Categoria: COLABORAÇÕES

Textos de cronistas convidados do blog.

Um Amor para o Rei Lear

Ele parecia um velho feliz. Quem dizia isso? Todos os que o conheciam. Sim ele estava sempre sorrindo apesar da artrite que corroía suas articulações, das dezenas de comprimidos para o coração, diabetes e pressão alta. Mas ninguém nunca perguntou o que Rafael sentia, como ficara depois da morte de sua mulher, Lavínia, quando ficou sozinho naquela casa grande onde foram tão felizes, as noites insones, a solidão dos domingos infindáveis. Nem mesmo os filhos, para os quais ele deixou a empresa próspera, construída com muito suor e pelo comando da qual eles viviam se digladiando. Já disse várias vezes que os filhos não conhecem a história de vida dos pais, como se eles, os pais, existissem apenas depois que eles, os filhos, ficavam adultos.

Nas ocasiões em que estavam juntos, como um almoço comemorativo, Natal e outros desses momentos em que todos parecem se amar, depois de três taças de vinho as coisas mudam um pouco de direção e os assuntos começam a ficar estranhos e cada um vai para um canto formando grupinhos de conversas paralelas. Família.

Ninguém falava com Rafael, podem estar pensando. Engano, falavam sim: como vai a perna, melhorou um pouco? E o cachorro, está lá ainda? Aquele tipo de pergunta feita para não ouvir a resposta, do tipo função fática de linguagem, conversa de elevador – vai descer no quarto andar mesmo, pra que ouvir a resposta? – se é que podemos levar para um lado mais gramatical.

E ele tinha sempre um sorriso, um sorriso de quem sabe ser a vida assim mesmo, um grande teatro que inspira dramaturgos desde que o mundo é mundo. Depois de comer duas fatias de tender ou peru e uma fatia de bolo, ele voltava para casa de táxi ou levado por um amigo do amigo dos filhos que, condoído, dizia: – Eu levo o senhor, não me custa nada – Existe sempre alguém gerado numa forma adequada.

E ele passava três ou quatro semanas sem notícias, sem alô, sem “como vai”. Quando ligava para um deles – os filhos – era tudo muito rápido, estavam ocupados, não podiam falar agora, ligo mais tarde. Ligavam?

Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu. Se eu tivesse estudado em tal escola, se, se, se… Simples assim? Não: é um pouco mais complicado. Mas esse não é o tópico da história.


‘Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu’


Rafael tinha um cachorro, Titã, seu companheiro silencioso, sempre encostado nos pés do dono quando este acomodava os ossos doídos na velha poltrona azul para ler ou assistir a um programa qualquer na televisão, ou passar longo tempo mergulhado em lembranças. E em uma dessas caras lembranças, estava Helena, mas não era a de Troia.

Rafael estava fazendo café quando ouviu a campanhia, numa manhã de setembro, e ficou intrigado, pois era ainda muito cedo para alguém fazer uma visita, o que, aliás, era raro. Não era uma visita e sim a vizinha com um envelope na mão dizendo que o correio colocou a carta por engano em sua caixinha. Uma carta? De quem? De onde? Nesses tempos de email e Facebook? Olhou o remetente e seu coração taquicardou: Helena Viesti.

Caro Rafael… Helena queria revê-lo… sua primeira namorada… Meus Deus, quanto tempo faz isso? Não vou contar aqui a história de Rafael e Helena, só posso dizer que o passado voltou e, com ele, a sensação de ainda ser aquele moço de cabelos negros e olhos verdes fazendo juras de amor àquela moça loira de olhos negros no banco da praça, encantada com o sorriso fácil e gentileza do amado, falando em casamento e felicidade sem fim.

Bem, os caminhos se bifurcaram; ela casou com Alfredo e ele com Lavínia. Mas existem os compartimentos secretos, as caixinhas do coração mesmo infartado. Vamos avançar a fita, pois meu espaço no Palavreira não é tão grande assim.

Helena veio, estava viúva, se encontraram, nenhum dos dois se importou com as rugas e a flacidez do outro. Decidiram ficar juntos, com Titã, é bom lembrar. Mas – existe sempre o mas – os filhos discordaram: – para que isso agora? O senhor vive tão bem sozinho, quem é essa mulher? Ela pode estar querendo tirar proveito de você, de suas posses.

– Que posses? Uma casa, uma poupança de merda e um cachorro? A empresa já é de vocês. Foi um rebuliço. Rafael ouviu sermões, impropérios e ameaças de interdição.

