Categoria: PALAVREIRA

Escritaterapia

Já há três domingos não escrevia.

Tenho esses períodos de silêncio auto infligido que nunca são por falta do que dizer (ao menos não na forma escrita), mas por medo (sou PHD nisso!). É que às vezes são tantos e tão difíceis de identificar os sentimentos que preciso descarregar na escrita – minha eterna terapia – e tão poucas as palavras para descrevê-los corretamente… E tem a exposição, o julgamento alheio (confesso! me apavora), as más interpretações, os egos feridos que reagem instintiva e, portanto, violentamente (não é certo que criticamos no outro o que não queremos enxergar dentro de nós?)…

Sempre digo à querida Marcinha Intrabartollo (um talento em processo de auto descoberta como escritora) que escrever para ser lido é, antes e mais do que tudo, um ato de extrema coragem! Porque quando escrevemos algo que toca o interior do outro – mesmo quando banalidades construídas para entreter o tempo – ficamos nus. E toda nudez é vulnerável, no literal e em todos os mais simbólicos e intangíveis sentidos.

Como sei disso? Porque, como toda leitora apaixonada, quantas vezes não me quedei perplexa, ao final de um texto ou livro que me alcançou a alma (não é, Luciana Gerbovic?), imaginando como era possível outro ser humano alcançar tão dentro de mim sem me conhecer? E quando caço a biografia desses autores quase sempre desacredito das imagens de divulgação que os mostram tão normais, quando já acho que não, tão gigantes me parecem em sua valentia!

Mas estou tergiversando. Ocorre que estou aqui sentada, vomitando esta escrita, obrigada por mim mesma a ter coragem!

Porque há dias sinto como se todos os sentimentos que venho, há tempos, toureando, na tentativa de manter algum equilíbrio, tivessem se rebelado e me feito refém. Não aceitaram, durante toda a última semana, ficarem quietinhos dentro de mim enquanto eu tocava a vida normalmente. Assumiram o controle, saindo pela minha boca em forma de gritos ante qualquer contrariedade, em espasmos de raiva que já não consigo dissimular ou aliviar com tentativas risíveis de meditação… em lágrimas de desesperança que há tempos não seguro mais ao assistir ou ler notícias que provam nosso fracasso como humanidade.

Pode ser coincidência ou auto sugestão, mas calhou desse descontrole ter começado no mesmo dia em que visitei uma terapeuta nova, que me espetou agulhas enquanto explicava o que cada ponto em minha orelha dizia sobre mim. Saí da sessão com um vidrinho de elixir (não sei se floral, homeopático ou coisa que o valha) que prometi tomar a conta-gotas, três vezes ao dia (estou tomando), mesmo convencida de que não me curaria e que minha orelha não havia entregue nenhuma novidade.

A novidade, hoje, é que acordei decidida a encarar o medo da minha terapia escrita e dizer, a mim mesma e a quem interessar possa, que: sim, estou triste! Sim, tenho medo. E tenho raiva. Muita raiva! E não é de hoje…

E escrevendo, como sempre, vou alcançando alguma compreensão de mim. Como a de que não estou triste só por mim. Que meu medo por mim mesma é, sim, gigantesco, mas também é por muitos – os pobres, os paupérrimos, os negros, os índios (ah! Os índios…), os enlutados… E a raiva – meu Deus… nem consigo dizer de que ou de quem – não é exclusividade minha e as redes sociais estão aí para provar.

Tanta dor vendo imagens de animais incinerados – alguns ainda abraçados às suas crias – porque não conseguiram fugir do fogo em nossas florestas. Fogo cada vez mais descontrolado desde que o atual governo começou a desmontar o aparelhamento e a legislação ambientais que as protegia em algum nível.  Tanto medo de chegar àquele temido momento de não ter mais como saldar as contas em uma economia em crise e com a legislação trabalhista flexibilizada! E tanta, mas TANTA RAIVA por constatar que os egoístas de plantão nos cargos públicos seguem aproveitando-se de calamidades para roubar… que defensores da violência e detratores dos direitos humanos têm coragem de evocar o nome de Deus em suas causas desumanas!

