Categoria: Série ‘Pé Dá Letra’

Série de crônicas de viagem do grupo Peregrinas Mundo Afora.
Nesta primeira temporada, serão dez crônicas publicadas semanalmente, ãs quartas-feiras, a partir de 6 de maio de 2018.

Passarinha, suricata ou um ventilador

Acordei de madrugada e me dei conta de que aquela era a 28ª cama diferente em que dormia nos últimos 28 dias, e a última. Não havia mais o que andar. Na manhã seguinte pegaríamos o caminho de volta ao Brasil.

Depois de ter passado por beliches, camas de campanha e de solteiro, a 28ª era de casal, como a primeira, e de certa forma essa situação fechava o ciclo. A mesma colega do primeiro dia dormia comigo, mas diferente da noite em Aosta em que tremi de medo, agora eu pensava na guinada que minha vida dera: estava “grávida”.

As estrelas me viam como um pontinho na cama de um B&B em Siena, na Itália, em um dos cinco continentes, na Terra, que pouco representa no Universo. Eu era nada mais do que um pó perdido de felicidade porque estava em uma cidade medieval incrível e tudo tinha dado certo. Não havia conseguido vencer o medo, mas o domara; não havia conseguido ser engraçada, mas estava mais leve; minha rigidez se movera só alguns milímetros, mas foi a brecha para uma expansão. E tinha pego barriga, estava prenhe daquela outra “eu”.

Fechei os olhos e me lembrei de dois dias antes, quando deixamos San Gimignano para trás. Andávamos de madrugada por uma cidade que se conservava igual há séculos, e eu pensava se outros peregrinos que pisaram aquele chão de 63 anos antes de Cristo tinham se metamorfoseado.

Agora também é muito cedo e desperto do primeiro sono de volta ao Brasil. Meu marido dorme. Fecho os olhos e San Gimignano volta: lá o céu enluarado estaria mudando de cor, passando de carbono a um azul Bic, com nuances cor-de-rosa. Uma ou outra padaria já começaria a abrir, enquanto grandes arbustos verdes já estariam se revelando nas muralhas.

É bonito ver a mudança de geografia, o sol nascer, o dia se pôr. A gente passa, o dia passa, o tempo passa, tudo vai mudando e a gente pensa que está igual. Daqui para frente, serão só lembranças e os cuidados com essa bebê que fica sendo constantemente gerada e parida. Chegará o dia em que só haverá sombra da Márcia anterior.

Para mim, a peregrinação pela Francígena foi um ritual de passagem. Eu andava frustrada com a comodidade que tinha dado para minha vida. Mantinha presa em uma torre a passarinha que eu sonhara ser. Naquele março de 2017, abri a porta da gaiola, pus uma mochila nas costinhas dela e mandei-a passear.  Foi para a Itália disposta a renascer.

Quando já tinha se passado um ano, meu sobrinho disse que pareço uma suricata. Uma semana depois, minha enteada afirmou que eu lembro um ventilador de piso. Dá na mesma… passarinha, suricato ou ventilador, um ou outro fica retinho e girando a cabeça de lá para cá, tentando dar conta de tudo.

Fiquei orgulhosa de passar essa imagem pois parece que estou conseguindo “ter o pasmo essencial que tem a criança, se ao nascer, percebesse que nascera deveras”. O Fernando Pessoa fala bem lindamente dessas coisas, mas, Lucas e Nágila, vocês foram tão certeiros e modernos que vou preferir as definições de vocês. Ganharam o dia, agora me aguentem…

Sigo em frente, e é para valer.


Queridos leitores que acompanharam carinhosamente a série Pé Dá Letra,

amigas peregrinas Adriana, Kele, Regiane, Renata, Sheila e Vera,

Silvia Pereira, que me abriu este valioso espaço no Palavreira,

minha mãe e meu amor:

agradeço a todos pelo apoio na minha jornada de autora!

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a última crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Eu Vi Gigantes, clique aqui.

 

Eu Vi Gigantes!

Quero me redimir da culpa de ter usado o nariz do Pinocchio para contar algumas histórias. Saibam que se misturei realidade com mentirinhas foi unicamente com a boa intenção de imprimir nelas um pouco da magia que permeava nossos passos. E já que estamos na penúltima crônica da série, vou revelar a vocês uma verdade sólida.

Eu vi Gigantes. Juro por tudo o que é mais sagrado.

Acharão que estou de brincadeira, mas não. Saibam que eles foram o acontecimento mais real e forte de tudo o que foi contado até agora. São mais vastos que os Apeninos, e têm nomes de mortais comuns: Karl e Vincent.

Karl jantou conosco em Chatillon e andamos juntos por dois trechos. Quando falou de nós em uma de suas postagens, disse ter dúvidas se éramos um grupo de brasileiras ou uma banda. Isso porque ele testemunhou momentos em que estávamos animadíssimas para cantar e dançar enquanto andávamos.

Karl é um Gigante inglês de presumíveis 65 anos, casado e pai de uma paratleta acometida por paralisia cerebral. Ao aposentar-se, impôs a si mesmo o desafio de andar 3.200 quilômetros de Windsor (Reino Unido) até Atenas (Grécia) para, com tal feito, angariar recursos para duas instituições: Cancer Research UK e Chance for Childhood. Andar por caridade era o que fazia por ali. Com posts e vídeos, chamava a atenção dos seus seguidores. Um Lord!

Diante de um coração tão generoso, fiquei miúda. Diante de alguém com um propósito tão forte de doação, que cede e faz pelo outro, pensei no quanto é possível se expandir.

Foi o primeiro Gigante. Veio para ensinar.

Como os semelhantes se atraem, não demorou para o segundo gigante juntar-se a nós.

O Vincent era um holandês que apareceu do nada no trecho de Vèrres. O lógico seria que nos ultrapassasse e seguisse seu rumo. Devia ter uns 30 anos ou nem isso. Depois explicou que reduziu seu ritmo ao mínimo porque estava precisando da alegria que tínhamos de sobra. Isso fez com que andasse conosco um dia e meio, até desistir de nossa lerdeza.

Vincent era o Gigante maior porque estava lutando por sua própria vida. Tinha uma doença grave que o obrigava a tomar medicamentos diariamente, pois seu intestino não absorvia os nutrientes. Ele podia passar mal a qualquer momento, mas estava andando sozinho e percorria cerca de 50 km por dia.

Tinha fé –  muita fé – de que se saísse da Holanda e seguisse até Jerusalém, abrindo mão da medicação no trajeto, se curaria.

Você já olhou nos olhos de alguém de pupilas pretas que brilham quando diz que tem fé de que vai se curar enquanto anda, prescindindo dos remédios, arriscando-se a não ter socorro caso passe mal? Já sentiu que sua alegria efêmera podia ser um bálsamo para alguém vivendo tamanho drama pessoal? Já torceu intensamente para que o Deus dos Gigantes ouvisse aquelas preces?

Mais uma vez, diante de um coração tão valente quanto aquele, fiquei miúda. Diante de alguém com o forte propósito de defesa de sua vida, que enfrenta os problemas e age por si mesmo, pensei no quanto é possível expandir-se.

Foi o segundo Gigante. Veio para ensinar.