Então, decidiu acabar com o desconforto e reuniu os filhos para uma conversa – eles foram esperando a desistência do pai de ter alguém ao seu lado, de um final de vida mais suave, um afago, uma companheira para todas as horas.

– E então, papai, pensou bem na loucura que está fazendo?

Um filme passou diante de seus olhos. O roteiro fica para a imaginação de todos.
Então, depois de um longo silêncio, Rafael, aquele homem sempre tão gentil, sorriu e respondeu lentamente.

– Sim. Pensei. You know what? GO FUCK YOURSELF!!

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Novo Caso de Amor

CAROL OLIVEIRA *

Quando o ponteiro chegou no 7, o Google enviou um aviso: trânsito intenso na sua área.

Antes que eu levantasse desesperada com a notificação, lembrei que não usava mais o carro e suspirei aliviada.

Olhei pela varanda e vi o Corsinha coberto de folhas de ipê-roxo. Parecia estar num velório, um bonito velório em sua homenagem, que sempre foi muito útil, mas precisava descansar.

Peguei minha bicicleta e segui em direção ao estúdio onde faço aulas de dança. Dei de cara com um dos cenários mais lindos de Brasília: ipês-amarelos contrastando com um grande tapete de folhas secas.

Olhei para o céu, nenhuma nuvem, tudo azul.

Mais algumas pedaladas e pude perceber algumas árvores, as quais nunca havia notado. Suas folhas eram laranjadas e se destacavam em meio a outras totalmente peladas, expondo apenas seus galhos retorcidos.

A sensação foi de felicidade extrema. Daquelas que a gente conquista sem perceber. Depois de anos correndo loucamente para cima e para baixo para chegar a tempo no trabalho, deixar menino na escola, enfrentando engarrafamentos homéricos, finalmente estava me sentindo realizada.

A decisão de estacioná-lo para sempre não foi de repente. Eu estava ensaiando há algum tempo. Fui algumas vezes para o trabalho de bicicleta, mas acabava usando o carro para todo o resto. Ele precisou dar os últimos suspiros para me alertar que não aguentava mais e que uma nova vida nos esperava. Eu ainda insisti. Uma, duas, três vezes, mas ele não resistiu. Morreu ali, em minhas mãos.

Fiquei por alguns segundos segurando o volante, olhos umedecidos tentando organizar os sentimentos. No início senti raiva, logo depois tristeza, gratidão e por fim a aceitação.

Fiz um carinho nele, uma lágrima caiu, sai de dentro, tranquei a porta e parti.

É. Ainda olhei para trás. Mas era mesmo o fim.

Mas veja só! Com a sua despedida pude perceber um mundo novo.

Não vou negar que ainda sinto a sua falta. Sinto! Mas tudo mudou em minha vida.

Gastos com mecânicos nunca mais, gasolina nem pensar, engarrafamentos, não, não.

Claro que para isso ser possível fiz alguns ajustes. Mudei-me para um local mais perto de onde faço minhas atividades, faço meus trabalhos de casa e moro ao lado da escola do meu filho. Assim, conto com caronas, Uber para locais mais distantes e bicicleta na maioria dos casos.

Ah minha bicicleta… Temos tido um lindo caso de amor.

Estou naquele momento de tentar encontrar um apelidinho carinhoso para ela. Tudo muito recente, sabe? Mas o amor tem crescido a cada dia que passa.

Ela me inspira a manter a saúde em dia, promete deixar minhas pernas mais firmes, me carrega para onde eu quiser, me dá tempo para perceber a vida ao redor, me dá uma sensação de liberdade…

Meu ex-carrinho que me perdoe, mas ele me sufocava. Era tanta tensão no trânsito que eu não respirava. Sou grata a tudo o que ele me proporcionou, mas agora a vida é outra.

Hoje sou mais feliz. Eu e minha bicicleta.

A Branquinha ou Bykinha, quem sabe Tchutchuquinha? Acho que Parceirinha é legal. Não… Brisa. Talvez Nuvem, Leve, Maneirinha, Retrôzinha…

 

* Carol Oliveira
Jornalista, artista e mãe do Miguel


 

 

 

Toda semana, às quartas, uma nova crônica de um(a) palavreiro(a) convidado. O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

 

VEM PALAVREAR COM A GENTE

Meu primeiro amor

Meu primeiro amor foi um menino de não mais de 13 anos. E eu, bem, deveria ter 11. Nunca conversamos. Apenas nos olhávamos de longe e quando o via meu coração dava pulos que eu não sabia reconhecer, pois nunca sentira nada igual.

