Categoria: Palavreiros

Seção com crônicas de convidados do blog

Obituário

Carmen Cagno*

Abaixou o volume do rádio pra aguçar o ouvido. Eriçou-se – era mesmo. O ruído que vinha do quarto vizinho era sexo. Escandaloso, público, como se 10 da manhã fosse hora praquilo.

Tentou não escutar. Voltou ao rádio e à velha máquina de escrever que não aposentava de teimoso. Os obituários daquele dia… com prazo do jornal até às seis.

Fingiu que não escutava. Encompridou o olhar pra fora da janela, em direção ao minúsculo terraço que dava para o largo. O gradil enferrujado, torto pelo tempo, já emoldurara um dia a fachada art-noveau delicadamente encimada por pequenas e elegantes cornijas. Há muito tempo. Quando o bairro era elegante; quando ele acreditava e a noite acolhia Cadillacs “rabo de peixe” embalando casais encantados pelo cenário trazido lá de Hollywood nas telas do cinema da esquina.

Ele acompanhara aquela paisagem, anos a fio, com o nariz de menino sozinho grudado na janela de vidro embaçado. Homens de chapéu e mulheres bonitas entravam e saiam dos restaurantes e do grande teatro iluminado. Ele imaginando histórias, sonhando, triturando um frio na barriga cheia de adivinhações.

A rua agora era só um arremedo, uma lembrança noturna, derramando a luz amarelada sobre traficantes e prostitutas. Calçadas de silêncio decadente, interrompido às vezes pela sirene da polícia ou os rugidos de uma gangue qualquer.

As samambaias que a mãe insistia, tentavam sobreviver ressequidas naquele território estéril. As samambaias mortas, obstinadas; a mãe obstinada, imortal nos reumatismos, na tossinha irritante, na gororoba que ainda mexia no fogão encarquilhado, todo santo dia, depois de pendurar aqueles panos encardidos no varalzinho improvisado do banheiro.

Da infância, “só-sobrara” o apartamento fincado nesta rua torta e insalubre; sobrara a mãe de nariz cada vez mais adunco. Uma vida impossível, fora do script, amarelada pelo tempo, insistindo naquele cubículo.

Ainda assim olhava pela janela. E fumava, suando no peito sem camisa.

Os mortos. Publicá-los toda manhã, pra alguém ler e comentar “ah, ele era tão bom”, “puxa, ela ainda estava viva?”. Os mortos nas duas colunas que lhe cabiam diariamente no jornalzinho sem-vergonha, emporcalhado de reclames de elixires milagrosos e garotos de programa. Passava no IML, pegava BOs na delegacia, conhecia os informantes do tráfico – o suficiente pra encher as duas colunas e ganhar aquela merda de salário.

Tratou, como já havia aprendido, de se desencantar das lembranças. Fincou os pés no chão ladrilhado e ouviu outra vez. Os dois ali do lado continuavam naquela indecência fora de hora, cheios de espasmos e fluidos. O barulho seco da cama, nhéc, nhéc, nhéc.

Os mortos assombrados com aquela energia tão descabida. Desrespeito, meu Deus; sem-vergonhice das grandes. A vizinha bunduda que cantava boleros feito um rouxinol e se balançava toda no tanque da área de serviço. Ele via, volta e meia. Era ela, a gostosa, só podia ser. Dando pra algum desocupado e ainda gemendo alto.

Depois, a gaveta da cômoda, o revólver do pai, carregado para as eventualidades. Saiu de chinelo mesmo, calção. Abriu a porta do lado e descarregou: uma, duas, três vezes.

Agora podia trabalhar.


Carmen Cagno é jornalista

O verão da nossa desesperança

Dizem os franceses que é preciso exagerar para ser compreendido. Eu gosto de exagerar e de ser prolixa. Sempre acreditei que essa é uma estratégia poderosa para entreter e despertar o interesse das pessoas à sua volta, emprestando mais cor e sabor aos detalhes quando você precisa comunicar com precisão emoções extremas, boas ou más.

Se você descreve um assalto sofrido com palavras neutras e num tom de voz monocórdio, ninguém chegará nem perto de compreender os momentos de pavor que você enfrentou nem sua persistente sensação de desamparo. Se, da mesma forma, você relata um encontro inesperado com um antigo ‘crush’ que resultou em uma tórrida noite de amor, sem se dar ao luxo de fazer pausas dramáticas para incrementar o suspense, intercalar suspiros e abusar de expressões onomatopaicas, seus amigos acharão que você sofre de anorgasmia.

Por isso, para falar do verão 2021, quero me derramar sem censura no relato da minha absoluta incompatibilidade com o clima tropical em geral e do meu profundo desconforto com as temperaturas abrasadoras típicas do verão brasileiro, qualquer que seja a região do país em que você more.

Sei que praticamente todo mundo aguarda com ansiedade o período que vai de dezembro a março. É como se disparasse um alarme em todas as consciências de que é chegada a hora de sair de casa e demonstrar alegria – falsa ou verdadeira. Praia, boteco, roda de samba, parques lotados de gente se exercitando e confraternizando sob o sol. Tem início também a temporada de campanhas publicitárias que exploram ad nauseam imagens de jovens festejando a vida ao ar livre e se encharcando de cerveja, refrigerante, água de coco e sorvete. Inútil perguntar para onde vão nessa época os padres e freiras tradicionalistas, além dos velhinhos, principalmente os asmáticos e os cardíacos: provavelmente estarão fazendo uma excursão para regiões de mata fria ou encarando um retiro espiritual dos brabos.