Tenho raiva, sim! E tenho muito medo… e tristeza – mansa, mas está lá. E lamento que, por mais que esta escrita tenha intenção terapêutica, não venha compartilhar alguma mensagem positiva, ou trazer alívio e nem respostas para as questões que levanta. Traz, sim (como toda terapia) mais questões. Por exemplo: por que nos sentimos tão solitários mesmo acompanhados? E tão desconectados mesmo nos comunicando tanto? Sou a única a interpretar como sendo só meus tantos sentimentos que têm convulsionado o mundo todo, engolfando todos numa nuvem quântica? E se assim não é, por que continuamos procurando soluções individuais para problemas coletivos?

Alguma hipótese?…

Chuva de presente

Sabe o que é acordar às 6h da manhã, abrir uma janela do seu apê e receber em cheio, no rosto, um bafo quente fedendo a queimada? Aí você olha pra um horizonte embaçado, como se envolto em neblina, e percebe que é fumaça mesmo. Olha as lindas árvores plantadas no estacionamento do vizinho e não vê uma folha sequer se movendo.

Ontem foi assim: ar quente, parado e impregnado de fumaça! Igual tivemos anteontem… e antes de anteontem  – aqui na minha cidade do interior paulista e no país todo.

Há semanas meu nariz segue ressecado e machucado por dentro, coçando o tempo todo, a fabricar espirros na tentativa de expulsar o que quer que esteja entrando organismo adentro junto com o ar respirado. Previ mais um dia inteiro como refém do único cômodo do apartamento abençoado com ar-condicionado – nosso quarto de dormir, onde já deixamos, a noite toda, um umidificador ligado pra tentar reequilibrar a umidade do ar (condicionado ou não).

Em dias assim penso, compadecida, nas pessoas que não contam sequer com ventiladores pra minimizar, um pouquinho que seja, a asfixia destes tempos. Rezo a Deus por eles. Por todos nós também. Jogo baixo, pedindo chuva de aniversário – não garoa ou “pancada” de verão, mas chuvão mesmo, ainda que escurecido por carvõezinhos – pra lavar tudo, até nossa alma ressentida.

E eu que sempre condenei barganhas com Deus, prometo não querer mais nada de presente se Ele nos enviar as águas de setembro. Prometo sequer abrir aquele espumante que guardamos, há semanas, no baldinho do carrinho de bebidas em imbuia herdado da minha sogra.

Se acreditasse em adorar imagens, eu estaria agora ajoelhada em frente a uma linda, em gesso, de Francisco de Assis na posição de lótus, com pássaros ao ombro, braço e perna (quase comprei uma pra mim quando adquiri esta para presentear um Amigo Secreto ). Pediria chuva e proteção dos animais.

Amo Francisco de Assis, que sei ter sido enviado pela espiritualidade pra nos lembrar de viver conforme o Evangelho de Jesus. E porque ele sabia conversar com os animais e os elementos, rogo-lhe que receba em seu céu os que estão morrendo nos incêndios florestais. E pra que também  interceda por nós junto à natureza ressentida.

Peço, por fim, ao Pai, que perdoe-nos, pois, 2020 anos após ter enviado seu filho mais velho, ainda não sabemos o que fazemos.

Perdidos setembros

Sempre gostei de setembro. Não só por ser o mês de meu aniversário, mas porque costumava ser o da despedida do frio e de chegada de um calor agradável, apaziguado por chuvas temporãs de verão – já disse em mais de uma crônica como adoro frio, chuva e seus cheiros todos… Ah, o de terra molhada e o das plantas agradecendo o alimento!

Mas os setembros não são mais os mesmos. Ficam cada vez mais secos e sufocantes desde que os fenômenos climáticos El Niño e La Niña começaram a mudar o comportamento das estações. E nesta Ribeirão Preto encravada numa depressão (assim me disseram sobre seu relevo) sequer os dias de inverno trazem frios adequados e nem meu mês preferido chega mais com águas esporádicas a prenunciarem o verão quente e úmido dos trópicos.

Azar meu! Talvez porque os genes lituanos de meu avô materno prevaleçam sobre os africanos de meu bisavô paterno, o frio e as águas me vitalizam corpo e mente, mas o calor me adoenta. As altas temperaturas me põem cansada, mau humorada e em um “estado de constante deselegância” – parafraseando minha vitoriana preferida, Jane Austen.