Isso aconteceu em uma de minhas férias da escola passadas na casa de uma tia querida, em uma cidadezinha, quase uma vila, não muito longe daqui.

Para mim, aquele menino não era um príncipe, porque eu não acreditava em contos de fadas, pois em minhas tardes de domingo eu assistia ao seriado do Zorro no cinema do bairro. Ele era uma pessoa que eu sempre soubera existir em algum lugar me esperando, mas só me dei conta disso quando o vi pela primeira vez. Voltei para casa e pensava nele todas as noites antes de fechar os olhos para dormir. E sonhava com o dia em que voltaria a vê-lo. E o via diante de mim cada vez que meu pai colocava um disco do Caruso na vitrola. Alguém sabe o que é vitrola?

Nas férias seguintes, voltei à casa de minha tia e tudo se repetiu. Nos víamos e parecia haver entre nós um entendimento como se pertencêssemos um ao outro e nada pudesse quebrar aquele encanto. E assim foram três anos seguidos até que minha tia se mudou daquela cidadezinha linda para outra muito, mas muito longe dali. Quando soube da mudança comecei a chorar e ninguém entendia o motivo.

Nunca mais quis passar as férias na casa de minha tia porque naquela outra cidade não havia nada que eu pudesse amar mais do que aquele menino.

Quando adulta, um dia voltei lá. Fiquei dando voltas pela cidade como se fosse possível encontrá-lo e, mesmo se isso acontecesse, será que nos reconheceríamos? E o que eu diria a ele? Eu que nunca ouvi sua voz, nem sei a cor de seus olhos.

Vivi outros amores, com intensidades diferentes porque o coração tem compartimentos onde sentimentos se alojam e um não interfere no outro, como caixas bem trancadas, e mesmo quando esse amor acaba, na verdade não acaba, fica sempre um resquício, como fímbrias em uma janela fechada.

Sim tive outros amores, mas nenhum como aquele que me fez conhecer esse maravilhoso e inexplicável sentimento, capaz de permanecer intacto, preservado, envolvido em uma cápsula e, quando quero me certificar de que estou viva, eu abro e sinto que, como disse Jean Cocteau, “amar é descer bem depressa de elevador”.

Acho que ele disse isso. Se não disse, eu digo.

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

‘Take a photo, my love’

MÁRCIA INTRABARTOLLO *

Máquinas têm sentimentos e, ouso dizer, paixões. Não falo por falar, mas porque vi, e tenho testemunhas, a sedução de uma filmadora e fotógrafa americana em cima de um indefeso alemão.

Pobrezinho, caiu na rede dela e fazia cara de gostosão. O moço nem era bonito, até sem graça para meu gosto, com roupas quadradinhas e reações óbvias. Tinha aquela frieza europeia que incomoda bastante minha verve tropical. Mas convenhamos, essas características devem ser sensacionais para máquinas, mesmo para ela que teve certa vivência norte-americana (corre à boca pequena que ela tinha sido fabricada na China e ido de navio para os Estados Unidos, e depois fora exibida em vitrines de eletroeletrônicos com todas as suas partes à mostra, o que presumo deve ter subido à sua cabeça. Ela, vou falar sério, se achava!).

O nome da maquininha miúda e de tecnologia requintada era Gopro. Cá entre nós, a tecnologia podia ser chique mas a própria era escancarada nas sem-vergonhices. Vocês me darão razão.

Para constar, pronuncia-se goupró, e esse é um detalhe importante porque era ensinada a atender comandos de voz. Para que ela tirasse uma foto, por exemplo, devia ser-lhe dito: Gopro, take a photo. E ela agia.

Apesar de minhas restrições, nos coloquemos um pouco do lado dela. Tirada da China novinha, levada para um país estranho e depois para o Brasil de seus compradores, e mais uma vez embarcada com seus donos e amigos para ser praticamente escravizada… Enquanto todos passeavam de bonés, óculos, protetores, ficava ela sob o sol escaldante sem um chapéu sequer trabalhando sem parar, filmando, gravando, fotografando, inclusive à noite. Não tinha vínculos afetivos, não tinha amigos e vida social zero. Carentona. De modo que, ao ver o alemão com aquele sotaque diferente e frio como uma geladeira deve ter achado sexy e se apaixonado. Arrumou então um jeitinho de declarar seu amor.


