essa divisão horrorosa entre dias úteis e não úteis, quando a vida acontece mesmo é dentro da gente. E o dentro da gente, como acabei de viver, é muito maior que qualquer tentativa de classificação burocrática. Em meio a tantas tristezas, perder-se no tempo pode ser uma pequena alegria.

A Mão de Carolina

O que mais tenho visto nesse isolamento é a tela do computador. Mas, ainda que pelo canto dos olhos, tenho reparado, em silêncio, nos meus filhos. Os pés quase do tamanho dos meus. Uma penugem sobre os lábios do mais velho. O modo como se sentam, o mais velho com as costas eretas e as pernas esticadas, o mais novo sempre de cócoras, até à mesa enquanto come. Quantas frutas um come por dia. Quantas bolachas o outro. Uma voz que agora oscila entre o grave e o agudo. A outra infantil. Apuro os ouvidos.

Tenho a sensação de que é da voz infantil do que mais sentirei falta no futuro, quando o ninho ficar vazio, como dizem. Estou sempre com o celular na mão para tentar gravar uma fala, uma cantoria no chuveiro, um diálogo, mas eles logo percebem e me pedem para parar a gravação, não entendem uma mãe que antecipa tantas saudades. Agora mesmo, enquanto escrevo, não os escuto, e a aflição já me toma. Sim, as brigas, as discussões, as manhas e reclamações me cansam, mas nesse isolamento cada um deles se grudou ainda mais nos meus poros, como se isso fosse possível. Observo-os, ainda mais, tudo ainda mais, enquanto dormem. Meus dedos contornam narizes e bochechas e bocas. Toco os cabelos, beijo pés e mãos. E sempre aperto as carnes generosas dos bumbuns. Um deles me fala que parece que os tive apenas para poder apertá-los. Eu confirmo. Ele reclama que a existência deles é maior do que isso. Eu digo que não, que são meus e só meus e sempre meus e os aperto ainda mais. Quero-os às vezes de volta ao útero, só para um descanso, só para ter a sensação de que posso protegê-los.

Na hora de dormir me abraçam, perguntam se vai ficar tudo bem, se vou sempre cuidar deles, eu digo sim, sempre sim, na tentativa de que não percebam que são eles, na verdade, que me protegem. Desde que nasceram, ou desde que me tornei a pessoa mais medrosa desse mundo, ganho coragem e energia quando tenho minha mão encostada neles. Era assim quando estavam no berço e o monstro do medo ameaçava me agarrar pela garganta. Eu corria até o berço e encostava meus dedos na bochecha, na mãozinha, no pezinho, e o monstro me soltava.

Depois de alguns anos, eles tinham toda razão em quererem usar capas de super-heróis. No começo deste ano de 2020 prometi que ficaria mais em casa, um pedido deles já antigo. Veio a pandemia e um deles me disse que esse vírus até parecia uma coisa encomendada por mim. Mas continuo trabalhando tanto, eu respondi, passo o dia com a cara enfiada nesse computador. Mas está em casa, foi a réplica, onde a gente pode te ver. Imagino que pelo canto dos olhos, como tenho feito com eles. Cada um na sua tela, mas ligado na presença do outro.

E essa semana comecei a reler “Quarto de despejo”, da Carolina Maria de Jesus. A inteligência e a elegância de Carolina me comovem de tal maneira que tenho o livro todo grifado e repleto de recados para a autora. Gostaria tanto de acreditar que ela, de alguma maneira, pode recebê-los. Mas talvez passar sua obra para que outros leiam seja o melhor que eu possa fazer – não por ela, mas por quem vai lê-la. E de tudo o que me toca no livro, e tudo me toca muito, nada se compara às palavras dedicadas aos filhos. É quando tenho vontade de segurar na mão dessa mulher e mãe e leitora e escritora e apertá-la bem forte, para que ela, como meus filhos, me encoraje.

Eu não sei o que você está fazendo agora, mas pare e leia Carolina Maria de Jesus.

Pelos caminhos circulares

É claro que minha vida tem trilha sonora, como a de todo mundo. “Caçador de mim” me leva direto para a cozinha da casa de duas amigas, irmãs, onde passávamos horas cantando. As letras das músicas em um caderno universitário, escritas pela mãe delas, com anotação das cifras (que nunca consegui ler).  “Ai que saudade d’ocê” e lá estou eu, na sala do apartamento onde morei durante a primeira faculdade, conversando com um namorado ao telefone. “Foi Deus quem fez você” e meu pai, ateu, está dirigindo, fita cassete no rádio, perguntando alto numa pausa longa no final da música: quem fez a Luciana, Amelinha, quem? E ela respondia: “Foi… foi Deus”. “Should I stay or should I go”, “Basket case”, “Overkill”, “No dia em que vim-me embora”,  “Zé do Brasil”, “Mr. Jones” e a lista é longa. Passo (ou passava) quase todos os dias dos últimos cinco anos pela Avanhandava e em todas as vezes me lembro de escutar ali, pela primeira vez, “Eduardo e Monica”. Rua Avanhandava não existe mais para mim sem essa música.