Pinocchio, aqui a magia deu-se por outras vias. Conhece Belchior, seu filho de carpinteiro? Dizia ele que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Deve ter visto gigantes também.

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a nona e penúltima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Carta para a Menina Helena, clique aqui.

 

Carta para a Menina Helena

Um dos quadros integrantes da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017

A Helena é filha da Marina, que é filha da Sheila, que é irmã da Adriana, e ambas filhas da Maria José.

Uma linhagem de mulheres (fortes!).

A Sheila e a Adriana são peregrinas, gostam de andar pelo mundo. Isso começou em 2014, quando trilharam o Caminho de Santiago e a Helena era ainda uma bebezinha. Não entendia direito de ausências.

Mas o tempo passou – criança cresce rápido – e quando as duas irmãs resolveram trilhar a Via Francígena, em 2017, a menina precisou ser preparada para entender a falta da avó naquela casa sempre tão cheia de Sheila.

Na tarde em que chegamos a Fornovo, a Sheila e a Helena se falaram por Skype. A Sheila disse:

“Olha, Helena, a vovó está te mostrando a paisagem daqui. Tem montanhas, tem ovelhinas lá embaixo. Já já a vovó vai dormir, porque aqui são 10h da noite, Helena!”

Mas a Helena já sabia muito bem que pra ser noite o céu tem que estar escuro.

“Vovó Sheila, você errou. Agora não são 10h da noite. Eu estou vendo, ainda é de dia, vovó. Você não vai dormir agora!”

Puxa, a singeleza das crianças!

É claro que a Sheila explicou que no lugar onde ela estava o dia corria diferente, não escurecia naquele horário. E foi então que a Helena pediu um presente daquele lugar exótico.

A Sheila já vinha pensando nisso. Por toda a cidade que passava, procurava um presente para a Helena e outro para decorar a casa nova da Marina. Não achava nada que fosse interessante o suficiente, que coubesse na mochila e não pesasse.

Passados uns dias, chegaram a Lucca, uma das cidades medievais mais turísticas da Itália. Lá a Sheila encontrou o presente da Helena e o guardou bem guardadinho para entregar a ela na volta para casa.

O mais bonito mesmo foi como uma exposição de quadros, com que cruzou inesperadamente, inspirou a Sheila a escrever uma cartinha para a neta, que postou via Face.

Dizia assim:

Quadro integrante da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017, que mostra o nariz comprido do Pinocchio

“Minha linda Helena,

Hoje a vovó visitou a cidade do Pinocchio de verdade!

Ele nasceu e viveu num pequeno povoado que pertence à região de Lucca, chamado Collodi. Aqui em Lucca, onde a vovó está, tem Pinocchio pra todo lado, em diversos tamanhos e formatos… muito lindinhos!

 Ahh… e tem muitas torres altas, parecidas com a torre da Rapunzel, acredita?

Então, resolvi subir em uma e descobri uma exposição com quadros do Pinocchio (muitos pintados por um artista local, com várias cenas da história do menino de madeira).

Fotografei alguns quadros só para você!!!

Tenho certeza que você verá essas e outras maravilhas do mundo com os seus lindos olhos amendoados um dia… muitos beijinhos.”

Diz a Marina que Heleninha adorou!

O curioso é isso: ser criança para fazer as coisas de adulto, e depois de adulto ver a vida com olhos de criança. Naqueles dias, tantas vezes, ao nadarmos no riacho, arrumarmos nossas lancheiras, brincarmos de mapa, vestirmos nossos uniformes ou jantarmos varadas de fome após chegarmos sujas em casa, alcançamos o estado de graça de voltarmos no tempo.

 

 

Esta é a oitava crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de  Pontremoli a Lucca, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, A Vareta do Diabo, clique aqui.

A Vareta do Diabo (uma ficção delirante)

“Sheila, prefiro ir com você pela floresta, não com elas pela estrada”.

“Ótimo. Vamos ver qual equipe chega primeiro a Pontremoli!”

“Elas, claro. É muito mais fácil ir pela estrada. Você sabe o caminho?”

“Fotografei este trecho do guia do alemão. Diz que é bem marcado, basta seguir as indicações.”

“Mas já faz tempo que a gente está andando e não vi nenhuma placa da Via Francígena.”

“O caminho é este mesmo, não teve outra trilha cruzando.”

“O que diz o guia?”

Trilha na floresta entre Berceto e Pontremoli, úmida, perfumada, a mais linda.

“Deixa ver… diz que alguns quilômetros depois da cidade de Berceto encontra-se o portal do parque floresta, que faz a divisa com a Toscana. Já fizemos isso. Depois segue-se por um bosque de árvores altas e então passa-se por uma pequena casa.”

“Acabamos de passar pela ruína de uma casa. Seria essa?”

“Deve ser. Depois há um mirante e a seguir um riacho. Depois do riacho começa a área dos cogumelos Funghi Porcini, que dão muito por aqui.”

“Olha lá na frente, Sheila, é o riacho! Se os cogumelos vierem depois, estamos no caminho certo! Nunca vi Funghi Porcini…”

“Ei, Márcia, que riacho bucólico! Vamos tirar umas fotos? Olha… na árvore tem uma placa dizendo que colher cogumelos dá prisão. Que horror!”

“Um exagero! Tem tanto cogumelo aqui que mais parece uma plantação! Iuhuu, estamos no caminho certo!”

“Não disse? A certeza me deu fome. Vamos parar para lanchar?”

“Já comi  todo o meu lanche andando. O que eu preciso agora é de um banheiro.”

“Os cogumelos estão aí pra isso, Márcia.”

“Pra lanchar? Está doida? Não viu que dá prisão?”

“Eu quis dizer que dá para fazer de banheiro na região deles!”

“Tem razão. Vou até onde sua vista não me alcance.”

“Marcinhaaaa… por que está demoraaaando?”

“Não estou ouvindo direeeeito!”

“Está tudo bem?”

“Ótimo, Sheiloca!”

“Ótimo… onde já se viu? Como pode ser ótimo?”

“Cheguei!  Sheila, você precisa ir para ver o que eu vi. Mais pra frente aparecem uns cogumelos super diferentes…”

“Estou comendo. Só quero ver esse ovo gostoso dentro do meu pão.”

“Você só pensa em comer… Mas se eu te contar o que vi, você vai correr para lá…”

“Não quero saber, está proibida. Preste atenção, temos uma longa descida e então avistaremos a cidade. Mas vamos passar por uma pedreira onde será preciso cuidado porque diz que tem muitas pedras soltas e o tempo está fechando.”

“Ok. Pra frente é que se anda. Fui.”

“Ih, comi com tanta fome que estou ameaçada de ter um piriri.”

“Vai nos cogumelos e aproveita para ver os que eu vi…”

“Marcinha, você comeu algum cogumelo? Porque parece que está tendo barato… já disse que não vou voltar para trás…”

“Não comi, mas não tiro aqueles da cabeça. Vamos voltar, Sheila, você tem que ver…”

“Não vou subir tudo isso de volta só porque você quer.”

“Você devia ver… eles têm um formato…”

“Do quê?”

“Formato ereto.”

“Você deve estar delirando…”

“Veja com seus próprios olhos. Têm formato fálico!”