‘Para constar, pronuncia-se goupró, e esse é um detalhe
importante porque era ensinada a atender comandos de voz’


Convenhamos que havia outras possibilidades: poderia ter caprichado nas imagens dele, poderia ter se jogado no seu colo várias vezes, engripado e feito de tudo para ele vir acariciá-la. Mas nada disso seria tão explícito quanto o que aquela inteligência artificial maquinou.

A paixão acha brechas, cria ocasiões.

Contrariando o profissionalismo que dela era esperado, a Gopro fechou seus ouvidos para todas as outras vozes e só atendia aos comandos do seu amo e senhor, o frívolo alemão.

Espertinha.

O dono da Gopro queria tirar uma foto, dava o comando, ela nada. Duas, três vezes e nada. Chamavam o germânico e ele dizia todo vaidosinho “Gopro, take a photo” e ela, pi pi pi clique.

Assanhada.

Com o tempo ele até brincava: “Gopro, take a photo”, dava um tempo e completava “my love”.

Foi tentado de tudo. Até chamaram um autêntico inglês britânico, que armou sua melhor pronuncia e entonação para dizer várias vezes “Gopro, take a photo”… sem sucesso. A professora de inglês disse “Gopro, take a photo” inutilmente. Só rolava com o alemão.

Faltava pouco para ele assumi-la, carregá-la a viagem toda com ele, quando alguém resolveu atrapalhar a relação. Sempre tem alguma intrigueira, e essa foi realmente perversa. Arquitetou um plano para tirar os holofotes da sedutora filmadora fotógrafa e ainda baixar a bola do alemãozito. A falsa pediu displicentemente para ele falar com a Gopro, e ele atendeu, deu o comando como quem beija. Ela rapidamente deu seus gritinhos delirantes: “pi pi pi” e clique, fotografou-o.

Mas a vilã destruidora de lares gravou a voz do alemão em seu celular. Bruxa, mas tiremos o chapéu para ela.

A Gopro não percebeu nada, coitadinha.


‘a Gopro fechou seus ouvidos para todas as outras vozes e só
atendia aos comandos do seu amo e senhor, o frívolo alemão’


Passo seguinte: perante todos, a vilã anunciou ao grupo. Pessoal, achei uma forma de não precisarmos mais do amigo aqui para dar comandos.

Corta-me o coração lembrar. Ela soltou o som de seu celular e a pobre apaixonada fez “pi pi pi” e clique. Caiu feito uma patinha.

É preciso registrar o despeito do objeto da paixão. Riu sem graça, como se tivesse sido traído. Como se o amor que ele julgava verdadeiro fosse de fato um amor que não sobe a serra. Desiludiu-se. Disse que não falava mais com ela.

Ela encolheu suas asas de sonho e reduziu seu coração de ching-ling a fracas batidinhas. Perdeu o brilho. Viu-se nada mais do que um objeto, abandonada em seu puro amor que não via limites nem pedia muito. Prometeu que para sempre as imagens dele ficariam gravadas nela. Sabe-se que artifícios usará para não ser descarregada.

Assim chegou ao fim o caso de sedução explícito informatizado, robótico, testemunhado, que valeu para provar que o amor é coisa esquisita mesmo, que paira, dá choques e, estando no mundo desde que o mundo é mundo, ainda rende histórias para contar.

 

(*) Márcia Intrabartolo é jornalista,
escritora nata e amiga do coração


 

 

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VEM PALAVREAR COM A GENTE!

Um Ângelo de Jesus

Um homem tentou invadir a entrada principal do Palácio do Planalto.

A manchete é antiga. Mas ficou gravada. Os jornais, os sites e blogs remetem a um terrorista, munido de fuzil e granadas para passar por cima de quem quer que encontrasse pela frente, disposto a chegar ao gabinete presidencial e fazer sabe-se lá o quê com o presidente.

Um atentado? Jogar uma bomba? Nada disso. A cena era outra.

O que queria o  lavrador baiano Ângelo de Jesus, de Pindobaçu, nas salas refrigeradas do Palácio? Que mal poderia fazer um Ângelo, ainda mais de Jesus, ao presidente popular, a não ser pedir socorro, como pediu ao ser dominado pelos seguranças bem nutridos, no chão e algemado como mostra a foto? “Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo.