Nesses dias, em que volto para a casa onde cresci, percebo que minha vida também tem lista bibliográfica ligada aos lugares. Pelos caminhos desconhecidos (e que algum mistério ainda nos reste) do cérebro, olhei para uma cadeira no gramado e me vi terminando de ler “Sidarta”, do Hermann Hesse. O sol estava ardido e depois do último ponto final fiquei um tempo ali, na tentativa de absorver um pouco do que tinha acabado de sentir e pensar. O silêncio interno daquele dia volta só de olhar para a cadeira.

Na sala me vi abraçada pela primeira vez com “Anna Kariênina”, o livro nas minhas mãos onde quer que eu fosse e minha irmã me perguntando se eu não podia largá-lo um pouco. Não, eu não podia. E aquela foi só a primeira leitura de muitas. Estou sempre à procura de Anna. Em um sofá que nem existe estou lendo “O amor é fodido” e “Favela high-tech”, em pleno Carnaval, abandonada por um namorado. Foi nesse Carnaval que descobri que a literatura é (também) remédio para a dor. Ainda me vejo sem conseguir dormir, a luz do abajur acesa e meus olhos arregalados, durante a leitura de “O Anticristo”, de Nietzsche. Nesse mesmo quarto meus olhos também se arregalaram com “Sem tesão não há solução”, mas com ele eu conseguia dormir. E sonhar. Harry Potter, nessa mesma cama, chegou a atrapalhar um pouco o sono. Muitos seres esquisitos nos meus pesadelos. No quarto que foi dos meus pais, minha mãe me vendo com “Christiane F.” nas mãos e me dizendo que não era para a minha idade. Foi a deixa. Li ali mesmo, sempre que ela estava longe, com cuidado para deixar o livro no mesmo lugar.

Algumas datas marquei bem. Sei o ano e o mês sem precisar fazer esforço. Para outras faço umas contas para ter alguma noção. Como tem acontecido ainda mais intensamente nessa pandemia. Viramos mais um mês, continuamos proibidos de viajar no espaço e eu sigo tentando me manter com as viagens no tempo.

‘F’ de festa

Amo festa. Música, dança, bebida para quem quiser, gente mexendo o corpo, sedução, descanso para as preocupações. Tanta gente fala isso agora: quando sairmos da pandemia, a primeira coisa que vou fazer vai ser uma festa. Eu também tenho dito isso. Comemorar meu aniversário. Comemorar todos os aniversários passados em isolamento. Comemorar a vida, os amigos. Comemorar nada. Só viver em liberdade e suspensão por algumas horas. Dançar até suar tanto que parece mais que saí de uma aula de spinning (eu ia escrever aeróbica, o que mostra minha idade – não quero mentir). Trocar um olhar. Fechar os olhos e soltar a imaginação. Fazer várias festas para as várias turmas. Fazer uma festa para misturar as turmas. Dançar sozinha ou agarrada a alguém. Se entregar ao que foi taxado de ridículo pelos recalcados. Meus filhos, que me chamam de ridícula quando danço sozinha em casa, me perguntaram do que mais sinto falta na pandemia. Do bar e das festas com os amigos, foi a resposta.  Amo uma mesa de bar também. Agora só quero sair para festas e bares. O resto vou fazer de casa mesmo.

Nesse sol de inverno tenho pensado mais em Paraty. Na festa literária brasileira mais famosa, mesmo com todas as críticas. Mas até Cristina, em Minas Gerais, foi uma festa. Porque veja bem: não falo de feira. Eu falo de festa. Na festa do meu sonho, nessa semana, tinha sol de inverno e ruas de pedras. E ladeiras. Talvez Salvador. Talvez Ouro Preto. Talvez não precise localizar a cidade no sonho. Pensar menos e sentir mais. Tinha gente, tanta gente nas ruas, nos restaurantes, nas lanchonetes, nos bares. Tinha um escritor que eu queria beijar com um bebê no colo. E teve um beijo bom demais trocado em uma festa. Um moço tão lindo, com a boca descrita pela Jacqueline Woodson no livro “Um outro Brooklyn”. Um moço que tocava uma guitarra triangular, preta e brilhante, como a pele dele. Antes de ele subir no palco, antes de nos beijarmos, eu tirei a poeira da guitarra, com um pano macio ao toque. Toda a gente, como escrevem os portugueses, dançava e dançava muito. Toda a gente ria.