A mim, mais do que convite para a auto exposição, essas associações só trazem desejo de distanciamento e reclusão. Não quero me misturar com nada nem ninguém, por mais arrogante que isso possa parecer. Sinto minha pele arrepiar só de pensar na sensação angustiante de estar sentada em uma praia, com o corpo todo lambuzado de filtro solar, misturado com sal, suor e areia – sabe aquela terrível impressão de estar sendo empanada viva para ser inapelavelmente morta esturricada logo depois?

Na cidade, não é diferente, ao contrário. À testa porejando sem parar, gotas de suor escorrendo para dentro dos olhos, ao excesso de luminosidade que obriga a franzir a testa e enrugar os olhos, à necessidade de enxugar constantemente as laterais do nariz e da boca e à transpiração empapando suas roupas formais de trabalho vem somar-se o vapor que vai subindo do asfalto e deixa um cheiro de borracha queimada no ar, o barulho enlouquecedor do trânsito, o ar poluído que não circula em função dos prédios altos.

No verão brasileiro você entende visualmente a crueldade da desigualdade social, sem precisar recorrer à leitura das teses mais densas de algum sociólogo ou filósofo político. Por mais que esteja envolto em trajes etéreos e confortáveis da linha Dolce & Gabbana, se você está caminhando há algum tempo pelas ruas em meio ao calor escaldante, inevitavelmente vai parecer pobre, desalinhado, vulgar, uma pessoa fora de forma e de maneiras rudes. Nada pode distingui-lo nessa situação: sua maquiagem caríssima vai derreter do mesmo jeito e sua gravata vai parecer aquilo que é de fato, uma forca. Só quando você está a bordo de seu carro importado blindado com as janelas escurecidas fechadas, helicóptero, avião, lancha ou iate particular ou ainda dentro de um hotel cinco estrelas, contando com o auxílio de um potente aparelho de ar-condicionado ligado na intensidade máxima, tendo à mão uma taça de champanhe Veuve Clicquot gelada, pode sonhar em recuperar seu status e seu ar de distinção.

Não há civilização possível no calor tropical, amazônico. Daí você compreende também a pecha de preguiçoso aplicada a todo nordestino ou nortista. Não há determinação, força de vontade ou empenho consciente que se sustente quando seu corpo se exaure com o menor dos gestos. Basta levantar um braço para que uma nova onda de suor inunde seu corpo e entorpeça sua mente. Não há concentração disponível para a realização de um trabalho intelectual, para a leitura ou para uma reflexão filosófica a respeito da dimensão trágica da existência. Você está preso à materialidade, às sensações corporais, ao momento presente.

Não dá para esquecer ainda do caudal de desgraças de que o verão se faz habitualmente acompanhar. Chuvas torrenciais, alagamentos, deslizamentos de terra, soterramentos, queda de árvores, raios e falta de energia elétrica, represas secando e racionamento de água, irritação permanente, cansaço incapacitante, inflamação dos espíritos e consequente aumento da violência.

Se esse mal-estar todo acontece em anos normais, sem a interferência de fenômenos climáticos como El Niño e La Niña, imagine então o que representa para uma pessoa avessa ao calor como eu estar confinada em casa, sem muito o que fazer para me distrair, e sendo forçada a usar uma focinheira como máscara até mesmo se eu estiver abrindo a porta apenas para jogar o lixo fora.

Graças a Deus, este ano não haverá Carnaval, a perfeita visão do inferno para mim. Ninguém merece ficar horas sentado diante da televisão assistindo às já desgastadas imagens de corpos nus ou fantasiados de baiana, índio – ou pior ainda, de figuras dos tempos do império com roupas de veludo e arminho em volta do pescoço.

Mas, devo admitir, nenhum mal se compara aos terríveis transtornos físicos e psicológicos causados pelo calor do verão brasileiro, pelo desemprego, pela fome, pela violência e pelo coronavírus somados: é somente  quando sua atenção é desviada para o festival tupiniquim de obscurantismo, negacionismo científico, conservadorismo nos costumes, fundamentalismo religioso, inação governamental e nauseantes negociatas políticas a céu aberto que você sente que lhe falta ar por outras razões mais insondáveis e sub-reptícias do que a mera ausência de vento. No outono ou na primavera, no inverno ou no verão, você habita uma surreal Pasárgada, onde não é amigo do rei e não lhe é dado o direito a escolher nem a mulher nem a cama onde vai se deitar.

Bem-vindo à desesperança do verão do não consigo respirar.

 

 

 

 

Qual é o pente que te penteia?

Phillip Roth, de longe meu autor preferido em língua inglesa, escreveu um livro ao mesmo tempo delicado e altamente provocador, chamado “The Human Stain” [A Mancha Humana], que funciona como uma espécie de bíblia antirracista para mim. Conta a estória de um homem oriundo de uma família negra humilde, mas que nasceu com a pele clara. Ao longo de sua infância, ele se dá conta do forte preconceito da vizinhança e dos colegas de escola contra sua família de origem e aos poucos vai se afastando dela, envergonhado.

No início da adolescência, começa a praticar boxe no colégio e se envolve cada vez mais com seu treinador judeu. Em função da proximidade afetiva entre os dois, que se estende para fora da escola, e do tom azeitonado de sua pele, que é comum entre alguns grupos judeus, muitas pessoas começam a imaginar ser ele também de origem judaica. A crença logo se consolida na cidade e o rapaz se aproveita dela para se afastar ainda mais da família e ocultar sua verdadeira identidade racial.

Amparado pela comunidade judaica, ele consegue ascender socialmente, torna-se professor e, mais tarde,  é eleito reitor de uma universidade local. A partir da perspectiva racial, Phillip  Roth vai então tecendo toda uma sutil trama abordando outras “manchas” humanas que orbitam a história de vida do personagem: conflitos psicológicos, disfarce de sentimentos, invejas, disputas de poder, conflitos identitários, preconceitos raciais e de classe social, etc.