Os suores (estes sim, culpa de meus genes afro) me deixam testa, colo e axilas respingados em qualquer ambiente sem ar condicionado. E receber a primeira golfada de ar quente logo ao sair de um carro me faz cambalear de vertigem – a cabeça ferve, a vista escurece e a noção espacial desaparece por uns cinco segundos e meio.

E não adiantam duchas frias – que de frias têm pouco quando a água da caixa de seu prédio desce fervendo pelo chuveiro – nem ventiladores, que, a depender de como o sol bate no cômodo, só fazem movimentar ar quente, sem refrescar nada. Só quilowatts gastos em ar-condicionado na causa!

E quem disse que toalha molhada na janela ajuda a minorar a secura ambiente não conhece as taxas de umidade de deserto da minha cidade. O jeito é apelar pra muita hidratação oral… e olhe lá!

Enfim, este texto é só pra dizer que, se vontade firme ajudar, tô dentro de qualquer esforço quântico, macumba ou dança da chuva que ajudarem a convencer o universo a apaziguar as fúrias de Niños e Niñas neste hemisfério sul.

Quero meus perdidos setembros de volta!

Gratidão: um legado

Ontem me emocionei assistindo na TV a depoimentos de pessoas que se recuperam da covid-19. Só quem passou por convalescenças extremas entende o sentimento genuíno de gratidão que vem a cada pequena reconquista de saúde.

Eu sei porque, antes da quarentena do novo coronavírus, eu tive a minha própria entre os julhos de 2016 e 2017. Um acidente de moto, que me quebrou ossos nas duas pernas, provocou imobilidade física e isolamento social forçados. Assistir ao mundo seguir seu curso normal pela TV enquanto mergulhava numa rotina de dores, medicamentos e exercícios fisioterápicos diários não pesou tanto quanto a dependência física total de terceiros – para tudo… banho, alimentação, evacuações e até uma simples troca de posição na cama. Lembro-me de refrear minha sede no período da noite para tentar limitar as idas ao banheiro na madrugada. Assim, com sorte, não sacrificava tanto o sono de meu marido, mesmo ele acordando sempre tão pronto a me ajudar a passar da cama para a cadeira de banho, na qual me empurrava até o banheiro social da casa de minha irmã – ficamos hospedados lá durante meu período de imobilidade total porque o condomínio de nosso apartamento não tem elevador. Como a cadeira de banho não deixava a porta do banheiro ser fechada, Márcio tinha que ficar de guarda no corredor de acesso aos quartos para proteger minha privacidade do direito de ir e vir de nossos anfitriões.

Ainda lembro do quão grata fiquei no dia em que a fisioterapeuta domiciliar me ensinou a técnica de me virar sozinha na cama, com manipulação metódica de travesseiros; de como me emocionei às lágrimas na primeira vez em que consegui, amparada no andador, me encerrar sozinha dentro do banheiro – as pessoas subestimam o valioso privilégio da completa solidão em um sanitário! Também me lembro do amor que senti pelos raios de sol me atingindo inteira – não só um pedaço da perna deixado à luz da janela aberta – em minha primeira saída para o médico em 40 dias de reclusão.

Cada pequena reconquista de mobilidade individual inundava de hormônios de felicidade minha química cerebral, àquela altura calejada pela consciência do quão hostil pode ser o mundo para usuários de cadeiras de rodas, andadores e muletas.

Por tudo isso sei exatamente o que devem sentir os infectados por covid a cada segundo que conseguem respirar sem ajuda. Imagino a alegria deles ao sentirem o primeiro aroma ou sabor após um período prolongado sem olfato e paladar,  mas, principalmente, saber que sobreviveram para mais natais e aniversários em família.

Só não sei o que deve ter sido passar pela convalescença longe de seus entes queridos, pois conheço o valor de ver a pessoa amada chegando em um sorriso quando você está numa cama de hospital; a mão de seu companheiro segurando a sua no momento de maior dor; uma conversa normal, cheia daquelas senhas femininas de praxe, com as amigas que não via há semanas!

Ah se soubessem o valor que tem tudo isso as pessoas que teimam em se aglomerar nas praias e bares a desdenhar a importância da emergência de saúde pelo qual passa o mundo!

Penso que a gratidão por tudo o que tivemos sem a consciência exata de seu valor será o maior legado dos sobreviventes desta pandemia. Espero que ela floresça para além dos corações afetados pela doença física, pois nosso mundo nunca esteve tão necessitado dela!