“Não vou voltar, papo findo. Se perdi a oportunidade de ver, paciência. Já descemos uns três quilômetros e não vou subir de volta.”

“É que eu me arrependi de não ter aproveitado os cogumelos, e você podia mesmo voltar lá comigo.”

“Eles não podem ser comidos. Que insistência!”

“Não quero comer, Sheila, quero cheirar… é uma oportunidade de ouro.”

“Ah! E por que não fez isso quando estava lá?”

“Porque estava ocupada, mas acho que o cheiro deles me pegou…”

“Eu não vou cafungar cogumelos, já estamos na pedreira! E se concentra para não escorregar nessas pedras. Acho que essa história de cheiro deixou você biloló, Márcia. Até melhorei só de rir das suas asneiras. O que você fez com os cogumelos, afinal?”

“Quer saber mesmo? Eles me fizeram lembrar do maldito João, aquele sacana que me traía com a Silvia que estudou com a gente?”

A imagem diz quase tudo

“Como esquecer?”

“Fiquei com tanta raiva da imagem do João me atrapalhando em um lugar tão perfeito, que arranquei o cogumelo e o pisoteei com vontade, até ver que ele ficou bem esmagado. Descarreguei toda a minha raiva nele e estou me sentindo vingada!”

“Que nojo de você! Parece um bicho… onde já se viu? Não dava para controlar sua raiva por uma coisa que já rolou há tanto tempo? E ainda fica insistindo em voltar…”

“É que o cheiro que ele exalou me provocou… você é muito certinha, credo!”

“Não sou. Tanto que se fosse para eu me vingar do Abílio por causa daquela loirinha que ele arrumou, eu precisaria de uma faca para fazer picadinho do cogumelo. Que ódio dele! Estou considerando voltar…”

“Ah, só que agora estamos chegando em Pontremoli e já começa a pingar!”

“Você não regula bem. Márcia. Primeiro você quer voltar, e quando eu concordo você puxa o breque…”

“Você que enrolou! Sabe que eu sou diversão garantida, devia ter voltado…”

“Só eu sei! Márcia, queria combinar uma coisa com você. É sério. Essa história tem que morrer aqui. Não quero que você conte por aí, podem pensar mal da gente…”

“Posso publicar no blog Palavreira, vai fazer sucesso!”

“Não brinca, não. É segredo nosso. Vamos, Marçoca, já está anoitecendo.”

“Essa já é a rua do hotel. Olha o luminoso dele à direita!”

“Boa. Vamos atravessar! Escapamos da chuva por pouco.”

A bela Pontremoli, vista da ponte.

“Sheila, fica aí fazendo o check-in que eu já vou para o banho.”

(…)

“Você demorou muito nesse banho!”

“Delicioso.”

“Estou pesquisando no Google sobre cogumelos dessa região.”

“Achou a foto do funghi porcini?”

“Achei, e não parece com sua descrição… o que você viu foi outro…”

“Qual o nome do meu?”

“Veja a foto e diga se foi este…

“Sheiloca, é esse mesmo, exatamente!”

“Reparou no nome?

“Não…

“Phallus impudicus… Larga o celular que eu vou ler um detalhe para você: o cheiro asqueroso de algumas espécies do phallus impudicus  é afrodisíaco para as mulheres”.

“Olha, por isso eu fiquei…”

“Ele também é conhecido como a Vareta do Diabo. Isso diz alguma coisa?”

“Senti uma raiva demoníaca do João.”

“Nada disso, Marcinha. Isso significa que se você pisoteou a Vareta do Diabo, com certeza o coisa ruim está puto com você… Você vai ser castigada…”

“Aturar você já é castigo suficiente e o diabo tem mais coisas com que se preocupar. Vamos dormir, Sheila.”

“Boa noite. O dia de hoje entra para a história.”

“Entra, mas tem que ficar no puro sigilo. Pode deixar que não vou palavrear por aí. Boa noite para você também.”

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta invencionice da autora é a sétima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Foi feita durante o curso da Escola de Escrita Inventiva. Para ver as fotos do trecho de Berceto a Pontremoli, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Chocolate com Pistache, clique aqui.

 

Chocolate com pistache

De chocolate com pistache foi meu brioche do café da manhã. Um abuso! Mas era ele ou a fome. Depois me perguntariam se eu tinha perdido peso por andar 700 km, mas de que jeito se emagrece comendo essas coisas?

Poucos minutos antes, 6h30 da manhã de um domingo, éramos vistas paradas em uma esquina da cidade de Pavia, com nossas mochilas e chapéus, sem perspectiva de encontrar um lugar onde tirar a barriga da miséria. Quem, em um domingo europeu de uma cidade turística relativamente pequena, abriria uma cafeteria ou padaria àquela hora?

A brasileira metade holandesa que estava conosco alertava que tínhamos errado o planejamento e por isso estávamos naquela penúria. Aliás, parêntese para dizer que os europeus têm fama de nem sempre trabalharem aos domingos e ainda fazem sesta diariamente!

Estávamos com um problemão, pois como poderíamos seguir até a próxima cidade se saco vazio não para em pé? Tínhamos bobeado no dia anterior vendo uma apresentação musical na praça e, quando chegamos ao mercado, estava fechando as portas.

Por isso, quando ouvimos um barulho de motor e vimos a porta de ferro de um bar chamado Room 46 se abrir automaticamente à nossa frente, nos sentimos agraciadas por um milagre. Tínhamos parado por acaso naquele endereço da Via Dei Mille.

O lugar tinha cara de “night”, mas ele se abriu, e por causa disso esta crônica ganhou aroma de café, baunilha e pistache. Ah, e ela também está levemente mais aquecida pelo calor do forno, que também derreteu as defesas do meu corpo.

Chegue mais perto da tela para sentir que aroma!

O Room 46: bar à noite e cafeteria de manhã

Eu, tão acostumada a um pão com manteiga e café com leite no café-da-manhã verde e amarelo, vi uma vitrine cheia de brioches, e isso foi tudo o que passei a desejar: a delicada doçura daquelas iguarias de chocolate, pistache, baunilha, frutas vermelhas ou mesmo sem recheio, à escolha do freguês.

A vontade de encher minha boca com aquela iguaria tomou conta de todos os meus órgãos, que faltaram congelar naquele único momento de desejo de um sabor doce, quente e com certo tom de canela.

Disputávamos entre nós mesmas a vez de fazer o pedido no balcão daquela cafeteria alternativa.

Pedido feito, nos sentamos ansiosas nas cadeiras pretas da mesa preta, no bar moderno de parede de tijolos à vista e iluminação amarela, como crianças esperando um pedaço do bolo de aniversário. Nossos pedidos foram trazidos aos poucos, desobedientes à ordem em que foram feitos.

Primeiro veio o pedido da Adriana, o leite quentinho, o brioche cheiroso… Dissemos: “pode começar, Dri”, e ela começou, bem diante de nossas lombrigas e olhos esbugalhados.

Depois veio o da Renata. Ela se ajeitou na mesa ritualisticamente, esticou o pescoço e foi levando aquela delícia até a boca em câmera lenta.