Cena do filme norte-americano inspirado no livro de Phillip Roth

Apesar de sua habilidade para se esquivar dos golpes do destino, esse ex-pugilista vai enfrentando uma série de acusações na convivência com seus pares e alunos na faculdade, com os moradores da cidade e também com as mulheres. Certo dia, por exemplo, ele é acusado de racismo por duas de suas alunas afro-americanas por tê-las chamado de “spooks” [fantasmas], um termo fortemente pejorativo. Ele se defende argumentando que se referia apenas à baixa frequência das duas nas suas aulas, mas o conflito se instala, é levado ao conselho diretor da instituição e ele termina sendo demitido.

Em meio à disputa para limpar seu nome, ele sofre ainda com a doença e morte da esposa, uma mulher branca a quem nunca revelou sua origem racial, e acaba atribuindo o AVC sofrido por ela à tensão intrafamiliar decorrente da acusação. Ao mesmo tempo, ele conhece e se apaixona por uma faxineira branca, semialfabetizada e muito mais nova que ele, encarregada de limpar sua sala na faculdade. O encontro amoroso dos dois acaba sendo outra fonte de conflito e de pesadas acusações vindas de um grupo de professoras feministas que o denunciam por assédio sexual e machismo.

O leitor é sutilmente forçado a confrontar, ao longo de todo o roteiro, as nuances do universo psíquico desse afro-americano/judeu e as pretensas motivações atribuídas a ele pela hipócrita sociedade local. Não vou contar outras passagens dramáticas porque sei que os mais apressados perderiam a chance de pinçar por conta própria outras agudas provocações do livro.

O que quero ressaltar aqui é como é difícil se equilibrar num mundo que valoriza as aparências e que nos convida a cada instante a nos envolvermos em um intrincado jogo de espelhos. O convite à luta antirracista proposta nesse livro veio somar-se à minha intensa admiração pela obra de uma professora americana, ativista da causa da diversidade, Jane Elliott. Em uma série de vídeos contundentes, ela promove sessões de conscientização para crianças e adultos quanto às aparentemente inocentes mas perigosas armadilhas do cotidiano que levam à discriminação de pessoas a partir da cor de suas peles.

A série, chamada de “Blue Eyes” [Olhos Azuis], baseada num experimento de sensibilização para o racismo, propõe uma total inversão dos privilégios concedidos às pessoas brancas em nossa sociedade valendo-se de um recurso simples, mas engenhoso: o deslocamento da discriminação por cor de pele para a de cor dos olhos. Ela desenvolve e apresenta aos participantes a pseudo tese “científica” de que os portadores de olhos azuis ou verdes seriam pessoas menos inteligentes (porque lhes falta a melanina da maior adaptabilidade a um ambiente hostil), com mais dificuldades de aprendizagem, mais preguiçosas e mais ”mimizentas” (isto é, eternas reivindicadoras de direitos) do que as pessoas de olhos castanhos.

É simplesmente imperdível acompanhar o profundo choque causado à autoestima dos brancos por essa tese e a enorme comoção que toma conta dos participantes negros ao se verem retratados como pessoas “superiores”. É importante destacar que a participação de todos no experimento era totalmente voluntária – e, mesmo assim, praticamente ninguém opta por sair da sala antes do fim da sessão.

Desde a chegada, os participantes são divididos em dois grupos: os de olhos azuis/verdes e os de olhos castanhos. Os primeiros são obrigados a colocar um colar da mesma cor de seus olhos no pescoço para que seja possível reconhecê-los à distância. São atendidos de forma antipática ou indiferente, precisam esperar o início dos trabalhos sentados no chão de uma sala apertada e sem ar-condicionado. Enquanto isso, os de olhos castanhos recebem uma série de regalias: sucos, lanches, cadeiras confortáveis e tratamento preferencial. Uma vez iniciados os trabalhos, os participantes de olhos claros são então informados de que não poderão interagir com os membros do outro grupo nos intervalos e podem ser penalizados caso protestem contra o tratamento diferencial.

Em um trecho de um dos vídeos, Jane Elliott confronta os participantes com aquela que me parece a proposta mais reveladora do racismo estrutural: “Qualquer pessoa nesta sala que aceitaria passar um dia sendo tratado como nós tratamos os negros neste país, por favor se levante”. Frente ao silêncio constrangido que se sucede, ela replica: “Acho que vocês não entenderam o que eu disse. Vou explicar de novo” – e repete a proposta, com as mesmas palavras. Mais uma vez, ninguém se voluntaria. Ela então conclui: “É pior do que eu imaginava. Vocês sabem exatamente o que acontece… e são coniventes com esse estado de coisas”.

Adotei esse raciocínio como uma espécie de mantra para minha vida e no meu trabalho. Adoraria poder replicar esse treinamento em terras tupiniquins. Se isso fosse possível, no entanto, eu certamente teria de substituir a cor dos olhos por tipo de cabelo, uma vez que é essa característica a que mais concentra a atenção raivosa  dos racistas brasileiros.

Fora o velho xingamento de macaco, repetido à exaustão, o que mais se ouve em todos os casos nacionais de injúria racial é que o “cabelo duro/de Bombril” e os penteados afro não se adequam ao exercício de cargos de recepção ou contato com clientes e até mesmo podem interferir na capacidade e credibilidade dos ocupantes de cargos de liderança. Domar o cabelo rebelde tornou-se então o esporte preferido dos preconceituosos de plantão.  Intimidadas, as vítimas até que tentaram adequar-se, prendendo ou alisando os cabelos, mas o “atrevimento” dos fios em voltar às condições originais continua sendo sinônimo daquilo que mais se rejeita no trato diário com a comunidade negra: a insubmissão, a indisciplina, a ousadia de manter a cabeça ereta e de encarar os frequentadores da casa grande sem pestanejar, direto no fundo dos olhos.