A Mulher do Verdureiro

Sinto falta da informalidade nas relações de minha infância.

Lembro de uma época de portas sempre abertas, de vizinhos que entravam e saíam das casas uns dos outros sem bater palmas – no máximo, avisavam em voz alta que entravam. Campainhas eram raras, mais por serem desnecessárias do que consideradas um luxo naquela rua de casas modestas. Havia casas sem muros ou com eles baixos, fáceis de pular para pegar uma bola que caísse dentro, escapulida dos jogos da criançada na rua. Como os telefones fossem privilégio de poucos, os parentes se visitavam sem aviso prévio. Chegavam a bordo de sorrisos confiantes, certos de que seriam recebidos como a melhor das surpresas. E eram!

Mamãe fazia um dinheiro extra para as despesas da casa fazendo manicure e pedicure das mulheres da vizinhança. Nem agenda tinha para marcá-las. As freguesas eram naturalmente esperadas todas as tardes de sábado, quando nosso corredor de acesso ao quintal ficava cheio delas a tagarelarem sobre tudo quanto era assunto. Apareciam na hora em que seus afazeres domésticos permitiam e esperavam pacientemente sua vez de serem atendidas, definida por ordem de chegada.

Na falta de espaço melhor, mamãe improvisava seu mini spa na cozinha mesmo, entre a mesa de refeições e a pia. Colocava a freguesa sentada numa cadeira ao lado da mesa, de costas para a parede, e sentava ela própria em um banquinho baixo, de frente para a mesma, e passava a tarde a aparar cutículas e esmaltar unhas – com o tempo, sua coluna se ressentiu muito daquela posição mantida por horas.

Às vezes acontecia de uma ou outra vizinha aparecer de surpresa, durante a semana, pra ver se não acontecia de mamãe conseguir atendê-la sem aviso, em nome de  alguma emergência cosmética. Não sei explicar porque ficou em minha memória, de uma forma muito nítida, o dia em que o verdureiro trouxe sua esposa pra mamãe atender sem aviso. Chegaram ambos em sua carroça de madeira – a mesma em que ele passava vendendo as verduras que cultivava em sua horta doméstica – puxada por uma mula.

A mulher desceu muito arrumada em sua simplicidade, cheirando a banho fresco e com o cabelo curto e negro ainda úmido – o rosto branco enrugado de sol iluminado por um sorriso de dentes grandes e amarelos. Lembro o misto de carinho e compaixão que me inundou a visão daquele riso tão aberto, a apelar amizade, simpatia e aprovação, como a se desculpar pela timidez. Ainda enxergo em minha memória suas unhas deformadas por sulcos desde as raízes, que só mais tarde entendi serem resultado de afastamentos brutais de cutículas. Mamãe, sempre gentil, fingiu nem perceber e tratou de esculpi-las e esmaltá-las como as mais lindas, como sempre. Mal ouvimos sua voz durante o processo, mas percebi que deixou a cadeira de mamãe sentindo-se mais feminina do que entrou. O marido já a aguardava com a carroça em nossa rua de terra, em cuja sarjeta sua mula deliciava-se a comer uma moita de capim. Achei lindo ele estender a mão para ela se apoiar na subida e  sentar-se na tábua encardida que fazia as vezes de banco, numa alegria fácil.

Nunca mais voltei a ver a mulher do verdureiro. Pode ser que mamãe tenha voltado a atendê-la em horários da minha escola – nunca me ocorreu de perguntar -, mas nunca me esqueci de sua presença adorável e seu sorriso franco de dentes grandes e amarelos. Lembro de ter desejado, então, ser tão feliz quanto ela. Hoje, quando a recordo, só desejo que ela tenha sido tão feliz quanto me pareceu então.

Gemada no frio

E hoje aquele braço de vento frio, velho conhecido de minhas lembranças, evocou noites de julho em férias, em nossa casa humilde daquela rua de terra à beira do rio. Papí só estava em casa aos finais de semana e, em alguns, conseguíamos convencê-lo a fazer sua famosa gemada, que espalhava cheiros de canela através dos cômodos sem portas.

Eu acompanhava quieta todo o processo, que começava com a separação das claras das gemas – não me lembro de quantos ovos, mas deviam ser dois. Ainda enxergo em minha mente a imagem dele em frente ao fogão, em um agasalho esportivo que o deixava ainda mais parecido com o jogador atlético que foi e o pai mais lindo do mundo!