Virei meu rosto e vi chegando mais uma bandeja. Eram os dois brioches da Kele, mais seu café ao leite. “Podem se servir, meninas”, ela dizia, mas nós sabíamos que aceitar significava devorar e seguramos nossa onda. Ela partiu seu brioche ao meio e vi escorrer dele o chocolate derretido… ai… e parece que ao fundo ouvi sua voz dizendo “vocês vão me desculpar…mas vou comer, então”. Coma, Kele!

A Regiane levantou-se nervosamente. Estava difícil lidar com aquilo. Foi ver o que estava acontecendo com o pedido dela. Voltou vitoriosa. Tinha tomado posse da sua bandeja e do pedido da Sheila. Agora só faltava a minha.

Eu tantas vezes vi gatos aos meus pés querendo o leite denunciado por aquele faro deles, os miados nervosos, mas eu não dava. Agora, de castigo, eu era a gata (auto-elogio) ronronando pela comida que o garçom não trazia para mim.

Aí chegou o meu pedido. O lugar estava cheio de senhoras conversando e de solitários, e a TV anunciava alguma coisa sobre o Hitler… Olhei para aquilo à minha frente e fechei os olhos para sentir. Vegetarianos têm olfato muito bom. Depois vi que a Adriana e a Renata me observavam. Dei um gole no café e então mordi meu brioche de chocolate com pistache. Um abuso! O melhor da vida. Foi um daqueles sabores que entraram na minha lista.

Infelizmente, não tínhamos tempo para mais um.

A ponte Coperto, cartão postal de Pavia

Agora precisávamos andar até Santa Cristina e, antes, encher os camel-back. Achamos uma bica no mesmo ponto onde tínhamos chegado no dia anterior de Garlasco, após andarmos por muitas horas às margens do rio Ticino. Agora o atravessávamos pela ponte Coperto, que divide a parte turística de Pavia de onde nos hospedamos.

O sol suave anunciava um dia lindo e a cidade ainda estava se levantando. Andamos por suas ruas silenciosas. Era mesmo uma cidade muito agradável! Sua luz ficou na memória, com o sabor doce e o brilho do rio.

Pavia, não saia daí. Um dia eu volto.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

Esta é a sexta crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Garlasco-Pavia, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora

 

Clique no link para ler a crônica anterior, O aniversário da princesa Kele.

O Aniversário da Princesa Kele

Não era um aniversário comum. Era o primeiro que eu passaria longe de minha família, amigos e do meu parceiro de vida. Desta vez, eu estaria na Itália, em uma viagem que, quando decidi fazer, não sabia o que e quem iria encontrar pelo caminho. Pesava deixar o conforto dos abraços das pessoas que eu mais amava.

O desenho do convite para meu aniversário foi arte da Sheila. Era bem divertido e tinha até coroa. Anunciava que a festa seria em um Castelo. Convidei várias pessoas do Brasil e durante a semana planejamos como seria a festa, repassando as pompas que um bom banquete merece.  Talvez usássemos a festa como artifício para esquecer o peso da mochila e aliviar o calor que o sol ardente provocava em nosso corpo, nos deixando “em bicas”.

Enquanto as peregrinas se preocupavam em decidir o que poderia ser meu presente, viajávamos dentro da viagem. “Que tal esse tênis branco, de brilho e peninhas, Kele?”, indagava a Sheila olhando a vitrine. A Regiane já tinha resolvido o seu, com minha concordância, e carregava há dias um presente pesado e ansiado: uma sombrinha.

Eu estava empolgada com a comemoração!

Investimos boas horas no planejamento de como fazer a festa na cidade que ainda não conhecíamos… quilômetros discutindo como organizar no Castelo de Orio Litta minha festa de aniversário. Foi uma alegria quando descobrimos que a cidade tinha, sim, um castelo!

Na manhã de 3 de julho de 2017, fui acordada com o “parabéns” animado das amigas que passaram a ser minha família, minhas parceiras e companheiras de aventura.

Deparamo-nos com um problema: se repetíamos nossos figurinos dia sim, dia não, como diferenciar nas fotos o grande dia do evento no castelo? A ideia que deu super certo foi colocarmos flores no cabelo, traduzindo para as fotos a importância da data. Ficou tão bom que até saímos no magazine da Francígena com o look.

 

A florzinha do campo enfeitou a princesa Kele

 

Sheila, princesa Kele e Renata acha minha de cima; Márcia, Adriana e Regiane na de baixo.

Ganhei flores e ainda pela manhã veio outro mimo: as peregrinas se revezavam por trechos carregando minha mochila, para que eu desfrutasse melhor o meu dia de princesa.

O trecho que percorreríamos era de Santa Cristina a Orio Litta, uma comuna italiana com menos de 2 mil habitantes. A maioria das cidades por onde passamos e nas quais nos hospedamos eram pequenas, e essa não seria diferente se não trouxesse a grande expectativa de ter sido escolhida como o local da comemoração.

A essa altura eu já estava carregada de histórias e lembranças das pessoas que passaram por mim e deixaram um tanto delas comigo. Como esquecer do presente dos donos de um mercado justamente naquele dia? Biscoitos champagne, xícaras de café quente, água… em troca disso, pediram que rezássemos por eles quando terminássemos o caminho… Comemos tudo com a fome dos simples, sentadas na calçada, sob um sol límpido.

Nenhuma outra pessoa passou por nós naquele trajeto. Éramos só nós seis, e nossa alegria enchia o caminho.

Já nos aproximávamos da cidade quando uma bicicleta veio em nossa direção. O ciclista, esbelto e simpático, logo nos mostrou o celular com a foto de nossas duas amigas, Adriana e Renata, que apressadamente lideravam e abriam nosso caminho e já tinham cruzado com ele. Apresentou-se como Luigi, nosso anfitrião, e não hesitou em tirar uma foto com nós quatro e entregar uma grande chave: “a cidade é de vocês”.

Achei exagero, mas como presente não se recusa, recebemos de bom grado uma chave do Castelo.

Realmente, fazia vista o deslumbre da construção que se ergueu diante de nossos olhos! A surpresa foi maior, no entanto, ao percebermos que era o local onde nos hospedaríamos! Da torre do castelo nos acenava a Renata, com ares medievais.

Na torre do castelo, a Renata, enquanto a princesa Kele (ao centro, de preto) sorri…

Nosso hospedeiro, Luigi, ao saber que era meu aniversário e para demonstrar sua fidalguia, apressou-se em me presentear com um bom vinho italiano e, sem cerimônias, aceitou participar de nossa grandiosa festa logo mais.

Quando caiu o sol – que também se atreveu a dar espetáculo ao se pôr, impecável -, a Marcinha encarregou-se da decoração com flores colhidas, e a Regiane, que tantas vezes me tratava como filha, conferiu se havia taças para todos, separando para mim a mais requintada delas.

Sheila cuidou do cardápio, abrilhantou-o. Foi a primeira vez que comi seu famoso risoto de peras com gorgonzola.

A Adriana protestou – queria cerveja e não vinho – mas não demorou muito a se render à harmonização dos brindes e sorrisos dispendidos naquele encontro. Ah, ela foi a DJ: Legião Urbana na festa da princesa.