Baile de máscaras planetário

Agora, COVID-isolada, com todo o tempo do mundo liberado, escuto em mim um eco fundo, ‘Clariciano’

Évanes Pache*

Antes do convite para o baile de máscaras planetário eu pensava que o bem mais precioso que o ser humano podia ter se chamava Tempo. A vida se dava em aceleração constante.

Fiquei maravilhada com as reflexões que um filme de ficção científica, estrelado por Justin Timberlake, me provocou. Num futuro próximo, as personagens trabalham em fábricas e, todos os dias, ao final do expediente, passam num guichê para receber seu pagamento. O seu salário é pago em tempo. Sim, tempo. Naquela fatia de realidade, as pessoas trabalham por tempo de vida. Essa é a moeda de troca em “O Preço do Amanhã” (In Time, 2011). É com o tempo que se paga comida, transporte público e todo o necessário para viver.

O filme é muito interessante e não quero dar (mais) spoiler, mas dá pra imaginar o que acontece se a pessoa para de trabalhar, não?

“O Preço do Amanhã” é, pra mim, uma releitura do mundo pré-baile de máscaras. Até fevereiro de 2020, vivíamos e trabalhávamos numa velocidade cada vez maior e, por outro lado, no subtexto, estava a angústia de atingir o tempo livre, sonhando com o final de semana, com o próximo feriado, com as próximas férias.

Hoje, com a COVID-Fest a pleno vapor e mascarados disputando pela versão mais mask fashion no baile planetário (um comportamento resquício do mundo pré COVID), o tal do tempo deu um cavalo de pau e se atravessou na avenida. Tudo virou de cabeça pra baixo no LP “Terra Plana”. Podia apenas ser a maravilhosa “Terra”, de Caetano (já que estão querendo voltar no tempo), mas não. Agora, estamos ouvindo o Lado B do mundo e de cada um de nós também. No Brasil, o Lado B roda em 78 rotações e em algumas bocas canta “todo mundo, vamos, pra frente Brasil…” (né Regina?).

Tenho pensado nas projeções de cientistas e informações de profissionais da saúde, nas notícias que chegam diariamente e no comportamento inexplicável de tantas pessoas que tenho visto – estupefata – todos os dias. Olhando em perspectiva, o quadro pintado não é bonito. ‘#EleNão’ tem 50 tons de cinza. “#Elenão” e seus seguidores gozam com a pulsão de morte descrita por Freud.

Ahhhhh, mas eu vou colorir com o Azul que é a cor mais quente. Pra começar, vou jogar aquele azul bem Frida misturado a um rosa bem Liniker. Depois eu penso no resto.

Nos primeiros dias ficamos meio perdidos com tanto tempo, à deriva. Pensei muito em Clarice ao refletir sobre tempo e liberdade. Apliquei Clarice em minhas inquietações. Antes das máscaras era um tal de “liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. Eu tinha fome (tenho) de mundo e queria (quero) tempo pra explorar inúmeros lugares. Agora, COVID-isolada, com todo o tempo do mundo liberado, escuto em mim um eco fundo, ‘Clariciano’, que diz: “eu e minha liberdade que não sei usar“.

Das reflexões, um pensamento urgente incomoda/mente. “É preciso amar como se não houvesse amanhã”. Tô pensando aqui que, sem poder frequentar a academia que cuida do físico, talvez seja interessante inventar em nós a academia da alma e exercitar todos os dias os músculos da compaixão, solidariedade e empatia. Na minha perspectiva, esses são os nossos maiores ativos.

Quem sabe, ao desfilar essas atitudes nas redes, nas videochamadas, lives, textos, mais gente perceba que o discurso bélico/presidente da Ustra direita, está mais que demodé. Está ultrapassado, brega, oldfashion nas velhas prateleiras ditatoriais do Brasil do século passado.

Então, meu caro amigo, me perdoe, por favor”, se agora eu deixo essa pergunta:

“O que você faria se só te restasse esse dia?”

 

P.S.: hoje, eu apenas gostaria de fazer poesia e declarações de amor. Enquanto isso, no meu baile pessoal, me prometo fazer tudo o que mais gosto. #Ficaremcasa, falar, me declarar a amigos queridos, cozinhar coisas que me dão prazer ouvindo jazz e tomando um bom vinho. Vou continuar a sonhar, amar, me renovar, revelar. Quero dizer do meu amor e me despir do que ainda pode restar em mim de ustra-passado. Sim, porque todos nós temos sombras de estimação a dar conta. Eu tenho esse figurino mas escolho deixá-lo no armário enquanto vivo livre.

Em tempo…all we need is love” and respect for all sort of life.

 

Évanes Pache é jornalista e especialista em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz

Crônica da seção Palavreiros, do blog, que traz colaborações de convidados com temas livres. O convite é extensivo a todos que gostam de “palavrear” a vida na forma escrita.

Shhhhhhh

Eu tinha quatorze anos, disso me lembro bem, quando cheguei faminta da escola e fui direto para a cozinha. O almoço ainda não estava pronto, nem a mesa posta. No fogão, aquele pininho da panela de pressão girava e soltava um chiadinho. Tive dificuldade para soltar a trava de segurança e enxergar, afinal, o que minha mãe preparava. Foi quando ela, como se enviada pelos anjos, entrou na cozinha e soltou um berro de horror. Larguei o cabo da panela na hora e respondi: só queria ver o que tem para o almoço. E você não sabe que não pode abrir panela de pressão???, ela continuou berrando entre incrédula e aliviada. Não, eu não sabia. Está certo que ela não tinha me ensinado, mas eu era, mesmo, essa adolescente sem noção nenhuma de cozinha (ou seja, de química, de física e da realidade). Tenho uma tia que, com quase trinta anos e recém casada lá nos anos 1970, resolveu fazer uma feijoada para o marido, prato que ele adorava. Era um sábado e ela comprou feijoada enlatada para o grande dia. Não cozinhava nada. Absolutamente nada. Leu as instruções e pronto: colocou a lata, fechada, dentro da panela de pressão. Perdeu o almoço e quase perdeu também a inteireza do rosto quando a lata voou da panela e abriu um rombo no teto. Desconfio que, no lugar dessa tia, eu teria aberto a lata e despejado o conteúdo na panela, mas é essa a minha linhagem. Ao menos parte dela.