As mãos morenas e grandes de goleiro batiam as claras em um prato fundo, usando dois garfos juntos – naquela época ter batedeira, para nós, era um luxo tão distante quanto uma viagem à lua – até elas ganharem um aspecto de espuma perolada. Papí virava o prato pra baixo provocando a espuma a cair e ela não caía. Era o sinal de que estava pronta para receber o açúcar. Batia mais um tanto, perseguindo a consistência de suspiro, que eu salivava de vontade de comer daquele jeito mesmo, mas papí, bravo, não deixava!

Àquela época nosso leite vinha em saquinhos fechados a vácuo e liberava um cheiro doce e atraente quando fervido. Pra fazer a gemada, papí colocava dois a três paus de canela pra ferver junto. Apagava o fogo quando o leite começava a subir no canecão, milímetros antes de derramar e se espalhar pelo fogão, formando uma crosta grudenta.

Na última fase do processo, acrescentava ao prato do suspiro as gemas e pitadas de canela em pó. Batia mais um pouco e ia despejar aquele creme amarelado e pintassilgado de laranja dentro do leite quente, mexendo sempre pra misturar bem direitinho.

O resultado era uma bebida cremosa, quase uma espuma aerada, super quente, que rendia um copão para cada um de nós cinco – também não tínhamos canecas de louça. O vidro quente queimando nossos dedos e a gemada abrindo um caminho de fogo pelo nosso esôfago, após inundar de prazer nossas papilas.

Até hoje faço esta receita de gemada nos dias de frio, só pra mim mesmo – não temos filhos e o marido não é muito amigo de ovos. O gosto nunca resultou o mesmo de minha infância. Talvez porque a qualidade dos leites, hoje vendidos em garrafas plásticas ou caixinhas, já é outra. Ou porque adquiri uma predileção por acrescentar uma colher de Ovomaltine sabor Chocolate à mistura. Mas tenho pra mim que, mesmo que assim não fosse, o prazer nunca haveria de se repetir como naquela época. Faltariam a inocência e felicidade com que sorvíamos aquele mimo, acreditando-nos sortudas por sermos filhas daquele pai que sabia fazer gemada finalizada com claras em neve.

Acreditávamos, então, em pais sem defeitos, em finais felizes, em nós como centros do mundo. Eu não sabia ainda como é ter saudade de mim mesma numa versão mais pura e simples.

Leia também a crônica que deu origem a esta: ‘Um braço de vento frio cutucador de memórias’

O que é que o baiano tem [*]

[*} Texto publicado em setembro de 2003, no caderno TôLigado, da extinta Tribuna Impressa de Araraquara

 

Ele já cantou em inglês, em francês, mas foi em português, sincopado, ritmado, deliciosamente gingado, que fez saltar gravatas de colarinhos e pudores das cinturas duras da diplomacia. De repente, todo o auditório da assembleia das Nações Unidas (UAU! Nações Unidas!) estava chacoalhando alguma parte do corpo ao som do ministro Gilberto Gil, no show em homenagem ao embaixador morto no ataque à sede da ONU no Iraque, o brasileiro Sérgio Vieira de Melo.

O secretário-geral da ONU, Kofi Annan [*¹], endossou a queda dos protocolos e – meio vacilante, é verdade! – marcou o ritmo de “Toda Menina Baiana” à tumbadora.

Eu pensei que brasileiro só virasse patriota em Copa do Mundo, mas, no dia seguinte, no trabalho, na rua, nos comentários que a gente colhe de “orelhada” aqui e ali, enxerguei o orgulho brasileiro – e nem tinha ídolo do esporte envolvido. Eu mesma, em frente à TV, vendo aqueles diplomatas se entregando ao apelo do ritmo brasileiro, reencontrei o meu orgulho, que andava escondidinho, coitadinho… lá embaixo da vergonha por nossos indicadores sociais e altos índices de impunidade.