Queria passar um ano em festas literárias. Fazer um calendário para acompanhar todas. Andar pelas ruas cheias de pessoas com o amor pela literatura em comum. Pessoas com livros nas mãos, debaixo do braço, nas filas de autógrafos, trocando dicas de leitura, falando mal disso e bem daquilo. Ou vice-versa. E pessoas nas mesas de bares. E à noite nos espaços transformados em pistas de dança. Dançar até não sabermos quem somos. Queria um Woodstock literário, uma festa à la Tim Maia, vale tudo, e vale até mais, porque vale homem com homem e mulher com mulher, vale o que a gente quiser. Por uma noite que seja. A literatura tem me sustentado, mas eu preciso de festa.

 

Os lugares mais bonitos da Terra

Cresci em uma casa com livros nas estantes da sala, mas meus pais não os liam. Eu, pelo menos, não tenho recordação deles com livros abertos nas mãos. Se liam, era em algum lugar (no quarto, talvez) longe dos meus olhos. Meus pais também nunca leram histórias para os filhos. Na hora de dormir era um “boa noite” e um beijo. Então foi na escola que o mundo da literatura se abriu para mim. Se nas aulas de Matemática eu fingia dor de cabeça para não ter que enfrentar uma lógica que não compreendia, com o primeiro livro de ficção já enxerguei algum sentido na vida. Mas, se meus pais não liam, sabiam da importância da leitura na constituição de um ser humano e me estimularam. Se na escola gostei de ler “O cachorrinho Samba” e comentei com minha mãe, ela rapidamente me presenteou com o restante da série, com o cachorrinho Samba na fazenda, na cidade, na floresta, sei lá para onde mais ele foi. Só sei que eu o acompanhei por todos esses lugares. Lembro, ainda, da minha mãe me presentear com o livro “A Montanha Encantada”, também da Maria José Dupré, que me marcou desde o azul da capa. Lembro do livro nas mãos da minha mãe. Lembro do livro passar para as minhas mãos. E do quanto, até hoje, aquelas horas vividas em outra dimensão me marcaram. Se gostei dos livros da Maria José Dupré, então minha mãe procurou tudo o que ela havia escrito. E se minha mãe me viu devorando “O urso com música na barriga”, indicado pela escola, ela complementou minha paixão com outros do Érico Veríssimo. O mesmo com os livros da Fernanda Lopes de Almeida (depois que me tornei mãe, fui atrás das edições de “A fada que tinha ideias” e “Soprinho” que li na infância, precisava daquelas capas novamente ao alcance das mãos).
Hoje, enquanto escrevo esse texto, penso na atenção que minha mãe prestava nas leituras indicadas pela escola, e do quanto também aprendia com elas. Já por iniciativa própria, minha mãe me deu “Pollyanna” e “Pollyanna Moça”, que ela tinha lido e gostado. Minha mãe achava que eu tinha muito a aprender com a Pollyanna, mas a menina (e a moça) só me irritou e resolvi seguir o caminho contrário. Mas não posso dizer que Pollyanna não me marcou. Meu pai, por outro lado, virava e mexia soltava algo sobre algum livro de Graciliano Ramos, autor de quem ele leu toda a obra, em bibliotecas públicas frequentadas na juventude. Mas se eu não via meu pai lendo, ouvi dele essa resposta, quando pedi para ele me comprar um livro: farei o sacrifício que for, mas para livros nunca te falarei “não”. Estava descoberta a minha mina de ouro! Se para a maioria dos brinquedos que pedia eu ouvia “no Natal ou no teu aniversário eu penso sobre isso”, para os livros seria sempre “sim”.