Cresci sabendo fazer só duas coisas, e olhe lá: ler e escrever. Escolhi profissões que dependem dessas habilidades. Enquanto morei sozinha gastei muito dinheiro em restaurantes, e depois de casada também. Até que vieram as crianças. E eu fiz as piores papinhas do mundo. Os bebês cuspiam e eu lhes dava razão. E mais dinheiro com comida pronta e cozinheiras. E minha mãe, a melhor mãe e avó do mundo, que sempre nos salvou. Quando não tínhamos alternativa, era macarrão com molho de tomate, macarrão com molho branco e macarrão na manteiga. E ovo mexido. Porque o frito não dá certo de jeito nenhum. E o macarrão podia variar: com ovo mexido e sem ovo mexido. E os meninos foram crescendo e dizendo que meu macarrão era o melhor do mundo. E eu só pensava: ah, quando o mundo deles se ampliar… Até que veio a pandemia do Covid-19 e o mundo de todo mundo se encolheu. Consegui, aos quarenta e cinco do segundo tempo antes de nos isolarmos em casa, um estoque de congelados. Mas o mundo ia se encolher ainda mais e por mais tempo. E eu, era o quê, afinal? Mãe de dois meninos famintos, como são todos os meninos em transição para a adolescência. Acordei um dia cheia de coragem e não deixei que ela sumisse entre o quarto e a cozinha, como acontece quase todas as manhãs. Estava obcecada: dessa vez o arroz ia ficar bom. E, sorte de principiante ou não, até meu marido se espantou: como você fez esse arroz tão soltinho? Encolhi os ombros discretamente, mas soltei fogos de artifício por dentro. E peguei todos os legumes que tinha na casa e fiz uma bela fornada regada a azeite. E teve peixe. E depois frango. E até a carne vermelha, meu maior pavor, já deu certo. Macia e bem temperada. Arrisquei feijão, que ficou comestível, mas a lentilha ficou boa mesmo. E fiz um purê de batatas, o prato preferido das crianças, que parecia uma nuvem. E teve até tortinha de maçã, que começaram feias, mas terminaram douradinhas e gostosas. Bolo de beterraba com chocolate. Pedi receitas pelas redes sociais. Ganhei várias e fiz algumas. As outras estão guardadas. Quero fazer todas, já gosto da minha comida. E tive até a ousadia de não seguir estritamente uma receita.

E deu certo. Deu certo! Pensei em pedir silêncio, como o poeta: nesse meu mundo encolhido e doído, nasceu uma flor. “Vejam!, pode ser feia, mas é uma flor”(*). E, em meio às panelas, à louça suja, à faxina, ao trabalho agora menos remunerado e às lições de casa das crianças, saíram também os textos jogados nas redes, uma tentativa de respiro e aproximação, porque sim, eu gosto tanto de gente, e chegou o convite para escrever nesse blog. Puxa, mais uma flor, ainda que feia. E talvez, mesmo nesse momento tão triste e duro para o mundo, a gente consiga cultivar um pequeno jardim.

Obrigada, Silvia!

 

(*) referência ao poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade

Mais perto da lua

Noite dessas fui abduzida para outro planeta. Justo eu, que nunca gostei de histórias de viagens interplanetárias, realidade paralela, catástrofes e coisas assim. Só via o céu quando passava noites no mato e, sem mais o que fazer, me deitava olhando a lua, a via Láctea, o Cruzeiro do Sul, a estrela Dalva e milhares de estrelas… Aí pensava em como seria morar em uma delas ou no planeta vermelho.

Agora isso: abro os olhos, ando pelo apartamento. Tudo parece igual, mas está diferente. Os extraterrestres reproduziram meu habitat como fazemos nos zoológicos, mas foram além, porque todo o meu entorno é o mesmo e minha mãe continua morando no mesmo lugar.

Só que estou enjaulada. Daqui não posso sair. Segundo me informaram por uma tela onde os ETs surgem cheios de cena, posso quebrar a regra da quarentena que me impuseram por causa de um invasor, mas arcarei com as consequências. E porque não posso sair, não vejo outras pessoas a não ser meu marido, que foi abduzido junto.

Temo e aprendo. Faço ginástica, cozinho com os suprimentos que me deixaram e há uma ordem de que tenho que manter 1 metro distância de quem quer que eu eventualmente cruze, se me rebelar.

Aprendo e temo. Não sei como viverei igual a antes disso se tenho aprendido a viver de outro jeito. Também não sei quando me devolverão para a Terra, se ela ainda será a mesma e nem mesmo se existirá. O mais grave: não sei se quero ser devolvida.

Estou gostando de ficar aqui, tirando as ameaças e os perigos do lugar. Consigo manter contato virtual com as pessoas que amo, rezo, mas não preciso trabalhar fora, cumprir compromissos sociais, encontrar os conhecidos sem afinidade comigo, experimentar a comida do restaurante novo, ser medida dos pés à cabeça. Vivo. Não preciso ir a cabeleireiro, terapeuta, shopping, massagista, cardiologista, contador. Não preciso ir ao banco.