Apesar do convite ter rodado muitos grupos de WhatsApp e muitos amigos brasileiros terem sido convidados, compreendi as ausências justificadas pelos inúmeros quilômetros que nos distanciavam. Responderam-me com carinhosos parabéns, “mas desta vez não vai dar, Kele”, ou “não tenho como viajar agora, Kele”, ou ainda, “quando for em um Castelo mais pertinho eu juro que vou, amiga”. Não faltaram mensagens, vídeos, “parabéns” dos que faltaram.

O Luigi acabou sendo, então, o único participante externo da festa de aniversário no Castelo… e também o mais ilustre. Era o equivalente ao prefeito da cidade! Além disso, era também um exímio ciclista e professor de uma escola infantil. Com tanto ecletismo, não faltaram assuntos no jantar, que se estendeu por deliciosas horas, graças ao inglês impecável e elogiado da Renata.

Um resumo das convidadas e dos presentes da princesa

Os presentes não eram muitos nem pesados (uma condição!), mas valiosos, incríveis! Os cremes, os colares e a sombrinha – ah, a sombrinha! – foram úteis e fizeram os dias seguintes serem mais coloridos e perfumados.

Naquele aniversário eu não me senti mais velha. Talvez tenha experimentado um sentimento nômade e um transbordar de vida que independe de idade.

A certeza que tenho é que aquele dia foi vivido intensamente e aqueles presentes e presenças encantaram, temperaram e transbordaram minha alma.

A minha gratidão às minhas amigas ainda ecoa em mim, por terem feito de um dia, uma história. É esta a história que agora divido com vocês, exatamente um ano depois.

 

Galeria de fotos
(clique em qualquer uma para ampliar)

Kele Morais  funcionária pública, peregrina e… princesa

 

 

Esta é a quinta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Santa Cristina a Orio Litta, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, “O Uivo do Monstro”, clique aqui

O uivo do monstro

Nicorvo deserta

Para mim, sem dúvida, daria para gravar um bang-bang em Nicorvo. Ela é feia. É empoeirada. Tem 400 habitantes e é quase sem cor. Uma cidade que para nós foi como um vira-latas esquelético, sofrido, com sarna e dentes afiados, que corre atrás do próprio rabo e nunca late. Tem pelos curtos e falhos e, de bom, carrega um sininho na coleira.

Na imensa planície de Parma (Itália), Nicorvo se deita atormentada por insetos no brejo das plantações que a rodeiam, de arroz, trigo ou farro, sabe-se Deus.

Ao seguirmos a pé para lá, não sabíamos o que nos esperava. Se soubéssemos, teríamos cancelado a caminhada. Mas não. Inocentemente fomos trilhando enquanto o monstro se armava. Enquanto partíamos da acolhedora Vercelli, o tal se formava não se sabe de onde, mas já zunia seu vento silencioso.

Andando, nós quatro tivemos uma das conversas mais íntimas de todo o mês que passamos juntas. Cada uma falou sobre a morte de seu pai. As histórias foram ouvidas sem pressa, sentidas. Cada palavra de tristeza foi deixada vagando entre aquelas plantações.

Logo, dois avisos dissiparam as lembranças pesarosas. O primeiro: como se antecipasse o suspense do que viria, toda a água de nossos cantis se acabou. O segundo e principal aviso: o tempo fechou de tal modo que nos calou completamente.

Já andávamos, àquela altura, olhando o chão, de cabeças baixas, desanimadas e com pressa de chegar. Parecia que tínhamos ido até o fundo de uma cisterna vazia. Agora estávamos perto. Ouviam-se só os passos cadenciados das botas, distantes umas das outras, e a sensação do barulho que não se concretizava, como a vibração longínqua de alguma garganta muda.

A Regiane, por formalidade, achou por bem fotografar o lugar para espantar o arrastado do dia e, ao levantar os olhos e focar o horizonte, surgiu na tela a ameaça da qual não teríamos como escapar…

A foto é ruim, mas o fato é real: este foi o registro do furacão

“Olha, olha o que vem vindo… um furacão!”

Não tínhamos opções. Não havia onde se proteger naquele descampado e só poderíamos sair da estrada se afundássemos no brejo das plantações, à direita, ou se nos agarrássemos às poucas árvores à esquerda – mas furações arrancam árvores. Na estrada, voaríamos pelos céus.

O tempo fechou ainda mais e vimos o furacão se aproximando. De longe, ele parecia um sino de igreja invertido … e era bonito.

Cada uma rezou do seu jeito. Eu achei que não faria muita falta, mas pedi a Deus que me deixasse aproveitar mais a aposentadoria que mal começara e lamentei pelo sofrimento dos meus. A Renata escreveu “mamãe ama você” para a filha, no aplicativo do celular, e enviou, emocionada. A Regiane também pensou na filha, e a Kele em muita gente.

Sabíamos que não daria tempo de chegar à cidade com nossas pernas e minutos curtos, porque o monstro estava cada vez mais perto. Como seria bom se as mochilas fossem asas ou se aquilo fosse a gravação de um bang-bang e nos bastasse galopar em puros-sangue até alguma tábua de salvação!

Ponderamos que antes da cidade havia um cemitério e se o alcançássemos poderíamos achar alguma construção para nos proteger, mas pelo andar da carruagem nem mesmo conseguiríamos chegar nele vivas – com o perdão da ironia!

Vinha vindo um furacão como nunca imaginamos e o tempo se fechava para a tempestade. Os pingos começavam, ventava e trovejava. Contra isso é que vestimos pela primeira vez os corta-ventos que trazíamos, como se eles pudessem… deixa pra lá.

Provavelmente nunca mais encontraríamos com a Sheila e a Adriana, as duas irmãs peregrinas que chegaram a Nicorvo algumas horas antes, vindas de Milão.

A estação de trem da pequena Nicorvo

As irmãs

Quando Sheila e Adriana desembarcaram, assustaram-se com o mau tempo e pensaram nas amigas à pé. Acharam a cidade morta, sem gente nas janelas.

Ninguém atendeu à porta da casa paroquial que nos abrigaria. Aquelas ruas não tinham placas e as casas não eram numeradas. A Prefeitura estava fechada. Não havia nem sombra de crianças. Os motoristas dos carros não paravam. Ninguém se envolvia. Ficaram as duas na rua à espera de uma alma boa.

O homem que surgiu para abrir a porta deve ter saído de um bueiro, ou talvez estivesse escondido atrás do poste. Deu-lhes instruções apressadas em um italiano para turista não entender, mas, pelas feições dele, não podia isso, não podia aquilo, não podia… não.

As horas de fome das irmãs passavam contraídas. Não acharam ali padaria, mercado, restaurante ou venda alguma aberta e só conseguiram comprar meia dúzia de ovos, por 2 euros, de um romeno com quem conversaram pela língua da penúria. Ele disse que Nicorvo era assim mesmo, mas revelou que o pub abriria à noite – “isso, se o furacão não chegar”, ressaltou. Mas as duas não entenderam e foram tranquilamente cozinhar os ovos para nos receber logo mais.

E de volta à estrada…

Acho curiosa a sensação de se sentir espreitada pela morte e digo com conhecimento de causa, porque não foi a primeira vez. Traduz a seriedade única do “agora é o fim”. Os pensamentos sobre como vão ficar as coisas, as desordens, as perdas, os amores, as dores, a puxada de conta passam rápido ante a magnitude do que nos espera e ficamos ali, à mercê de um destino. O que tive não foi de forma alguma medo, mas uma postura de me soltar para o inevitável.