A gente andava mais acostumado a praguejar em frente ao noticiário televisivo, vendo lobbies vencerem o bom senso no Poder Legislativo, o tráfico mandando mais do que a autoridade constituída, a polícia praticando crimes sob a proteção do uniforme, prefeitos desviando dinheiro do contribuinte e pobres ficando mais pobres ainda []. Coisas que fazem a gente enxergar festas patrióticas – a Copa do Mundo de Futebol, por exemplo – como um ópio traiçoeiro, que faz o brasileiro esquecer que no dia, na semana, no mês seguintes a conta do supermercado ainda precisará ser paga, o convênio de saúde poderá não cobrir aquele atendimento indispensável e que, se não sair à rua de preto quando a sujeira de um presidente vier à tona, a impunidade vai continuar a “comer” nosso dinheiro sem a gente nem ficar sabendo.

Mas, de vez em quando, um ministro de cabelo rastafari também pode nos fazer lembrar que a música, como qualquer outra manifestação cultural genuína de um povo, é capaz de quebrar a rigidez da diplomacia e de quadris… assim como “salvar” meninos e meninas pobres da criminalidade em projetos culturais de alcance social, como noticiários também, volta e meia, mostram. Essas coisas trazem esperança e… orgulho! Fazem lembrar que as artes e a cultura são poderosas; que as manifestações artísticas são uma “cachaça” sem álcool, fontes de prazer sem vício. Por isso podem educar, ao mesmo tempo que ratificam a identidade de um povo.

E se a gente se orgulha de assistir aos [des]engravatados da ONU perderem a compostura ao ver o que é que este baiano tem, é porque sabe que ele tem A GENTE! A música e a pessoa de Gil têm nossa raiz brasileira, nossa cultura, nossa raça, nosso AMOR (até o que a gente acha que não sente pelo outro). E tudo isso é poderosíssimo!

Obrigada, Gil. Obrigada!

 

[*¹] Kofi Annan foi secretário-geral da ONU [mais alto cargo da organização] de janeiro de 1997 a dezembro de 2006.
[*²] NOTA DA AUTORA: “Quem diria que eu sentiria saudades daquela época? E pensar que eu achava que não tinha como o Brasil ficar pior do que estava…”.

 

Playlist

“Sem motivo vou vivendo por aí por viver
Meus valores tão confusos reprimidos por você
Troco passos sem sentido pelas ruas
sem saber aonde ir”

Escrevo com o humor encantado, esparramado na rede imaginária dessa música do Roberto Carlos na voz do Nando Reis, que fez o favor de fazer um álbum inteiro dedicado à obra do “Rei” (“Não sou nenhum Roberto mas às vezes chego perto”). Já amo o Roberto desde criancinha, mas achei de uma covardia varonil juntar ele com uma de minhas paixões musicais de adulta.

E o Nando canta “Vivendo por Viver” com lágrima escondida na voz de veludo, demorando em pausas, com um violino criminoso chorando ao fundo. Só pra ferrar de vez meu coração, já afundado até a última artéria na melancolia alucinógena que certos sons acordam em mim.

Passamos, eu e o Márcio, partes da tarde e noite de ontem hipnotizados por essa descoberta, feita ao acaso, enquanto percorríamos vídeos musicais no youtube – os dois buscando, desesperadamente, desintoxicação dos humores doloridos de ver tanta notícia de morte lado a lado com as de politicagem, ódio e descaso explícito neste tempos de covid-19.

E o Má tirou a música no violão só de ouvir. Nem pediu pra eu pegar cifra na internet. Igual quando viu a Adriana Calcanhotto cantando “Vambora” na live do Sesc, semana passada – sabe que minha voz dá certinho pro tom dela e que adoro!

Entre por esta porta agora/ Você tem meia hora/ pra mudar a minha vida”.

Antes disso, playlist encantada com canções de Marisa Monte, que deve ter roubado a voz de algum anjo, porque… Jesus!… como pode alcançar regiões tão escondidas do ouvido da gente! Ela toda classuda e senhora do palco e da plateia, dando um ar de haute-couture a uns modelitos que em qualquer outro mortal ficariam cafonas… e transformando umas letras quase bobinhas em músicas de transcender com aquela voz… ai! Se eu não fosse eu mesma nesta vida, a única pessoa que ia querer ser seria a Marisa!

Na varanda quem descansa / Vê o horizonte deitar no chão/ Pra acalmar o coração/ Lá o mundo tem razão

E ela cantando com o tremendão, fazendo eu me perguntar por que não ouço tanto “Mais um na Multidão”, dela com o Erasmo e o Brown (“Você pensa em mim, e eu penso em você/ Eu tento dormir, você tenta esquecer/ Longe do seu ninho, meu andar caminho”). E lembro que a Marisa ainda canta Roberto (“De que vale tudo isso se você não está aqui”).