E tudo se adapta. Cortam-se os excessos, tiram-se as influências. Neste planeta eu ouço menos barulho. Sempre gostei de silêncio.

Restringiram-me. Não posso mais bater perna. Viajar não pode. Nem abraçar, o que é ruim, mas por outro lado é bom porque dá mais vontade e encontram-se outros caminhos. A rigor, nem falar sozinha é permitido, pois gotículas de minha saliva ficarão no ar e isso é ruim para quem vem depois.

Tudo isso tem me deixado calma. Posso estudar uma porção de coisas que sempre quis sem ter pressa e faço isso pelo celular, que mantiveram e tem ótima conexão interestelar.

Devo fazer tudo devagar para que o tempo passe. E o tempo passa.

Durmo bem, rio, ouço músicas. Parece que estou voltando a ser criança.

Aliás, quando eu era menina, cismei de descobrir qual era a distância entre a Terra e a Lua. Passava tardes sentada no jardim tentando resolver esse problema.

Um dia, olhando uma figura da Terra e da Lua, tive a ideia: medi o diâmetro da Lua com a régua da escola. Digamos que tenha dado 1 centímetro. Medi a distância entre ela e a Terra. Digamos que tenha dado 5 centímetros.  E concluí que eu estava a 5 luas de distância da Lua.

Agora eu poderia calcular quanto tempo levaria para ir de caminhão até lá. E depois teria de descobrir por qual estrada.

Só porque estou abduzida nessa réplica do meu território, e com tempo, pude lembrar do meu sonho infantil de querer morar na Lua. Lá eu estaria mais perto daquilo que me faltava e eu nem sabia o que era. Nem sei ainda, mas estou com mais esperança do que nunca.

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

Homeoffice

por Luciana Gerbovic

Hoje amanheci (já que não dormi) decidida a encerrar umas pendências do trabalho. Tudo ajeitado na minha mesa do “homeoffice”, que é a mesa de jantar mesmo, mas antes o café da manhã das crianças. Suco de laranja espremida na hora, ovo mexido, fruta, entuchando o que posso de bom e saudável nesses meninos.

Depois é colocá-los pra tirarem o pijama (por que, mãe, se ninguém sai de casa?), escovarem os dentes (por que, mãe,…), o cabelo (faz o que tô mandando e não pergunta) e finalmente ajeitar o material para as lições que a escola ia começar a mandar hoje. Mas tem que entrar no Googleclassroom e colocar os códigos. Tem que criar um e-mail pro mais velho e explicar pro mais novo que ele não terá esse esquema porque ele está no Fundamental I. Tem que se inteirar do esquema do Fundamental I. E tem que descobrir que o filho mais velho não acha mesmo o livro de Matemática e descobrir que o livro ficou na escola, e dar um jeito do livro voltar pra casa, mas aí já é hora do almoço e tem que ter legumes e verduras e peixe e comida fresca e depois do almoço pronto e da louça lavada tem o livro de Matemática que chegou e aí o filho pode começar a lição, mas ele está quase tão perdido quanto o Você Sabe Quem na presidência e resolvo sentar com ele, com todo o trauma que tenho das lições de Matemática, com toda a falta de paciência que tenho pra menino cheio de privilégio que não entendeu como deve se portar na escola e cuidar das coisas, mas sento e me encho do amor que sinto por ele e supervisiono a lição de expressões numéricas e acolho os erros e as dúvidas e o desleixo para transformá-los em desafios superados. E a lição fica tão caprichada que ele acha que o professor vai desconfiar que nem foi ele que fez.

E eu choro porque hoje à tarde eu deveria estar com meus alunos da Escrevedeira falando de literatura. E meus filhos me abraçam dizendo que logo estarei com eles. Enxugo as lágrimas e já é hora da janta. E tudo fresco de novo. Faço arroz e fica bom! E sirvo o jantar e enquanto o marido lava a louça e comenta que pelo WhatsApp os amigos acham que devia ter aplausos nas janelas para os maridos que estão em casa, eu berro em nome da luta feminista e digo que não vou jogar biscrok pra macho que tá fazendo o mínimo do mínimo do que poderia fazer e guardo a louça e coloco as crianças no banho e rezo pra virar lésbica depois que esse isolamento acabar porque de homem hétero já estou pelas tampas das panelas que eles não sabem onde ficam.

E faço um bate-papo virtual com as manas inteligentes da porra antes de regar as plantas. E tomo um banho e penso nas mulheres que não têm os meus privilégios, nos alunos que não têm os privilégios dos meus filhos, no trabalho doméstico que deveria ser remunerado e muito bem remunerado. E choro. E saio do banho e acho que mereço esticar as pernas no sofá.

Quase 23:00. E porra!, os trabalhos pendentes que assim continuaram, lá no meu “homeoffice”…

‘Todos os dias é um vai e vem…’

por Márcia Intrabartollo   

O casalzinho se foi carregando quatro malas enormes e chegou na outra parte da América só com isso, os longos cabelos lisos dele e os olhos de rolinha dela. Ela começará a dizer “I love you”, como ele faz há tempos. Seus pés dançantes logo acharão um lugar para ensinar seu tango, fato que me atrevo a contestar de leve: brasileiros ensinando tango reforçará a ideia de que Buenos Aires é a capital do Brasil.

‘Brasileiros ensinando tango reforçará a idéia de que Buenos Aires é a capital do Brasil’

Podia ser frevo, mas quem sou eu para dar palpites? A vida é que vai ensinar aos dois o novo ritmo e passo, e a nós também, que ficamos aqui com parte da vida que eles deixam para trás.