De qualquer forma, entrando ou não na sala do presidente, seu pedido seria de socorro. Um homem que se aporta da Serra das Esmeraldas até Brasília e passa quatro dias sem comer para falar com o chefe da nação só pode estar em desespero. O desespero que ainda se avizinha de milhões de brasileiros diariamente, desempregados, subempregados, assistindo aos desmandos e à indiferença oficial, ao desvio de dinheiro público, às obras abandonadas de estradas, escolas e hospitais, enquanto nos ambulatórios superlotados de doentes e lamentos  os médicos não sabem a quem socorrer primeiro, a quem escolher para viver.


“Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo


Por que um lavrador estava há quatro dias sem comer? Justo um lavrador, um homem que aduba a terra, planta e reza para a seca não matar e sobrar um saco de feijão para alimentar a família durante o ano?

Alguma alma boa, um bombeiro talvez (os bombeiros têm alma boa), deve ter dado a ele um prato de comida, um sanduíche algum pão com ou sem manteiga….

Será que deram? Prefiro pensar que sim. E um copo d’água. A reportagem não diz.

Os jornais não contaram a história de Ângelo de Jesus, aquela bela matéria de interesse humano, com uma trajetória comum a todos os pobres e esquecidos nos rincões de norte a sul, ainda mais esquecidos nos nordestes.

Não. Foi só um fait divers. Quem se importa com a vida de Ângelo? Quem se importa com o Brasil?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

A memória de velhas crianças

GUILHERME NALI *

A vida do ser humano, se colocada em um plano cartesiano, seria assim: a linha sairia lá de baixo e iria aumentando até chegar ao ponto máximo. Depois entraria em decadência pura. Biologicamente é o ciclo natural da vida. A gente nasce, cresce, se reproduz e morre. Inevitável. Mas existe uma única coisa no mundo capaz de quebrar esse determinismo. A memória.

Há alguns anos tenho pesquisado muito sobre a memória coletiva ao redor de um acontecimento do passado. Um dos temas foi a Revolução de 1932, em Cássia dos Coqueiros – MG. Para entender o que esse evento histórico significou para aquela população fui atrás das testemunhas oculares da época. Descobri um universo de poucos senhores e senhoras de idade avançada, que eram crianças quando as tropas chegaram à pacata cidade.

Eu sabia exatamente o que perguntar a eles, para levantar meus dados. Mas uma dúvida parecia não ter resposta certa: Como eles se lembrariam de algo que aconteceu há mais de 80 anos? O resultado foi surpreendente.

Por se tratar de um acontecimento traumático para a cidade e principalmente para as crianças, que mal entendiam o que estava acontecendo – muitas famílias fugiram de suas casas com medo de tiroteio no meio da noite -, muitas imagens ficaram gravadas na memória. Mas carregadas de sentimentos do universo infantil.

“Eu passava a noite embaixo da cama. A gente ouvia o zunido das balas lá fora assim: zum, zum, zum”, declarou um dos meus entrevistados. Essa fala, cheia de onomatopeias, é característica das crianças, mas está na boca de um senhor de 90 anos. O passar dos anos, claro, trouxe o sentido que eles não entendiam sobre a revolução, mas a memória permaneceu como foi percebida na época.

Por serem os únicos a ter “legitimidade” de contar a história, todos trazem consigo um sentimento de orgulho.


“Por serem os únicos a ter ‘legitimidade’ de contar a história,
todos trazem consigo um sentimento de orgulho”


Principalmente por terem participado, de certa maneira, de um evento importante do país, do Estado – mesmo que SP tenha perdido a guerra.

A memória, carregada de sentimentos, mesmo que a escala da vida do sujeito já esteja em queda, sempre nos remete ao ponto máximo da nossa história. Assim nos tornamos importantes, imprescindíveis, eternos.

Esse é o sentimento que vou levar dos meus velhinhos, quando eles se forem. Meu avô já não pode andar mais, mas mantém a lucidez e a ternura de sempre. Minhas avós também têm lá suas limitações de saúde. Mas são puro amor, quando estão com os filhos e os netos.

Sempre que posso, peço que eles me contem uma história do passado, de quando estavam fortes, saudáveis, produtivos. E instantaneamente, pelo menos por alguns segundos, todas as dores da vida passam e são substituídas por um sentimento de glória.

Quanto mais histórias de vida nós pudermos contar e ouvir, mais chances temos de admirar o ser humano, principalmente os idosos, tão importantes na nossa vida. Essa é minha maneira de manter nossas velhas crianças vivas pra sempre.