E o Roberto, aliás, vou falar, viu! Vai construir fossa gostosa de sentir assim na Indochina! Quase lamento ele ter parado de sofrer na década de 1990, quando passou a compor umas letras menores – pra gordinha, baixinha, caminhoneiro (afff!).

Pensava nisso quando entrou de surpresa “Veja (Margarida)”, do Geraldo Azevedo, que o Marcelo Jeneci regravou pra novela “Velho Chico” e estava na sequência da playlist do meu Apple Music (Veja você, arco-íris já mudou de cor/ E uma rosa nunca mais desabrochou/ Com esse gosto de sabão na boca). Uma singeleza de ouvir rezando!

E deixa estar que o Geraldo Azevedo também tem umas músicas de arrepiar! Vou nele daqui a pouco, mas, por ora, acho que vou colocar “Vivendo por viver” no repeat (de novo) pra estremecer mais um pouquinho de fossa – que, verdade seja dita, só é gostosa de sentir quando a gente não está sofrendo de verdade por amor.

Parece que hoje o universo todo está mancomunado – ou, talvez, seja a tal da física quântica – pra que todos os sons mais lindos venham salvar a gente de sucumbir à tralha asfixiante desse todo-dia-de-quarentena-da-covid-19-sem-emprego-e-trabalho-free-lancer.

Graças a Deus pela música!

Amém, senhor.

À altura da História!

Estou escrevendo aqui e ainda não parei de chorar… e de arrepiar… relendo as frases com que parentes de cada um dos 10.627 mortos oficiais por covid-19 (até ontem) os descrevem no memorial virtual que o jornal O Globo publicou hoje.

“Ele dava nos filhos um abraço-casa, carinho que aquecia o coração” (Claudio Leal de Almeida, 76)

“Gatinha, eu te amo muito, declarava ele à sua esposa” (Anderson Estevão, 54)

Uma boa amiga, que amava gatos” (Ágatha Santos, 25 anos)

“A Esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar” (Aldyr Blanc)

“Todos os dias ia à casa de sua mãe para tomar sua benção” (Dalva Maria Portilho da Mara, 59) – e choro pensando em como deve estar se sentindo essa mãe sem filha neste Dia das Mães!

Imagino como eu conseguiria descrever meu marido… ou minha mãe, ou meu pai ou qualquer uma das minhas irmãs ou sobrinhos… em uma só frase se fosse algum deles ali (não… não conseguiria!) e choro de novo. – e arrepio de novo. – e me sinto dentro daquela poesia do Fernando Pessoa, me “extraviando de tanto sentir*… e de admirar a fortaleza desses parentes que carregam seu luto por aí, sobrevivendo a ele.

O momento que estamos passando vai ficar marcado na história da humanidade e a capa de O Globo de hoje fez um jornalismo à altura dele. Ao mesmo tempo que homenageia nossos mortos (são nossos, de todos nós!), responde da forma jornalística mais linda – especialmente a um presidente que desfila sua cruel indiferença a bordo de jet skis e piadas de mau gosto – que essas vidas importam SIM!

E quem é “bicho de redação” (como eu) sabe o esforço hercúleo que deve ter sido captar 10.627 (!!!) frases para lembrar essas vidas. Não se trata só do tempo e do trabalho que consumiu, mas de como abordar outro ser humano em um momento vulnerável de dor. Também é doloroso – e constrangedor – para o jornalista (sim… também temos coração).

Parabéns a todos os colegas que participaram disso (é orgulho alheio que fala?!).

Obrigada, O Globo, por ter tirado esse choro de dentro de mim… por mostrar que o jornalismo ainda é capaz de ser humano e grandioso!

Obrigada!


(*)
“Quando olho para mim não me percebo
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo”
in “Três Sonetos – I” Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. 1915

 

Déjà vu (ou ‘Quem sabe isso quer dizer amor… 2 – A Missão’)

Oitavo domingo de quarentena.