Diz o Chico Buarque que “chega a roda viva e carrega o destino para lá”, mas retifico sua composição: carrega o destino para lá e para cá. Nós, aqui, teremos a sensação de sermos um pouco eles, aguando suas plantas, temperando a comida com seus condimentos, como se de repente tivéssemos entrado em uma casa habitada da qual pudéssemos dispor como quiséssemos, desde que mantendo a salvo os discos.

Herdamos orquídeas, rosa do deserto e um pé de erva-doce com botões. Veio um saquinho plástico com um pouco de cúrcuma fresca e uma caixa de temperos que levei no colo. O carro se perfumou de mercadões. A pimenta preta. A canela em pó. A páprica, o orégano, o chimichurri.

No Carnaval, fritamos o anis-estrelado antes de pôr o cogumelo na panela. Ficou bom. Coloquei cravo em pó no leite quente para aproveitar o frescor das chuvas. Nem sei se estou fazendo certo. Estou cintilando nossas comidas de Cintia, a de cabelos escorridos. As flores do pé de erva-doce nasceram loiras como o Paulo. Ponho água nas plantas torcendo para que fiquem saudáveis e floresçam, e eu possa mandar fotos para San Diego e alegrá-los. Está tudo bem.

Ontem tiramos o pó dos discos, acomodamos a coleção de Chico Buarque, Belchior, Milton, Clube da Esquina e tantos outros em um armário. Vimos que alguns devem ter sido anteriormente de outras pessoas, desconhecidos que agora compõem nosso mosaico musical. Encontros e despedidas, não é Milton? “E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”.

Meu bem vai comprar na José Bonifácio o cabo para a caixa de som que ficou sobre uma antiga mesa de costura, que, por sua vez, também herdamos de quem precisou abrir mão para se mudar. Quando a vitrola funcionar, porei, de vez em quando, os discos de tango para que as plantas matem a saudade do casalzinho. Tocarei um disco diferente por dia e pensarei que as vibrações daquelas músicas chegarão a todos aqueles a quem pertenceram.

“A plataforma dessa estação é a vida”, tocará. A vida que voa, circula, muda de mãos, se embrica, se esfrega nas outras e faz intersecções.

Enquanto eu escrevia, eles cruzavam, aventureiros, o Atlântico.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina mundo afora e aprendiz de escritora

O meu amor…

por Dani Ramos   

Meu amor chegou na minha vida assim como uma brincadeira, um acorde, uma música. Mal sabia eu que era Deus brincando comigo e deixando minha vida mais feliz.

Um encontro casual, uma sexta-feira 13 de agosto, uma afinidade imediata, uma banda cover. E o desejo de um reencontro.

Meu amor despertou em mim o desejo de ficar colada pele com pele e trouxe a ternura pelo seu toque suave.

Nos despedimos várias vezes ao longo da nossa jornada.

A primeira foi doída, sentida a cada dia como se fosse uma eternidade.

O reencontro nos deu a certeza de um amor pra vida toda.

Vieram outras separações e todas nos fizeram crescer e afirmaram o quanto nos queríamos.

Sua última partida, essa sem possibilidade de retorno, me deixou perdida no espaço, fazendo força para acreditar que poderemos nos ver novamente.

E Deus, o cara que brincou comigo e me deu a felicidade em forma de luz?

Será que conseguirá me trazer de volta a paz?

Quando meu amor adoeceu senti raiva. Raiva da sua falta de cuidado, da mensagem incompreendida e da condenação divina.

Basta! Era tudo o que eu queria gritar.

Ofereci meu colo e seguramos nossas mãos unidas, como uma rede que pudesse nos proteger daquele feitiço sem volta.

Meu amor não entendeu minha ira, mas aceitou meu colo e juntos fomos em busca de socorro.

A viagem foi longa, entrei e saí do barco, o enjoo veio, mas ele se manteve no comando, sem deixar que a água invadisse e transformasse terra fértil em lama.

Meu amor tinha uma estranha mania de se calar e deixar que sua voz riscasse o papel. Eu gostava de admirá-lo enquanto deslizava o lápis sobre a folha branca ou enchia uma tela de cores.

Brincávamos de ser gente grande, de viajar, de ganhar o mundo com a arte, com nossos sonhos.

Sonhamos juntos e sonhamos separados.

Nos falamos com palavras e com olhares.

Meu amor me acordava com cheiro de café coado, pão na chapa quentinho e frutas picadas. Ganhava um beijo, um abraço desajeitado enquanto escovava os dentes.

Me enchia de cuidados, vigiava minha postura, fazia questão de me ver sorrindo, insistia para que eu me alimentasse bem.

As vezes saía e me deixava dormindo só para eu poder acordar com sua mensagem, um desenho e o pedido de contato.

Outras tantas me acordou com muita insistência, quase me arrastando para a vida.

A noite era plena para ele, seu corpo era embalado pelo próprio ronco. A minha era de luta com o meu próprio corpo, com os sons internos e externos.

Não se queixava do meu peso em seus braços. Mal se movia para não me acordar. Repousava sua mão no meu seio, colava seu corpo ao meu e me fazia sua.

Seu olhar sempre pedia mais de mim.

Gostava do riso fácil e da minha vontade de viver, detestava brigas e cobranças.

Meu amor me olhava com admiração enquanto eu contava histórias ou defendia pontos de vista.

Seu silêncio era minha calma e meu desespero.

Quando meu amor morreu, achei que tudo seria mais leve, que meu coração estaria aliviado por ver seu sofrimento acabar.

Pouco antes de partir, meu amor chamou pelo meu nome. Não disse o que queria, mas nós dois sabíamos o que era.

Então, disse em seu ouvido o que gostaria que ele sentisse em seu coração.

Soprei de leve as palavras de amor que costumávamos trocar.

Depois disso, ficou apenas um rasgo em meu peito, uma cicatriz eterna na alma.