 

* Guilherme Nali
Jornalista, editor e apresentador do
Bom Dia Cidade e Jornal da EPTV


 

 

 

 

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VEM PALAVREAR COM A GENTE!

 

Madame Guilbert

Obra ‘Madame Guilbert Gants Noir’, de Henri de Toulouse-Lautrec

Madame Guilbert sempre me emocionou. Talvez não seja uma das principais obras de Toulouse Lautrec, mas é a que mais toca meu coração. O que tem ela de especial? Nada para alguns olhares. Muito para outros.

Fico imaginando como ela, cantora famosa gravitava naquele ambiente repleto de sensualidade ou de promiscuidade, não sei, ao lado de outras damas, as que passavam a noite à espera de clientes para garantir a vida na Paris, quase na virada para o século XX – cansadas de se deitarem com tantos senhores com cheiro nauseante de bebida e fígado empedrado – atravessando as noites maçantes como são em todos os lugares do mundo, à espera de mais um dia.

No Moulin Rouge, em Montmartre, a figura triste de Lautrec emana solidão e abandono e suas obras não poderiam ser diferentes, pois perpetuou imagens difusas, como se as captasse através de um espelho embaçado ou de uma névoa que encobria a verdadeira face daquela suposta alegria. Paris era uma festa? E nesse ambiente, em sua obsessão em retratar o irretratável como se a alma de cada uma já estivesse pronta em sua paleta de cores borradas, o artista quase anão, quase deformado, embebido em absinto, registrou a solidão que hoje nos encanta. Os bordeis parisienses foram a casa de Lautrec, convivendo com aquelas mulheres que me parecem tão distraídas em suas poses meio desleixadas diante de um homem triste e sem amor, olhares absortos que atravessam os séculos e ocupam as grandes galerias de arte do mundo.

Pintura de 1894 de Toulouse-Lautrec

Voltemos a madame Guilbert, minha preferida. Também gosto de Jane Avril, dançarina de can-can e La Goulue, no famoso cartaz de Lautrec, ao lado do parceiro Valentin, e todas as telas dele. Mas, madame Guilbert me intriga. Ela, me parece, tinha o olhar perspicaz, olhando ao redor com um meio sorriso cerrado nos lábios, como se analisasse com agudeza aquele ambiente mundano,na Belle Époque, ela diferente da Grande Maria recostada displicente em uma poltrona exibindo sua nudez sem erotismo, como se nada no mundo lhe interessasse.

Para aonde foi madame Guilbert depois das telas de Lautrec? Quero saber mais sobre ela, se viveu grandes amores, se teve filhos, se morreu pobre ou se amealhou fortuna… Um fato ao menos eu conheço. Ela foi sepultada no famoso cemitério Père -Lachaise, em Paris, onde repousam famosos como Honorè Du Balzac, Oscar Wilde, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec e Jim Morrison, só para citar alguns.

Ah, madame Yvette Guilbert, queria tê-la conhecido! O que você diria desses meus delírios sobre as noites encarceradas nos quadros de Lautrec? Em meus delírios, vejo e ouço madame Guilbert cantando La Passion Du Doux Jesus ou Quand Vous Aime, em seu vestido decotado e luvas pretas de cetim até os cotovelos, sendo aplaudida nos vários palcos por onde brilhou. Vocês sabem… eu deliro mesmo.

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Liberdade

CÁSSIO BIDA *

“Fugi com o circo! Adeus”. Quando leu a frase, Romeu se espantou. Mas, no fundo, sabia porque sua amada estava fazendo isto.

Desde que se conheceram, Romeu e Carmem se encantaram um com o outro. Ele com a vivacidade da moça. Ela com a sensação de paz que o jovem transmitia com naturalidade.

Romeu tinha paixão pela escrita. Gostava, vez ou outra, de surpreender com textos, palavras, frases, citações. Muitas vezes emprestadas de Machado, Cortella e Vinícius. Mas, na maioria, frases escritas por conta própria.

Já Carmem, moça prática, não era de muitos rodeios. Tinha muitas urgências. A principal de todas era viver. Principalmente depois de um Carnaval onde tomou um banho de purpurina. O brilho invadiu a alma da moça que, desde então, passou a ser intensa.