E meu pai cumpriu a promessa. Estava criado o meu time de estimuladores à leitura: as professoras na frente, especialmente a Dona Ângela, professora de português dos meus 10 aos 14 anos, que assumia erros em algumas indicações e mudava de ideia, sempre conversando com os alunos, e meus pais atrás, atentos. E um tio, silencioso, que vinha passar muitos finais de semana com a gente, ou com quem eu passava as férias, o tempo todo com um livro nas mãos e uma cara de enorme satisfação.
Sempre achei bonito ver uma pessoa lendo. Ela estampa um sorriso, mesmo que discreto, de quem descobre uma nova forma (agradável) de estar no mundo. Ela parece carregar um segredo precioso e esse segredo a deixa feliz. Eu sempre quis estar na cabeça das pessoas que estão lendo, parecia um lugar bonito para se passar um tempo. Eu sempre quis conversar com as pessoas que estão lendo: divide comigo isso aí que você sabe e que te deixa assim contente?
Puxa!, exatamente o que faço hoje nos clubes de leitura, acabei de concluir. Viu, Luciana menina, como deu certo? E a Luciana menina tinha razão: é mesmo muito bonita a cabeça de uma pessoa leitora.

Viagens na pandemia

Foi logo no primeiro mês de isolamento que meu filho mais velho me disse:

“Mãe, você está traumatizada com essa pandemia, né?”

E a resposta à minha pergunta “por que você está falando isso?” foi:

“Você está descobrindo que não suporta a sua família”.

“Não suporta” foi forte demais, respondi para ele. Mas, sim, eu continuei, ele não deixava de ter razão: é mais fácil (e saudável) conviver quando a gente não fica com a pessoa o dia todo, vinte e quatro horas por dia (literalmente e sem exageros). Seja essa pessoa quem for. Seja essa pessoa aquela para quem um dia você olhou e disse, acreditando que era verdade, até sendo verdade mesmo: eu passaria o resto da minha vida grudada em você (pequena homenagem ao dia dos namorados).

Eu, particularmente, acho que nunca disse essa frase para ninguém. A ideia de grude nunca me atraiu. Grudados em casa, então, so-cor-ro! Porque nem da ideia de casa eu gosto muito. Desde que saí da casa dos meus pais, minhas casas estão sempre com cara de quem acabou de receber os hóspedes. E faz um tempo que entendi a razão: nunca acho que cheguei ao meu lugar, toda casa me parece temporária e aquela arrumação definitiva fica sempre para depois. E tanto é assim que vendi uma casa própria e nunca consegui substitui-la (tem a falta de dinheiro suficiente, tem o pavor de fazer dívida com o banco por 475869097 meses com juros de 177294840292727174748484949393% ao mês e tem uma casa que nunca achei). Desde então, moro de aluguel. Se tiver que arrumar demais, se tiver que mexer demais, se simplesmente eu precisar mudar de bairro ou cidade, rescindo o contrato e mudo.

Talvez seja o sangue croata. Há relatos de que os ciganos se concentraram em países como Iugoslávia, Bulgária e Romênia.  Sempre gostei da rua, das casas dos outros, daquilo que não me é familiar. Na infância, tinha escovas de dentes nas casas de várias amigas. Bastava ouvir “quer dormir em …” para já responder com um “sim”. Talvez o final da pergunta nem fosse “em casa”, mas eu já estava pronta. Além da companhia das amigas, claro, tinha sempre uma comida que eu não conhecia (o lanche de frango da Tia Rê), um hábito que não existia na minha casa (tomar lanche da tarde na casa da Patrícia), um som (o violão do Tchê), espaços (o quintal com cachorros na casa da Mariana), luzes (amarelas na casa da Mette) e eu me encantava com cada detalhe capaz de ampliar meu mundo.

E, sim, eu gostava muito da casa dos meus pais. Gostava muito da minha casa. E na minha casa também eram várias as escovas de dentes das amigas. Cada uma com um nome, todas guardadas na primeira gaveta do gabinete embaixo da pia. Uma casa cheia de amigas e amigos. Então não era uma questão, como não é até hoje, de não gostar de ficar em casa. É só uma questão de “mas tem tanta coisa para ser vista lá fora”. Uma amiga, espírita, uma vez me disse que sou espírito jovem, encarnado poucas vezes, daí a vontade de conhecer tanto o mundo. Pode ser. Eu sei muito pouco sobre nada.

Mas sei que em 2020 resolvi voltar a fazer diário. No dia primeiro de janeiro listei todos os lugares que ainda quero conhecer e coloquei um asterisco naqueles que achei que seria possível conhecer ainda este ano. A lista segue lá e não deixei de acrescentar lugares. Não eliminei, ainda, os sonhos. Mas, por enquanto, viagens mesmo só com os livros (aliás, os únicos objetos definitivamente arrumados em todas as casas temporárias), em cantinhos da casa onde gosto de estar, de preferência longe dos meus filhos na hora da leitura. Até para eu poder olhar para eles depois de deixar o cantinho e me encher de amor e gratidão.