Nosso tempo unidos eternizou o laço que construímos.

Vivo hoje uma viuvez sem papel, sem título, sem documentos.

Marcou tanto minha existência que todo o resto se fez pequeno.

Carrego comigo o mesmo anel que ele mantinha no bolso.

Arrumei suas coisas, me preocupei em embalar tudo como ele mesmo faria.

Guardei comigo sua camiseta mais amada, uma roupa íntima, seus desenhos e livros, um pouco do que marcou a nossa bela história.

Preocupei-me em dar asas e voz ao que ele sempre amou.

Procurei seus amigos e pedi colo, compreensão, troca. Encontrei mais que isso… me deram amizade. Na dor compreendi sua escolha por pessoas que o alimentaram tanto.

Mais que isso, aceitei o presente que meu amor me deixou.

Suas mãos sempre foram quentes, me encheram de amor e aqueceram meu coração. Repousava sua mão na minha coxa como se nos mantivéssemos de mãos dadas enquanto eu dirigia.

Quando nos despedimos, suas mãos estavam perdendo a quentura e levemente fomos nos desconectando.

Meu amor era assim, se preocupava tanto comigo que me deu tempo para que me acostumasse a andar com as mãos vazias.

 

Dani Ramos é jornalista e a pessoa mais afetuosa e sensível que conheço.

Para onde as mulheres podem fugir?

por Márcia Intrabartollo.    

Para onde  as  mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir?

Para onde as mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir levando pelas mãos seus filhos e sem formação que lhes permita ganhar o sustento?

Quando me imagino no lugar de uma delas, me vejo sonhando com um condomínio de casas em que as mulheres pudessem viver por um tempo e que fossem recebidas por assistentes sociais, advogadas e psicólogas capazes de lhes orientar sobre os aspectos legais de uma separação, lhes dessem cursos de capacitação profissional, intermediassem empregos. Para ficar tudo ótimo, o condomínio teria uma estrutura de creche junto. Ah, e tinha que ter interfone com porteiro para evitar que os maridos as tirassem da paz. Já inventaram isso?

Quando eu era criança, fui vizinha de uma família por muito tempo. Pai, mãe e três filhas. O marido sofria de alcoolismo e era o provedor da casa. Ele era ótimo em matemática, apesar de ter frequentado pouco a escola.  A mulher era doce e sensível, ótima mãe, católica e cuidava da casa e das crianças com os parcos recursos que ele lhe dava, apesar de ter os bolsos cheios de notas.

Morávamos em um loteamento, desses em que cada um constrói sua própria casa. A deles era um primor de bom gosto e capricho e tinha uma especificidade: de lá saiam sons o tempo todo. Saíam berros, xingamentos, barulhos de coisas se quebrando. Saíam “Ais”, saiam “Para”! Eu sentia a vibração daquela vida opressiva chegando até meu quarto. Tínhamos que aumentar o volume da televisão para não ouvir as brigas diárias.

Eu vi o dia em que a polícia chegou depois da mulher ter usado o telefone da minha casa para chamá-la. O marido tinha batido nela e dado uma surra na menina maior. Ela até suportaria se fosse só com ela, mas com a menina ele não podia ter mexido. Vi os policiais perguntarem o que ela tinha feito para que ele perdesse o controle daquele jeito e fiquei intrigada com esse outro jeito de ver quem era culpado.

Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo aquele sofrimento porque não tinha para onde correr. Mesmo achando que era pecado, ela se separaria dele se tivesse para onde ir. Mas nenhum dos seus muitos irmãos e irmãs achavam que em briga de marido e mulher se deve meter a colher. Os irmãos dele achavam que estava tudo certo. E nós e os outros vizinhos percebíamos como tínhamos uma vida harmoniosa em comparação com a vida dos outros.

 

“Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo
aquele sofrimento porque não tinha para onde correr”

 

Teria sido tão fácil se a família tivesse se unido para alugar uma casa para elas (ou acolhê-las) e por uns  meses tivessem passado um aperto a mais para lhes dar comida – só até que ela engrenasse como costureira, crocheteira, passadeira, já que era boa de trabalho…

Teria sido tão fácil se algum advogado vizinho tivesse se disposto a  orientá-la sobre o processo de separação, que lhe renderia pensão alimentícia…

Mas ninguém se envolveu. Nem mesmo nas duas vezes em que elas fugiram para a casa dos parentes e depois de uns dias foram mandadas embora porque eles não tinham como sustentar quatro bocas. Ninguém, tampouco, se interessou por ele.

Estou falando de um caso fácil: família de classe média, em um bairro de classe média, com marido que tinha como dar pensão, crianças saudáveis e educadas, mulher com condição de trabalhar. Um caso fácil em que nem assim houve solidariedade. Bastaria apoio. Uma mão forte para amparar aquela fragilizada mãe, que achava que sem o marido não conseguiria alimentar as crianças.

Dirão alguns que ela podia ter se separado assim mesmo. Falar com base em sua própria formação, personalidade e condição é fácil! O fato é que o medo e a opressão paralisam, e o fato maior é que ninguém é solidário a ponto de se envolver realmente, de cuidar da vítima.

Ela só conseguiu se separar do marido quando as filhas começaram a ganhar uns troquinhos como vendedoras.

Por que não vejo casas de apoio para receber mães acuadas, aquelas do meu sonho? Por que não vejo mulheres de sucesso e muita grana capitanear um projeto que propicie esse apoio, assim como jogadores de futebol apoiam escolinhas de jogadores, assim como os cantores sertanejos apoiam o Hospital do Câncer?

Eu, você, os parentes, os vizinhos, iniciativas privadas, o poder público… por que ninguém dá a essas mulheres a condição de fuga?