Encontrou em Romeu um rapaz pacífico. Sabia acendê-la, mas ainda faltava algo. Ela queria a paz no amor, mas tinha em si mesma o fogo e a energia da juventude. A delícia da descoberta. Aquela chama de renascimento, típica de uma fênix. Talvez por isto Carmem nunca soube lidar direito com esse negócio chamado rotina.

Romeu, por sua vez, era extremamente organizado. Metódico, o rapaz tinha hora para tudo. Acordar, trabalhar, exercitar o corpo, a mente, a alma. Depois de um tempo, pasmem, até hora para namorar ele exigia.

Carmem, no entanto, era mais flexível. Aproveitava os prazeres da vida nas horas em que bem lhe cabiam. Entendia a importância de manter uma rotina, mas não era bitolada com essas coisas.

A moça gostava de surpresas. E Romeu sabia como presentear a amada nos momentos em que ela menos esperava. Fosse com uma flor, um verso, uma canção ou mesmo uma frase. Entre números de malabares e serenatas, ambos davam seu colorido um ao outro.


Acostumado com a presença dela, parou de investir no relacionamento.
E isto deixou a moça triste em um primeiro momento.
Depois irritada. E, por fim, indiferente.


Até que, em um dia cinzento e chuvoso, tudo foi esmaecendo. Carmem queria ainda acreditar naquele amor. Só que Romeu se acomodou. Acostumado com a presença dela, parou de investir no relacionamento. E isto deixou a moça triste em um primeiro momento. Depois irritada. E, por fim, indiferente.

Foi quando ela tomou uma atitude drástica. Na calada da madrugada armou uma corda de lençóis. Teresa como o pessoal chama por aí. Desceu, sabe-se lá como, sem fazer barulho, nem chamar a atenção dos vizinhos. E, com uma pequena mochila, sumiu no mundo.

Quando acordou, Romeu deu de cara com um bilhete que dizia pouco e explicava tudo: “Fugi com o circo! Adeus”. Poderia ser para ele o fim, inclusive da própria vida. Mas o jovem escritor não terminou como o xará do romance de Shakespeare.

Ao invés do obituário, Romeu resolveu deixar à amada uma lembrança diferente. Espalhou em outdoors pelo país uma mensagem. Uma mensagem tão bonita que Carmem lembrar-se-ia dele sempre ao ler.

No cartaz, uma fênix. Dourada, de asas abertas e com as chamas em carmim. E a frase que simbolizava o sentido de todo aquele amor: “Quem nasceu para ser livre jamais se prenderá a qualquer gaiola!”

Em uma das viagens com a trupe, Carmem viu o cartaz. Deu um leve sorriso e, artista como era, ficou admirada com o gesto. A viagem de ambos, mesmo separados, seguiu. Ele com o carinho das palavras. E ela, entre malabares e contorcionismos, fazendo o dia do respeitável público mais feliz.

 

* Cássio Bida
Jornalista curitibano e funcionário público, gosta de criar escrever histórias nas horas vagas.

É autor do PodCast Cartas Faladas  que desenvolveu para espalhar amor em meio à dureza do mundo.


 

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“VEM PALAVREAR COM A GENTE!”

Pensar com os pés e olhar as estrelas

SHEILA CRISTINA GUIMARÃES *

Quando criança olhava para o céu, contemplava as estrelas e pensava no porquê de ter nascido onde nasci, na casa onde morava, na família que tinha, na cidade onde vivia.

A minha dimensão do mundo naquela fase da vida era bem diminuta, não ía muito além desse universo cotidiano e dos poucos quilômetros percorridos entre uma visita familiar e outra. Ainda assim, ficava curiosa em saber como viviam as pessoas em lugares diferentes do meu.

Pessoas curiosas ou com ideias fixas não têm muito jeito, seguem vida afora com essa forma de buscar a vida e os porquês.

Do alto dos meus crescidos anos, numa palestra que assisti uma vez, ouvi do Frei Beto uma frase que fez todo sentido para mim: “pensamos de acordo com o lugar onde pisamos”. E a luzinha do olhar que contemplava as estrelas se acendeu imediatamente naquele momento. Daí a encontrar uma forma de descobrir por mim mesma as respostas que buscava levou alguns anos de andanças pelo cotidiano da vida.

E foi justamente nas andanças que descobri o universo da peregrinação. O Caminho de Santiago foi a minha estreia na modalidade de percorrer caminhos a pé levando uma mochila nas costas. Um verdadeiro experimento de vida, tudo novo para mim: país, pessoas, comidas, lugares, carregar peso nas costas, percorrer estradas e cidades à velocidade dos pés. Foram 30 dias repensando a minha existência, pesando significados e traçando novas rotas para a minha vivência neste mundo.

Desde então, outros Caminhos foram percorridos e muitas histórias entraram para o repertório da minha alma. A peregrinação virou paixão associada à curiosidade infantil inicial, abrindo um vasto caminho de aprendizados e inúmeros amigos de diversos lugares do mundo invadindo o espaço do meu coração. Mais do que tentar entender como vivem as pessoas em suas geografias, pisar no mesmo solo que elas, olhar as estrelas e compartilhar momentos de vida, numa troca de “humanidades”, preenche de sentido as lacunas dos meus questionamentos.

 

* Sheila Guimarães
Jornalista, designer gráfica, mãe da Marina,
avó da Helena e “peregrina mundo afora


 

 

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“VEM PALAVREAR COM A GENTE!”

 

O Testamento

Quando Teresa Maia morreu, afetada por uma dor no peito, os parentes, ainda no velório, começaram a pensar nos bens que ela poderia ter deixado. Viúva, mãe de quatro filhos, Teresa tinha um modo de vida confortável, amparado pela aposentadoria deixada pelo marido, engenheiro de uma grande empreiteira, e pelos trabalhos de pintura em porcelanas para uma loja de louças finas, uma arte cultivada desde a mocidade. Sempre que os filhos precisavam – e precisavam cada vez mais – estava pronta para assinar um cheque. Pouco sabiam sobre sua vida. Apenas que nunca votara em partido de esquerda, ao contrário deles, defensores ferrenhos de programas sociais. Nunca perguntaram sobre sua vida, sua história, seus anseios. Mas… quem sabe sobre a vida dos pais? Como se conheceram, onde nasceram? A história dos pais pouco interessa aos filhos, netos e afins.

Teresa Maia era uma mulher bonita. O tempo não causara muitos danos ao seu corpo. E ali, de mãos cruzadas sobre o peito, livre de estresse, deitada para sempre em um leito que não escolhera, estava mais jovem que seus 60 anos poderiam aparentar. Parecia segurar um leve sorriso, um tanto sarcástico. Conversa vai, conversa vem, os filhos souberam que ela havia deixado um testamento.

Um testamento? Teria ela acumulado bens sem que soubéssemos? – perguntaram- se os filhos. E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um. O mais novo, anteviu suas dívidas amortecidas, quem sabe saldadas, a compra de um carro novo e uma viagem ao Havaí, seu sonho de adolescente. Os outros também faziam planos mentalmente enquanto olhavam o rosto inerte da mãe, como se a pedir desculpas pelos pensamentos torpes àquela hora tão triste.


“E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um”


Tudo acabado, voltaram para casa à espera de um chamado. Nada. Passaram-se os dias e resolveram entrar em contato com o advogado que, solícito, desculpou-se pelo atraso e foi logo marcando o encontro em seu escritório.

Aquela era a hora mais esperada. Todos sentados, bem vestidos como pede a ocasião, aparentavam um ar blasé, como se nada de material lhes interessasse, como se a saudade da mãe embotasse qualquer resquício de pensamento materialista. Em segredo, a passagem para o Havaí com uma esticada por outras ilhas exóticas já estava até reservada, e nas outras cabeças amorosas os planos já tomavam formas exatas.

E veio a leitura. Silêncio que a hora é sagrada. Primeiro, o extrato bancário de Teresa Maia, que fez engasgar todos os quatro de um vez: muito dinheiro. Depois, os imóveis. Outro susto.

Como ela pôde esconder tudo isso de nós? – pensaram ao mesmo tempo. Finalmente, o desfecho: “Meus filhos, sei que me amaram de todo o coração e sou grata a todos. Penso que dinheiro e bens não pagam o amor de ninguém. Mesmo assim, deixo para vocês quatro, 5% do meu patrimônio. Sei que não vão se importar, pois sempre os vi e ouvi defendendo ideias e pensamentos de esquerda, contrários ao capitalismo selvagem, esse que torna os seres humanos tão mesquinhos. Portanto, comunico que os outros 95% serão empregados em uma causa nobre, ou seja: para entidades beneficentes, cujos nomes estão com meu advogado. Ah, não se esqueçam de pagar pelos serviços dele e continuem com seus nobres ideais. Um beijo de sua amada mãe”.

PS: Façam bom proveito.”

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.