Na hora H, pensamos tudo o que tínhamos para pensar tão rapidamente que em pouco tempo voltamos a andar na velocidade de sempre, à espera do abraço. Não havia o que fazer. Não corremos às árvores nem fomos ao brejo.

Pode ser que, de tanto nos abismarmos, tenhamos perdido o interesse do monstro. Depois de tudo, o furacão fotografado nos virou as costas. Desfez-se lentamente e não se sabe ainda em troca do que fizera o blefe de surgir.

De um minuto para outro, nada foi o que era para ser. Ele se esvaiu. Deve ter vindo só para negritar nosso desamparo, para sublinhar o tema do dia, antecipar o tom obscuro e ranzinza da cidade com cara de vira-latas e nome de pássaro.

Assim como veio ele se foi e tudo aconteceu tão rápido que, quando olhamos de novo para o céu para conferir, nosso algoz já tinha sumido.

Foi como se tivéssemos tido um pesadelo coletivo… como se tivéssemos feito parte de um show macabro.

A sorte é que o tínhamos fotografado para provar às outras o motivo de nossa alegria quando as encontramos.

Fomos ao pub só porque, afinal, um ovo não matava a fome de ninguém e precisávamos comemorar.

Ao fim, o pub era ótimo… o sininho da coleira. A Sheila e a Adriana nos contaram as aventuras de terem chegado ali em uma locomotiva tão antiga que dava muito, mas muito medo de que ela tombasse nas curvas – outro monstro longilíneo engolindo medos pelos trilhos.

Nós detalhamos nossa praticamente morte e ressurreição.

Qual o jeito de chegar em Nicorvo sem sentir medo não ficou sabido.

Quando voltamos pelas ruas silenciosas, apreciando a paisagem com olhar de sobreviventes, nos parecia que o cachorro bravo estava sonhando com a namorada. O dia assustado pelo furacão, pelo trem caquético, pelo risco de não termos onde dormir e pela sombra da fome fora neutralizado pela noite no cenário de sallon que redimia os pecados da cidade-bicho.

Não demorou para pegarmos no sono que nos repararia para seguirmos rumo à próxima aventura.

Nosso destino do dia seguinte, Mortara, tinha no nome algo de funesto…

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

Este viajandão baseado em fatos bem reais é a quarta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Vercelli a Nicorvo, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Fio Maravilha, clique aqui

Fio Maravilha

Não falo do fio dental odontológico que usamos diariamente, do fio da navalha e nem da música do Jorge Benjor inspirada em um jogador de futebol. Mas já que toquei neste assunto, vou aproveitar a deixa e revelar em primeira mão que o doutor Sócrates participou de nossa aventura na Itália.

Sim, ele estava lá. Segura esse lance!

Muitas vezes nos perguntavam de onde éramos: Do Brasil, de Ribeirão Preto. “Não conheço”. De São Paulo. “Oh, é uma cidade muito violenta!”, diziam.

Até que um dia veio o insight de falar na linguagem do futebol. Quando questionada de onde éramos, devolvi perguntando se meu interlocutor conhecia o jogador Sócrates. “Sim, claro, ele jogou na Fiorentina!”, respondeu o homem com o olhar brilhando. “Somos da cidade dele, Ribeirão Preto”. Funcionou tanto que depois de um tempo já respondíamos direto: “Somos de Ribeirão Preto, cidade do Sócrates”.

Esse “fio maravilha” da nossa cidade nos aproximava dos italianos.

Feito o desvio, volto ao fio desta crônica, que foi visto em nosso alojamento de Point Saint Martin, o único que oferece lavatórios para os pés, uma espécie de pia de chão cuja ducha suaviza as dores. Depois deste banho é que se cuida das bolhas e faz-se os curativos.

Se já está pensando que passamos fio dental nas bolhas, engana-se. O caso é outro, e para contá-lo, apresento seu protagonista, um dos italianos que adoraram saber que éramos conterrâneas do Sócrates. O nome dele é Jácomo.

Vista de fora do Castelo de Bardi

Ele era um avô de uns 65 anos, que dividia a vida com a mulher, Pepina, com quem percorria a pé parte de seu país, sempre que podia. Nos conhecemos no trajeto cheio de apiários entre Vèrres e Point Saint Martin, que incluiu nossa visita ao maravilhoso castelo de Barbi, locação do filme “Vingadores: A Era de Ultron” (2015). Andamos juntos mais à frente outras vezes.

Enquanto redijo essa grande explicação, as outras peregrinas estão relaxando em suas camas no fim da tarde, à espera da Regiane voltar do vestiário feminino plenamente embelezada, para depois irem jantar. É quando a própria abre a porta, com a pressa de quem foge de um fantasma zombeteiro. Com cara de criança, o corpo dobrado para frente, ofegante, sussura atropeladamente coisas do tipo “vocês não vão acreditar”.

“O que houve?”

“É que eu vi o marido da Pepina de cueca.”

“De cueca? Uia, que folgado de andar por aí assim!”

“Ele estava indo do vestiário para o quarto deles…”

“Também não é para tanto estardalhaço, Regiane, menos…”

“Eu nem consigo falar de tão surpresa!” – ela ria como se fosse proibido rir, sabe?

“Mas surpresa com o quê, nunca viu homem de sunga no clube?”

“É que a cueca dele era fio dental! Cuequinha preta e fio dental!”

Ohhhh!

“Ao vivo eu também nunca vi homem de fio dental”.

“Nem eu…”

Ela conta que passava pela área de convivência quando percebeu alguém andando do outro lado, já pertinho do quarto do casal. Olhou para ver quem era e cumprimentar… e foi aí que  viu. Ele nem fez menção de se cobrir, disse “ciao” e entrou no quarto tranquilamente.

“Não esquenta, Regiane, aqui eles não tem esses pudores como a gente lá no Brasil”, explica Renata, a viajante internacional.

Apiários por todo o caminho

Nós ficamos como abelhas zunindo.

É público e notório que os italianos são sedutores (apesar de que não cruzamos com nenhum daqueles homens dos filmes por lá. Só um, lembrando bem, ou dois, transitando pelas cidades). Nos grandes centros, eles se vestem de calças justas, barras dobradas deixando aparecer os sapatos – um pula brejo cool. Falam com as mulheres olhando muito diretamente nos olhos, e tascam seus “piu bela” a três por quatro, quando não estão de cara amarrada, o que é bem comum.

Mas para nossa cultura pseudo libertária e tecnicamente conservadora, nosso brasilianismo machista em que só as mulheres podem e devem ser sedutoras, nossa cultura de apego à juventude e à beleza, em que a feiura e velhice excluem outros méritos – sensualidade entre eles – ver o sessentão de fio dental pretinho soou inusitadíssimo.

No jantar, livres da possibilidade de sermos ouvidas, rimos ainda mais da situação, da surpresa, da novidade, como crianças quando vêem algo que é proibido. “Não pode falar palavrão, menino”. E ele fala. Faz chacota, ri, se rebela. Se as mulheres lutaram tanto pelo direito de usarem calças, por que criticariam o homem que usa saias ou fio dental?