Acordo dentro da memória brumosa e morna do “Encontro de porta” com nossos mais novos melhores amigos. Grata pela noite, por olhar do lado e checar o sono fungador do Ma, sentir nossos filhos-gatos esparramados entre nossos pés e pernas, lembrar que é dia de escola Aprendizes do Evangelho e – mais gratificante que tudo – não ter sido acordada pelas dores musculares do meu bruxismo (já disse que a vida sem dor é maravilhosa?).

Obrigo-me a fazer os exercícios passados pelo fisioterapeuta e a comer ao menos uma banana antes de engolir os comprimidos da pressão e de colágeno (já disse como odeio comer e ter que fazer “dever de casa” logo ao acordar?). Minha natureza pede um despertar lento, feito de descanso dos músculos fatigados do bruxismo, pés pra cima na poltrona da sala e cérebro despertando devagar através do olhos, que caçam no celular as primeiras mensagens e manchetes jornalísticas do dia. Mas a virginiana em mim não sabe ignorar um “dever”, sob pena de ficar arrastando uma bola de ferro cheia de culpa pelo resto do dia. Por isso dou meu suspiro de resignação e inicio as primeiras séries na cama mesmo. “Primeiro  o dever, depois o prazer”, disse Daniel Boone em um dos episódios do seriado que assisti na infância – nunca mais esqueci o dito e o levei pra vida (quer mais virginianismo que isso?).

Sento ao computador pra preparar nova postagem no blog, checo mensagens, respondo… e imerjo em meu hiperfoco, que ignora tudo o que é mundo fora da minha cabeça. Registro só com uma parte do cérebro o Ma ligar a TV pra assistir no Youtube as últimas lives de músicos preferidos – outra região dentro da minha mente registrando, satisfeita, a emoção dele ouvindo e vendo seus ídolos musicarem seu domingo. E novamente fico grata.

Termino o trabalho no computador, vou pra cozinha fazer a receita nova de risoto prometida e, de repente, ouço um dedilhar de violão que não soava há  tempos em casa se aproximando pelo corredor. Me invade um déjà vu de todas as vezes em que o Ma sacou do violão pra cantar comigo e pra mim, eu preparando nossa comida, uma tulipa de cerveja dele esquentando em cima de algum móvel e uma taça de vinho minha se esvaziando mais rápido que o recomendado, em meio a legumes e carnes que corto desajeitadamente, com minha coordenação motora de jegue. E, de novo, tudo no mundo parece estar exatamente no lugar que deveria estar.

Pra entender o valor desse déjà vu é preciso saber que o Ma não pegava o violão dentro de casa pra se acompanhar cantando há…  ? … nem sei quanto tempo! Foi parando mais ou menos quando começaram seus lutos – pela morte do pai em 2016, do irmão em 2017, da mãe em 2018 -, cada um jogando dentro dele umas saudades doídas de ver. Ele não falava muito disso – eu respeitava – mas tenho pra mim que rolava um constrangimento inconsciente por ele ainda estar neste mundo, apto a continuar desfrutando de um dos grandes prazeres de sua vida, quando os seres que mais amava já não estavam.

A felicidade fez eu gravar o momento em vídeo, com o celular amoitado no balcão e comigo parecendo uma “Amélia arrependida”, com faixa segurando o cabelo oleoso de cozinheira mal ajambrada. Compartilhei depois nos grupos dos amigos de cantoria e dos vizinhos de porta, brincando que “se eu soubesse que bastava variar o cardápio do almoço pro Ma voltar a fazer serenata na minha cozinha, eu teria começado antes da quarentena”, e rezando pra ele não ralhar comigo.

Não ralhou. Até respondeu com bom humor às brincadeiras surgidas nos grupos. Quis ouvir a gravação mesmo com aquele som de caixa de fósforo do celular, sem saber que dentro do meu peito o coração dava pinotes de felicidade, feito os gatos quando entram no “MODO GREMLIN” aqui em casa.

Meu risoto ficou MARA! O Ma garantiu minha caipirinha e, com a promessa de cuidar da louça suja depois de sua sesta domingo (eu cozinho – ele lava!), foi deitar sem saber que pra mim aquele domingo de quarentena transformou-se no melhor dos últimos quatro anos.

Vou ter que evocar o Lô [Borges] de novo: “’Quem sabe isso quer dizer amor’ 2 – A Missão (de inventar de vez em quando um novo cardápio pra ver se o Ma volta a fazer serenata de cozinha pra mim!)”.

 

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