É esse o fio maravilha dessa história, sobre o qual equilibraram-se nossos preconceitos e curiosidades naquele dia, na pacata cidade que nem deve ter jogador de futebol de peso. Ainda mais um jogador mundialmente famoso e que promoveu a democracia no futebol.

Pensando bem, ver com naturalidade o fio dental masculino é um ato de democracia.

Nos dias seguintes, ainda cruzamos algumas vezes com o Jácomo e a Pepina, sempre simpaticíssimos, de bom papo, ambos prestativos, vestidos com suas calças de trilhas.

Viraram musos.

Olhávamos para ela e imaginávamos (sonhávamos, seria mais justo dizer) que talvez ela estivesse de corselet e calcinha de renda vermelha por baixo da roupa de viagem, subvertendo a ordem estabelecida de mochila exígua. E pensávamos no quanto a vida sexual deles devia ser divertida. Eu, especificamente, refleti muito sobre minha calçarola da vovó.

Para você ver que nesse mundo a gente sempre pode pensar no contrário do que é, sempre pode fugir das ditaduras sem sentido.

Isso não pode. Não mesmo?

Sou inteligente. Sou mesmo?

Vivo presa. Vivo mesmo?

Para você ver que nem tudo é tão reto quanto pensamos.

E ver que perder, e depois ganhar, para de novo perder, e mais uma vez ganhar, é um dos melhores regalos que essa viagem nos dá.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

Galeria (clique em qualquer foto para ampliar)


Este fato real é a terceira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Vèrres-Point St Martin, onde aconteceu a história de hoje, visite o Peregrinas Mundo Afora.

Para ler a crônica anterior, Sobre Coisas que Dão na Barriga, clique aqui

 

 

 

Sobre coisas que dão na barriga

Dentro de 4 horas começaríamos nossa peregrinação pela Itália e meu abdômen fazia barulhos estranhos.

O medo.

Fui para o banheiro da pousada de Aosta no meio da noite, enquanto a Kele dormia. Não tínhamos tido entreveros desde que saímos do Brasil, mas eu sabia – só eu sabia! – o quanto tudo aquilo me punha em estado de alerta, como uma personagem de filme de terror em um corredor escuro, ouvindo portas rangerem, passos lentos, vendo os pingos da tempestade escorrerem na janela… e ainda aquele frio… o arrepio gelado escalava minhas costas.

Eu era um bicho acuado, o filhote que não sabe descer da árvore. Não se tratava só de vencer os 750 km a pé, mas de tudo… do suspense, da timidez, de pousar os olhos em um fantasma horroroso e conseguir rir dele: “você não é de nada, cara!”

O banheiro charmoso não me dava chances reais de fazer dele um cenário de terror, nem chovia lá fora como minha mente insinuava. As acomodações eram ótimas e eu podia considerar que tinha acertado na minha primeira reserva pelo Booking!

A pousada ficava em um prédio antigo e bem localizado, de paredes grossas, portas baixas, corredores estreitos, escadas acentuadas e iluminação amarela. Não tinha recepção. Entramos nela, saímos e não vimos ninguém por lá. Um jeito muito quieto de fazer as coisas.

Isso eu recapitulava no banheiro, tentando domar o piriri  e me acalmar.

Se a Kele acordasse, acharia uma companheira serena como uma montanha. Eu diria: “não estou conseguindo dormir” e abriria um sorriso terno, como se tudo estivesse ótimo. Mas a montanha tinha coração de vulcão e esperava, com a viagem, mudar seu padrão de comportamento para algo mais leve, transformar-se em duna.

Minha barriga dava nós.

Se conseguisse encarar aquilo, tentaria me livrar de alguma de minhas amarras. Seria o dia de me permitir errar sem culpas. Pensava em ir mentalizando “você pode errar, você pode errar”, como se dissesse um mantra.

Até tinha feito um roteiro de coisas que eu queria conseguir naqueles 30 dias, do mesmo jeito que se faz roteiro de pontos turísticos. Talvez por isso mesmo tenha surgido aquele medo medonho.

Eu queria seguir o mapa do tesouro, sendo o tesouro eu mesma.

Não queria ganhar coisas, mas perder, me esvaziar.

Esperava respirar o novo, prender o ar e deixá-lo depurando minhas células.

Observar os lugares feios e os bonitos sem paixão. Não tomar o melhor vinho, mas um qualquer. Não queria mais me encolher, nem controlar.

Não queria me amedrontar mais e, não obstante, indiferente a meu querer, o bicho estava bem ali comigo no banheiro, de madrugada, grudado.

Dentro de poucas horas, nos juntaríamos ao grupo e iríamos a pé para Châtillon, a 34 quilômetros daquele banheiro de Aosta. A Regiane seguiria de trem com a Vera, que estava machucada, e levariam parte de nossas bagagens, o que aliviava em meio quilo o peso programado para minhas costas e faria enorme diferença no maior trecho de montanha de todo o trajeto.

Mesmo tudo parecendo certo, eu só pensava em pular esse dia e  começar a trilha no próximo.

Vista de Aosta do caminho para Chatillon

Mas fui, levada pelo rio da vida e só parei de seguir adiante um mês depois, quando chegamos a Siena.

Uma fresta sempre me impele a ir em frente.

Aliás, continuo na trilha da Francígena, como um fantasma andarilho. Parte de mim fica vagando por lá, medindo as perdas, colhendo os ganhos, me alimentando com os flashs do que vivi.

Essa foi uma daquelas viagens feitas de estradas mágicas, que vão se colocando sob nossos pés. Pensamos já estar andando por outra, ou em um shopping, mas de repente a vemos, a cruzamos, andamos nela mais um pouco. É uma leveza que impregna e que me ajudou, sim, a dar uns passos novos.

No trajeto, eu me espantava com as reações corajosas das outras peregrinas.  Às vezes eu passava horas andando e refletindo sobre o quanto o medo me atrasava a vida, e também no quanto aquele pulsar de auto-preservação me fazia bem.

Descobri que o medo me levava para longe do confronto, amornando-me, esfriando-me, e que há menos liberdade para quem teme. Ele ocupa muito espaço.

E eu queria fazer minha re-ocupação. Queria muito ter feito, só que desta vez não deu.

Talvez eu consiga um pouco mais na próxima. Para ela, e para bater pernas por aí, tenho planos de estampar em uma camiseta a frase do Confessio Fraternitatis com a qual me emocionei ao voltar para casa: “Ir ao encontro do sol nascente, com a cabeça descoberta, o coração aberto e os pés nus”. Vou dar um nozinho nela e deixar a barriga aparecendo.

Será meu troféu,  não por ter ganho a batalha, mas pela bravura da luta em terras tão adversas.

 

GALERIA (clique nas fotos para ampliá-las)

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


Esta é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Aosta-Chatillon, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora.

 

 

 

Leia o texto de apresentação desta série: Histórias de peregrinas pedem passagem

Nosso incrível exército de Brancaleoni (com ‘i’ mesmo)

Bastou caminhar um dia na Itália, de Aosta a Châtillon, para aprendermos que fazer trekking é entrar para o exército. Servimos na via Francígena precisamente de 22 de junho a 19 de julho de 2017,  onde aprendemos a ter coragem diante dos coelhinhos brancos, disciplina para lavar diariamente as roupas sujas, tenacidade para comprar comida no supermercado, estratégia para programar o dia seguinte e resiliência para madrugar.

A rotina espartana era cumprida sob o comando de uma provável descendente do líder do Incrível Exército de Brancaleone (já disse que o sobrenome da Renata é Brancaleoni?). Passados quase 20 dias de quando pusemos nossos pés na Itália, cruzamos o trecho de Costamezzana a Fornovo. Já estávamos bastante acostumadas umas às outras, noves fora as brigas.

Nossa Brancaleoni – com i – não era trapalhona como o famoso personagem do cinema, nem seu batalhão era  maltrapilho como foi o exército das telonas. Tínhamos tudo de boas marcas, mas ainda assim não passávamos de mulheres sem glamour e grana, sem sapatinhos de princesas e muitas vezes com uma fome incontornável.

Vocês terão fortes emoções se refizerem conosco o caminho por onde marchamos com bravura quase dez dias antes do fim de nossa missão na Itália.

Estamos a caminho de Fornovo, conhece? Foi a cidade onde a Força Expedicionária Brasileira rendeu a Divisão Alemã e a Resistência Fascista na 2ª Guerra Mundial. Brevemente pisaremos o chão onde os pracinhas brasileiros foram heróis e provavelmente seremos carregadas no colo ao chegar, dada a glória da histórica batalha vencida por eles! Nossa expectativa é grande: como seremos recebidas lá tantos anos depois do memorável confronto, nós, as brasileiras do incrível exército de Brancaleoni?

Família da Stefania, que recebeu tão bem essas estranhas peregrinas

Alguns quilômetros antes de chegarmos à cidade, tivemos uma clara demonstração do que nos aguardava. Ao nos identificarmos a uma família local, fomos convidadas a descansar em um haras. A Stefania cercou-nos de cuidados e serviu-nos o verdadeiro parmesão de Parma, água com gás, café, pães caseiros e uns frios bem finos, além de chocolates. Saímos de lá para nossa marcha mandando beijinhos e abraços para nossos anfitriões. Pura fama, como não convém a graves soldadas.

Seguindo nosso caminho, ladeamos por um bom tempo um rio poluído e seco e passamos por uma grande cervejaria desativada, até que um espinho furou o pé de uma de nós.

Como o espinho conseguiu atravessar o forte solado da bota? Suspeitamos, refletimos com nossos altos QI e entendemos que aquele caminho ainda estava cheio de truques e perigos desde a 2ª Guerra! Macacos nos mordam! Por sermos o máximo, provavelmente desviamos instintivamente das armadilhas e bombas armadas naquele bosque para nos capturar, restando só o ataque do espinho.

Não desanime com isso porque nós, destemidas, bravas, brasileiras, misses daquelas estradas de terra, vencemos tudo, tiramos o espinho do pé, seguimos em frente, tomamos suco e agora estamos nos aproximamos de Fornovo! Cruzamos a bela ponte sob um enorme rio seco e adentramos na praça de Fornovo como se fossemos heroínas. Mas…

Cadê as trombetas?

Os habitantes não deram as caras. “Uai”, diriam os mineiros.

Obviamente estavam entrincheirados em suas próprias casas e comércios fechados, espionando e temendo a corajosa divisão feminina brasileira do incrível e famigerado exército de Brancaleoni! Era dia 8 de julho de 2017 e o termômetro marcava 42ºC, com sensação térmica de 50ºC.

Não nos intimidamos pela cidade fantasma e atravessamos com vigor sentido Respicio, especificamente onde décadas antes ficava a divisão alemã.

Castigadas pela sede, sob um sol que não remete em nada ao frio congelante sofrido pelos pracinhas, fomos arrastando nossas mochilas com frutas compradas na promoção. Seguimos pela estrada deixando para trás e para nunca mais a cidade de Fornovo, a única do trajeto que não conhecemos por dentro.

Muitos, muitos passinhos sob o sol

O asfalto mole grudava nas nossas solas e soltava grandes ondas de calor. Do acostamento víamos os motoristas de carros que passavam em alta velocidade, com cara de quem se pergunta onde guardávamos nossos canhões… Na mochila, claro, onde mais?

A paisagem já se convertia na da Toscana, mas a beleza não estava amenizando a fome, a sede, o cansaço e a moleza do calor desértico. O caminho não tinha sombra e não dava trégua. A água do reservatório estava entrando em ebulição. Comandante, o que fazer?

“Vamos parar todas, tirar nossas meias e pôr nossos pés para cima”, disse a certeira Renata… e obedecemos.

É isso que se faz na guerra: põe-se os pés para cima, não sabem?

Achávamos que o alvo Respicio era mais perto… ou será que nossos mapas estavam errados? Se fosse isso, não chegaríamos nunca! Que roubada, o que fazer? Pensamos um pouquinho com nossos miolos moles e, de tão sensacionais que somos, logo montamos a estratégia de deixar Respicio de lado e seguir direto para o alojamento de dois andares reservado pelo Booking, que tinha sinalização na estrada. Vamos deixar essa história de guerra pra lá.

Resolvido!

No entanto, o cansaço permanecia, por isso, de novo consultamos nossa suprema capitã Brancaleoni sobre o que fazer. Solene, de blusa justinha amarelo Brasil, ela virou-se para a cabo Adriana com aquele charme das protagonistas:

“O que você decidiria, cabo Adriana, se estivesse liderando esse exército?”

“Pararia a tropa na gelateria, senhora”.

Só inteligência pura para ter tamanha sacada naquele momento. Obedecemos, mas, se por um lado lá tinha gelato, banheiro e água fresca, por outro tivemos de falar grosso e mostrar nossa excelência moral, estratégica, física e espiritual para aquele soldado raso que nos atendia fazendo cara feia.

O haras

Vencida mais essa batalha, passamos nossos protetores solares, gloss – não sem antes tirarmos uma selfie – e marchamos para a pousada… ops… acampamento.

Quando já tínhamos espertamente tomado nossos banhos, atualizado o Facebook, lavado nossos uniformes na máquina e contado carneirinhos, fomos servidas de um jantar regado a vinho vinagrado, torta com pimentas fortes e inteiras, salada mal temperada e um macarrão “vá lá”. Após a sobremesa frugal, bradamos de mãos dadas nosso grito de guerra (Por hoje chega!!!) e caímos nas camas fofas.

“Amanhã vai ser outro dia. Essa batalha foi vencida!”, decretou a cabo Adriana.

Pensando no risco que corremos de termos sido envenenadas no jantar, uma de nós trocou mensagens com o primo Douglas, confessando em tempo real as agruras da guerra e sobre estarmos coogitando desistir de tudo, pois para o dia seguinte estava prevista a perigosíssima subida dos Apeninos. Ele não se conformou e decretou:

“Prima, diga a todas que subam os Apeninos. Vocês são integrantes do incrível exército de Brancaleoni e não desistem nunca. O Brasil torce por vocês.”

Dá arrepios só de lembrar. Com essa injeção de ânimo, na madrugada seguinte lá estávamos nós na estrada de novo, gatas de botas, subindo a ladeira.

A coisa mais linda de se ver!

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

 

Este delírio é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Costamezzana-Fornovo, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora