Categoria: PALAVREIRA

Cinco centímetros

Meu mundo encolheu.

Ficou pequeno de repente ou será que está assim faz tempo e só me dei conta agora? Neste exato momento em que escrevo ele tem o tamanho do primeiro salto fino de 5 centímetros que coloco em quase dois anos.

Sei que ele tomou esta dimensão porque, pelos cerca de 200 metros caminhados entre o estacionamento de veículos e minha mesa de trabalho, equilibrar-me sobre aqueles finos 5 cm tornou-se o propósito da minha vida.

Não tinha me dado conta disso até chegar arfando ao destino.

“Correu Silvia?” – perguntou minha colega de trabalho ante meu descontrole respiratório.

“Quem me dera”. Andei foi bem devagarinho, cuidando de cada passo, esquadrinhando cada centímetro quadrado de piso antes de depositar sobre ele meu equilíbrio vacilante de acidentada.

Arfava era de algum tipo de emoção que não sei se consigo explicar… uma melancolia de finitude, como uma nostalgia de um sonho que, realizado, não parecia mais tão… sonho.

Talvez porque foi ali que me dei conta do tamaninho do meu mundo.

Lembrei-me do Du e da Clara, que acabaram de vender tudo o que tinham no Brasil para mudar-se de vez para a Espanha (isto sim de tirar o fôlego)… do querido Marcelo, vivendo há 20 anos em Londres a administrar saudades que mata por 30 dias ao ano… de minhas amigas, que já trilharam o Caminho de Santiago de Compostela e a Via Francígena, na Europa, e agora fazem planos de uma viagem ao Chile.

E eu limitando os meus a conseguir equilibrar-me sobre um salto fino de mulher.

Agora entendo o frio na barriga sentido quando me convidaram pra tal viagem: estava tão quentinho ali, encolhidinha que estava dentro de meus “não-planos” (aqueles que se faz quando não se tem plano algum) de voltar a usar salto ou decidir se poupo para trocar de carro ou faço reserva para um hipotético futuro desemprego!

Quando foi que fiquei tão pequenininha?

Será que consigo crescer de novo?

Barriguinha, prepare-se! Acho que vou levá-la (com frio e tudo) ao Chile.

 

* Publicada no jornal A Cidade em 15/2/2018

Despedidas

Hoje não tenho palavras

Não jorra palavreira do meu luto

Não transborda alma na forma escrita.

Hoje só brotam despedidas de meus dedos

Oro

Que partam em paz todas as minhas perdas

Que vivam melhor na próxima vida

Que amem tanto ou mais

Que vivam para sempre

Virem estrelas

Sejam para sempre luz!

Perdemos o LAU BAPTISTA

Vai em paz, meu amigo!

Os anjos te guardem.

Herança

Meus pais sempre foram lindos.

Não é uma metáfora. A genética foi mesmo generosa com eles, preservando em suas aparências o melhor de vários mundos presentes em suas genealogias.

Não conheço meus antepassados anteriores aos meus avós, mas sei que mamãe ficou com os olhos verdes, a pele alva e os traços angulosos de meu avô lituano, mais o corpo curvilíneo de minha avó interiorana.

Meu pai manteve a altura e a magreza atlética de meu avô afro-brasileiro, neto de escravos (muito bem aproveitados em sua breve carreira no futebol). Mas a morenice café-com-leite e o cabelo mais liso-ondulado que crespo ele deve aos genes de sua mãe, descendente de índios.

Quando criança, eu costumava me orgulhar ao levar colegas de escola à minha casa pela primeira vez: “Como sua mãe é linda!”; “Que homão que é seu pai!”, era certo de ouvir.

Na adolescência, o alto grau de surpresa de tais exclamações chegava a me incomodar um pouco: “por que você mesma não é bonita assim?”, ouvia eu nas entrelinhas.

Vi em minhas irmãs desde sempre as belezas e feminices de mamãe, mas demorei a deixar de ver em mim só a herança de papí (as três filhas o chamam assim), que me valeu uma aparência andrógina até a puberdade. “Ei, menino…”, chamavam-me no ônibus, na rua.

Os hormônios só começaram a desenhar em mim as curvas de mamãe no início da fase adulta.

Talvez, de tanto ter pedido a Deus naquela época, hoje tenho de todos da família um pouco (tá… faltaram-me os seios maiores que minha irmã do meio herdou de nossa avó materna, mas não se pode ter tudo).

Ainda me assusto quando, às vezes, olho no espelho e penso estar vendo minha irmã mais velha. Ou quando me ouço pigarrear o refluxo da garganta como ouvi mamãe fazer a vida toda – uma família inteira com hérnia de hiato. Não gosto de chocolates e de desordem, como minha irmã do meio, e minhas pernas têm o desenho reto e pouco feminino das de meu pai, embora (que raiva!) tenham copiado os culotes de minha mãe.

Acompanhando papí no hospital, onde ele se recupera de cirurgias no intestino delgado, descobri uma nova semelhança. Cortando suas unhas, parei a admirar suas mãos ainda enormes, mesmo estando ele tão magrinho. Mãos de meu avô negro, de dedos retos, unhas largas e palmas claríssimas. Minha mão esquerda pareceu uma versão infantil da sua quando sobrepus à dele.
Como nunca percebi antes que as mãos que eu sempre quis finas e de unhas estreitas e alongadas como as de mamãe eram, ao contrário, cópias menores das mãos de goleiro de meu pai?

Hoje observo ambos velhinhos e entendo estar olhando para um espelho precoce, que devolve o reflexo de um futuro possível.

Não me assusto.

A juventude deixou suas aparências e seus corpos, mas eles ainda são lindos. Os cabelos ondulados de mamãe agora são de um branco laminado e seu sorriso ainda é o mesmo, de dentes grandes, que se projetam pra além dos lábios, como se mal coubessem dentro deles.

Papi quase não tem rugas no rosto ainda bonito, a despeito das olheiras fundas de agora.

Não tenho pressa de descobrir com qual dos dois me parecerei quando tiver a idade deles, mas tenho medo da falta que sentirei de me procurar neles quando não estiverem mais por aqui.

“Tempo, tempo, tempo, tempo…”

 

Uma avenida como aquela

Por muitos e muitos anos lembrei-me com saudades daquele dia.

Nem sei ao certo que idade tinha, mas tenho certeza de que foi antes do período escolar, que iniciei com 7 anos completos. Íamos, as três irmãs, espremidas no banco de trás, olhando para as nucas ainda jovens de nossos pais nos bancos da frente.

Papi estacionou o fusquinha azul na que hoje reconheço como sendo a rua Visconde de Inhaúma, bem próximo da esquina com a avenida Nove de Julho, em Ribeirão Preto.

Meu deslumbramento começou assim que pisamos os paralelepípedos da avenida para atravessar ao outro lado, onde pessoas já se aglomeravam em torno da pista com mão de direção no sentido Centro.

A primeira visão daquela avenida rodeada de casarões suntuosos e sombreada por árvores plantadas nos canteiros centrais ajardinados foi um choque.

E ainda haveria outros naquela manhã de descobertas.

Acostumada à paisagem de moradias humildes e encardidas da avenida de terra onde morávamos, emudeci de puro encantamento ao me deparar com as primeiras casas de fachadas amplas, arquiteturas de revista e lindos jardins.

Foi como entrar dentro de um conto de fadas!

Lembro-me de pensar que deveriam ser assim os castelos descritos nas histórias de princesas e príncipes que ouvia em nossa vitrolinha, tocando compactos de vinil coloridos.

Prestei pouquíssima atenção ao desfile que começara a ocorrer no leito carroçável da avenida, ao ritmo de bandas marciais – era um 7 de setembro, descobri depois.

Perdia-me na contemplação de cada detalhezinho dos casarões, cujas grades e portões eram baixos, deixando livre a visão de suas lindas fachadas e jardins – até hoje tenho saudades desse tempo em que a criminalidade não forçava a construção de muros altos e portões maciços.


‘A primeira visão daquela avenida rodeada de casarões suntuosos e sombreada
por árvores plantadas nos canteiros centrais ajardinados foi um choque’


Lembro-me de admirar uma moça sentada em uma das cadeiras de sua ampla varanda, rodeada por plantas de vasos e trepadeiras, linda em sua roupa toda branca e acessórios reluzentes nos braços, colo e orelhas. Imaginei ser uma princesa.

Guardei também a visão de um senhor acotovelado no parapeito da janela de um sobrado a assistir ao desfile de camarote. Passei a achar lindos os sobrados desde então e a me imaginar subindo a escadaria de um castelo sempre que acompanhava meus pais a uma visita a conhecidos que moravam em um. Mamãe passou a desconfiar de minhas vontades de usar o banheiro em toda visita – era meu pretexto para esquadrinhar as escadas.

Sorvi cada visão daquele dia com deleite emocionado. Ainda me lembro da sensação de estar dentro de um momento mágico, em que tudo era beleza e alegria.

Passei a esperar com ansiedade os dias 7 de setembro de cada ano e a me desapontar sempre que chegavam. Nunca mais o passeio em família pelo mundo encantado.

Quando iniciei a escola, inscrevia-me para todos os desfiles de 7 de setembro. Nas primeiras séries, ia vestida em figurino de bailarina que minha mãe costurava e enfeitava de lantejoulas e saia de tule. Davam-me a manipular o que chamavam “baliza” – um bastão todo enfeitado com fitas que deveríamos rodar a título de acrobacias.

Mas nunca mais os desfiles foram na avenida Nova de Julho.

Por alguns anos ocorreram na avenida Independência, que eu não entendia ser perto da Nove de Julho, inexperiente que era na exploração da cidade. Em meus últimos anos de ginásio, já ocorriam nas ruas de nosso próprio bairro de classe média baixa, para minha completa decepção.

Nunca me ocorreu pedir que meus pais me levassem a uma nova visita à avenida dos contos de fadas – naquelas épocas, crianças não tinham quereres!

Quando me reencontrei, adolescente, com a Nove de Julho, seus casarões já eram raros, a maioria havia tido seus lindos jardins e fachadas deformados por comércios e instituições bancárias e os paralelepípedos irregulares ressentiam-se do trânsito intenso de veículos em seu leito carroçável. Não havia mais cores e sorrisos e princesas sentadas em suas varandas adornadas de verde e ricos acabamentos.

Cheguei a chorar de desapontamento, mas, no devido tempo, conformei-me. Já não acreditava em contos de fadas.

Luto

Amanhã faz um mês que o Nando nos deixou nesta dimensão da matéria bruta. O que aprendi sobre luto neste tempo é que ele pode subsistir mesmo subjugado por forças maiores – a da fé de uma mãe, a espiritual de um irmão e a de vontade de uma cunhada. Ele fica ali, nos observando pelos vãos das rotinas que construímos em nossos cotidianos para nos sentirmos seguros… pelas frestas dos automatismos que nos faz sentir protegidos.

Mas todos esses escudos são ilusórios. Sei disso porque o luto consegue nos alcançar através deles, aproveitando-se de falências típicas desse uso contínuo das rotinas. Por exemplo: quando ouvimos uma música antiga, escapa do Márcio uma afirmação no tempo presente: “O Nando adora essa música”.

E nos lembramos.

Na chegada a Ribeirão vindo de Jaú, Márcio atende ao automatismo de enviar os avisos de que chegara bem… e lembra-se de que agora será sempre uma mensagem a menos.

E na última vez em que enviei uma foto impagável do gato Loki – apadrinhado de Nando – ao Márcio, deixei escapar a digitação de uma frase inteira fora de tempo: “Mostra pro Nando”.

E cada lembrete é como se estivéssemos nos inteirando por “outra primeira vez” dessa desarrazoada, inacreditável e injusta verdade.

O adeus a alguém que não fomos apropriadamente preparados para perder é falho. Soa mentiroso, descabido… tão irreal que, na maior parte do tempo em que nos mantemos distraídos pelas rotinas, nossa consciência periférica acredita que ele continua lá onde sempre esteve… que estamos a uma mensagem de Whatsapp de distância… que sempre ouviremos, quando em Jaú, sua chave abrir o portão da varanda para entrar na casa da mãe pela cozinha, onde tudo em família acontece.

Mas então sintonizamos novamente a consciência… e nos lembramos!

E o luto segue assim… nos assustando o tempo todo, flechando nosso coração toda vez, enquanto insistimos em seguir nos desincumbindo de todo o resto desimportante da vida.

E a saudade segue assim… sem revolta, sem desespero, a conta-gotas, umedecendo um e outro momento de uma tristeza mansa, resignada, sem luta.

E a vida simplesmente segue…


FERNANDO LUIZ PELEGRINA
15/3/1965 – 11/8/2017
Filho, marido, irmão e cunhado amado
Para sempre em nossos corações.

A Grande Dor

Ela se lembra da primeira vez em que a sentiu. Tem lembranças visuais desse tempo, quando os móveis da casa de sua infância eram mais altos que o alcance de seu olhar.

Passou a ser regra: sempre que a Grande Dor chegava, a menina registrava a memória visual do momento, como uma câmera interna movida a tristezas.

A mais antiga é a de ver a mãe ainda jovem, barriguda, curvada sobre si mesma e sacudida em soluços lá no alto, sobre o sofá da sala escurecida por cortinas, embora ainda fosse dia.

Não sabia o que havia acontecido, mas certamente algo terrivelmente ruim, sem volta, que acabara com toda a esperança de a vida no mundo voltar a ser boa de algum modo. O desespero da mãe era a prova disso e não lhe ocorria pedir – ou pensar que tinha direito a – melhor explicação que aquela.

A visão seguinte está emoldurada pela sombra do alpendre, que dava para a calçada e a rua – a casa não tinha portões e as portas ficavam sempre abertas para quem quisesse entrar ou sair, a qualquer hora do dia. Um homem sai de um carro compriiiiiido e entra corredor, alpendre e sala adentro levando em cada mão um pilar prateado, feito colunas jônicas.

Lembra-se de quatro pilares como aqueles sustentando, lá no alto, acima de seu olhar, uma caixa de formato estranho e com babados de tule caindo dos lados, bem no meio da sala cheia de gente… de enxergar saias e calças compridas passarem por ela em direção ao quarto da mãe, contíguo à sala… da mãe deitada sobre a grande cama de casal, respondendo em prantos aos que entravam em fila para vê-la. À esquerda, a penteadeira de cerejeira – tão linda! – vazia dos artigos de perfumaria, mas tomada por dezenas de chuquinhas de borracha, aquelas que se punham nos bicos das mamadeirinhas de dar chás aos bebês. Viu muitas pessoas presentearem a mãe com elas durante semanas, meses, sempre com expressões de tanta alegria…


‘Não sabia o que havia acontecido, mas certamente algo
terrivelmente ruim, sem volta, que acabara com toda a esperança’


“Nunca mais qualquer alegria”, gritava a angústia dentro de si.

Lembra de alguém sugerir que a vizinha do lado a levasse para a casa de uma parente, do outro lado do rio. Assim deve ter sido feito, pois sua próxima lembrança visual é a dos próprios pezinhos pedalando um Velotrol, no quintal da tal parente, ainda sentindo por dentro a Grande – agora tão maior! – Dor.

A memória seguinte é a de assistir – não sabe se no mesmo dia ou em outro – seu pai chegar em Fusca azul (ou vermelho? Às vezes as lembranças lhe enganam), entrar pelo mesmo caminho do “homem das colunas jônicas” e, com o olhar perdido, como se não a enxergasse ali na frente dele, ir direto ao quarto do casal.

A partir de então, a Grande Dor só registrou pequenos flashes de memórias, agora com sons e nos quais o olhar da menina já pairava acima dos móveis da casa. Ela ouve vizinhos e conhecidos da família lhe perguntarem – uns em tom de brincadeira, outros de preocupada investigação – se não lhe agradaria a mãe encomendar outro irmãozinho para si. Guiada pela Grande Dor, sua resposta era sempre a mesma: “Não quero outro bebê pra fazer minha mãe sofrer”.

Ela não se lembra quando ou quem – se é que alguém – lhe esclareceu, mas acabou entendendo, em algum momento, que nem todos os bebês morrem. Mas então a Grande Dor já havia instalado outras câmeras em seu cérebro.

 

Olhares falantes

Nossos olhos se encontraram assim que me sentei em uma das cadeiras na recepção da clínica fisioterápica. Elas ficam dispostas em fileiras, umas viradas para as outras, talvez para forçar a interação entre os pacientes – mas o que costuma acontecer é de todos ficarem passeando as pupilas, nervosa e artificialmente, por tudo o que não forem “os outros”.

Ele não. Já devia estar me observando há alguns segundos quando meu olhar foi atraído pela insistência do seu. Nem piscou quando finalmente o notei. Continuou a me esquadrinhar com naturalidade e até um certo sentido de direito.

Mandei-lhe uma piscadela.

Ele não reagiu logo, mas o risquinho que era sua boca relaxou levemente no esboço de um “quase sorriso”.

Continuou a me encarar tranquilamente, como se eu não percebesse, e assim permaneceu mesmo quando desloquei minhas pupilas num olhar vesgo.

Desta vez o desenho de um sorrisinho foi inequívoco e passamos então a uma “conversa” sem falas, feita só de pequenas contrações musculares de rosto: um arquear de sobrancelhas como interrogação, um enrugamento de nariz em aprovação, uma tremidinha de olhos – como a de meus gatos quando me acarinham de longe.

Tudo à vista de todos, mas de ninguém ao mesmo tempo, já que “os outros” continuavam a se ocupar de seus esforços em ignorarem-se mutuamente.

Entramos assim numa “bolha” só nossa, feita de compreensão silenciosa.


Entramos assim numa “bolha” só nossa, feita de compreensão silenciosa


Sempre tive facilidade em atrair o olhar de crianças em lugares públicos. É como se eu ocupasse junto com elas uma dimensão especial, como se a criança que sobrevive em mim fosse reconhecida e cumprimentada. Assim foi com aquele menino de óculos grossos e perninhas atrofiadas que agora me acariciava com um meio sorriso e olhar de curiosidade.

Mas então um chamado nominal que ignoramos acionou sua mãe, que o empurrou do próprio colo para levantá-lo e colocar seu corpinho magro na posição de elevá-lo novamente em seus braços. E ele seguiu agarrado ao pescoço dela, mas de rosto e olhar voltados para mim, como a despedir-se em silêncio.

Retribuí com o formato de um beijo mudo nos lábios, que desta vez me valeu um indubitável sorriso de rosto inteiro, que expôs a gengiva alta emoldurando dentes encavalados.

Uma doçura de sorriso! Franco, genuíno, sem medos.

Quando eu mesma fui chamada, do corredor o vi deitado no divã de uma das salas tendo as perninhas atrofiadas manipuladas por uma fisioterapeuta. Ela lhe arrancava gargalhadas fazendo dos exercícios brincadeiras.

Um sorriso involuntário me escapou e tive vontade ir lá abraçá-lo e lhe dizer o quanto é especial. Não por ser criança e menos ainda por ser diferente, mas por se deixar amar tão facilmente.

Uma leonina chamada Jô

Um dia depois de enterrar seu primogênito, morto de repente, aos 52 anos, de problemas de que ninguém (nem ele) suspeitava que sofresse, Jovelina Helena Bortoluci Pelegrina – a dona Jô – fez tudo igual, como em todos os outros dias. Acordou às 6h da manhã, ligou o rádio sintonizado na estação local para ouvir as primeiras notícias, fez sua toalete, o café e ligou a TV no canal que transmite a missa do “Divino Pai Eterno” – nunca perde uma.

Coincidência ou não, neste domingo o padre falou sobre resiliência. Pude ouvir do quarto em que dormi com Márcio – seu caçula – alguns trechos do sermão: “é nos momentos difíceis que temos de exercitar a nossa fé. É nesses momentos que Deus espera de nós…”.

Eu quase podia ver, como se através da parede, sua cabeça balançando em concordância, o olhar reverente e as mãos cruzadas sobre o peito. Na hora dos cânticos, que conhece de cor, eleva a linda voz de soprano com vibrato natural em louvor, como fez em tantos outros domingos durante a missa.

Mas este não é um domingo qualquer. Além do dia seguinte ao enterro de seu filho mais velho, também é Dia dos Pais (o segundo que passa sem o pai de seus filhos, morto há 1 ano e meio de câncer), é seu aniversário de 81 anos!

Sim, Jô é leonina. Mas, apesar da juba exuberante, que mantém sempre tingida de ruivo para disfarçar os brancos, prescinde daquela auto-estima solar, típica dos nativos. Deve ter trocado sua cota por outra a mais de força, que tem de sobra.

Agora mesmo a ouço dar outra prova de como conjuga com tocante sabedoria essa força impressionante, temperada com muita humildade e fé.

Márcio vai lhe dar um beijo de “bom dia”. Ouço do quarto apenas sussurros ininteligíveis de sua voz embargada, mas a resposta de minha sogra sai nítida, tranquila e sem dúvidas: “Pensei muito. Eu não tenho o direito de… Deus me deu ele [seu filho] e Deus me tirou quando achou que era a hora. Não sou ninguém pra questionar”.

Esta é a parte em que esta virginiana, supostamente palavreira, fica sem mais palavras.

 

Como ensinar seus gatos a gostarem de rock

“Mamãe, o monstro ‘Rock’ já foi embora?”

Primeiro contato da audição sensível de meus gatos com nosso som reinstalado na sala, com as caixas mais altas, para dar uma acústica melhor.

Tacamos logo “Daughter”, do Pearl Jam, em alto volume.

Pulos, sustos e correria de patinhas pelo corredor em direção ao refúgio no quarto de casal.

Loki é o primeiro a vir voltando devagarinho, todo encolhido encostado à parede, como que investigando de longe um inimigo.

Corajoso, atravessa a sala, passando em frente ao som, e dá uma corridinha até a mesa onde Márcio estuda em frente a seu laptop. Sobe à cadeira ao lado da dele e usa seu miado “lamento-pedido-de-socorro” para chamar a atenção.

Márcio para e sorri pra ele: “E aí, cara?”.

Ele continua a miar, como se conversasse. Na certa reclamando com o “pai” sobre aquela barulheira desconhecida, enquanto se esfrega pra cá e pra lá nas costas da cadeira.

“É rock, bicho. Vai ter que se acostumar!”, diz o Ma.

A esta altura já está tocando “Lightining Bolt”. Na hora dos solos de guitarra mais irados, Lóki escancara os olhos de pupilas dilatadas e corre para a outra extremidade da sala, como se fugisse de um inimigo invisível.

Maya também deixa o refúgio, mas não se arrisca pela sala. Estaca na porta do corredor, olhando em minha direção com orelhas arrebitadas para trás e olhos amarelos arregalados, mas com uma curvatura que sugere braveza, mais do que susto.

“Pode vir, neguinha! É só música”, digo.

Ela não se arrisca. Continua a me olhar fixa e diretamente, como se indagasse: “Não vai fazer nada?”.

Saco do controle remoto para procurar “Sirens”, mais calminha e sem tantos graves pra espocar pela saída do subwofer.


“Concordo com Márcio que está na hora de entenderem que
é uma casa de roqueiros. Se toda a vizinhança já sabe…”


Loki já relaxa. Esparrama-se ao chão em sua famosa pose “deitado-despreocupadamente”, mas a uma distância segura do centro da sala, onde estão as caixas.

Maya, ainda na porta do corredor, senta-se agora sobre as patas traseiras – ainda de orelhas para trás, ainda brava, ainda atirando fixa e continuamente seu olhar amarelo-preto-de-pupilas-dilatadas em minha direção.

Voluntariosa a bichinha!

Resisto. Concordo com Márcio que está na hora de entenderem que é uma casa de roqueiros. Se toda a vizinhança já o sabe…

A sequência de “Sirens” é “Infalible”, mais cadenciada, mas de riffs agudos, que fazem Lóki levantar as orelhas, mas nem por isso sair de sua pose descansada. Olha em minha direção como a perguntar: “É isso mesmo?”

Eu sorrio sem desviar o olhar e ele volta, obediente, a fechar os olhinhos pra dormitar.

“Bom garoto”!

Maya já não me olha, mas nem por isso abandona a posição estratégica. Ensaia deitar como esfinge e suspeito que já não lhe incomoda tanto o som e continua distante por pura rabugice. As pupilas já não estão dilatadas, as orelhas voltaram a apontar para o teto e o formato do olho relaxou na posição amendoada, que lhe dá aquele ar característico de descaso.

Eu a ignoro também.


“Começo a escrever este texto sobre eles, mas
mantendo uma meia atenção em minha visão periférica”


Começo a escrever este texto sobre eles, mas mantendo uma meia atenção em minha visão periférica.

Dali a pouco, percebo um vultinho negro aproximando-se à direita da tela do laptop.

Maya adianta sua posição alguns passinhos, até a porta da sala. Olha pra um lado, para o outro, observa Lóki deitado despreocupadamente, olha pra mim de novo com a cabecinha meio pendendo pra um lado, como numa interrogação.

Dou uma piscadinha. Ela não.

“Metidinha”!

Exatamente nesta hora espocam pelas caixas as guitarras nervosas de “Mind Your Manners”.

Susto!

Maya corre desenfreada de volta para o quarto e some. Lóki levanta-se calmamente e vai atrás dela. Na certa tentará acalmá-la a lambidas, como já o vimos fazer tantas vezes. Um cavalheiro cuidador este meu menino!

Espero.

Nada.

Demora dez minutos pra que Lóki comece a voltar, vencido.

“Maya teimosa”!

Na sala, Loki dá uma volta inteira de reconhecimento por toda a área de circulação, esfregando-se em pés de mesa, de sofá e em nossas pernas antes de voltar à pose “deitado-despreocupadamente” ao lado de minha poltrona. Começa a se limpar a golpes de lambidas – uma lindeza, não canso de assistir – e relaxa ao som de “Alive”.

Oooooooh… I’m still alive / Hey, hey, I, oh, I’m still alive

Eles também vão sobrevivendo.

Agora silêncio na troca de faixas. Identifico nova pasta do pen drive sendo lida…

… E o som cospe a algazarra sonora do início de “Around the World”, dos Red Hot Chilli Peppers, que o Ma reverencia de braços pra cima, achando-se em um show de rock.

Desta vez Lóki se assusta e corre desabalado para o quarto, derrapando na curva do corredor e divertindo-nos com o barulho de suas patas escorregando pelo piso frio.

“Paciência. Vão ter que se acostumar”, decreta Márcio.

Eu concedo e venho terminar este texto imaginando como será quando eu tiver de apresentá-los ao Aerosmith ou ao Queen – o que, fatalmente, vai acontecer em algum momento deste fim-de-semana de folga… Ah vai!

Lóki & Maya – uma relação

A relação entre meus gatos, Lóki e Maya, é de amor e ódio desde que ela chegou à nossa casa, pouco mais de um mês depois dele – ela com quatro, ele com três meses.

Era novembro de 2016.

Eu andava de muletas, após quatro meses de imobilidade total e cerca de 30 dias reaprendendo a me mover com andador, por conta do acidente sofrido em julho. Márcio começava a planejar sua volta ao trabalho após meses parado só para cuidar de mim.

Nos primeiros dias de Maya em casa, Lóki fez greve de fome. Vivia de orelhas arrebitadas para trás – sinal de braveza nos gatos – a evitar os cômodos em que ela transitava. Trocavam sibilos ao se esbarrarem pelos corredores.

Preocupei-me.

Consultei amigas gateiras, que aconselharam: “dê-lhes mais uns dias”. E eu dei.

Após uma semana, já se alimentavam lado a lado e compartilhavam sonecas no mesmo cômodo. Logo passariam a dormir lado a lado também sobre sofás, camas e no arranhador caseiro – um no topo, outro na redinha de baixo – que montei a partir de um banco de madeira, tapetes e cordas.

Hoje chegam a dormir entrelaçados, com o queixinho de um repousando sobre o pescocinho do outro. Uma lindeza de ver!

Quando compartilham a mesma fonte de água – geralmente uma torneira de banheiro que abro a pedidos (miados) -, derreto-me de paixão.

Deram um trabalhão quando Maya entrou no cio, uma semana antes de sua cirurgia de castração. Lóki já havia passado pela sua, mas ainda assim caiu na sedução da bichinha – quem o condenaria?

Castrados, ainda se atracam de vez em quando, mas para brigar, a golpes de unhas e dentadas, sem que nenhum dos dois saia machucado. Dali a pouco voltam às boas, feito irmãos.

E não se largam. Nenhum fica muito tempo sozinho em um cômodo sem sair para descobrir aonde está o outro.

Não raro assistimos a Lóki – o afetivo da dupla – lamber rosto e pescoço de Maya, num carinho de macho cuidador nem sempre bem recebido. Quando está de ovo virado, ela o rejeita com uma patada na fuça, que ele revida jogando-se em cima dela para outra briga, daquelas de rolarem pelo chão (assista a seguir).

Mais individualista, Maya nem liga para os miadinhos de protesto de Lóki em dia de banho. Já ele fica esperando à porta do box, perdido em longos miados de aflição ante o escândalo de Maya ao ser banhada – e é um baita escândalo! É necessário dois de nós para banhá-la, pois a danada arma as unhas, debate-se e nos arranha de todo jeito tentando se livrar, enquanto mia alto de desespero, como se estivesse sendo castigada.

Noturnos, continuam ativos na perseguição um ao outro muito depois de seus humanos recolherem-se para dormir – ouvimos seus trotes ecoando pelos corredores e móveis antes de cedermos ao sono.

Lóki diverte-nos com sua peraltice incorrigível, e Maya deleita-nos com seu charme arrebatador (como é linda!).

De manhãzinha, na cama, aninham-se sobre meu corpo (tá vendo meu pé lá atrás? rs)

Juntos, eles me ensinam paciência, pois não dão seu afeto na primeira hora ou incondicionalmente – tente pegá-los no colo sem suas concordâncias, por exemplo, e eles se debaterão até se livrarem. Quando estiverem prontos, eles mesmo se oferecerão a carícias e colos, como uma concessão a nós.

De manhãzinha, perto do nascer do sol, ambos vêm para nossa cama de casal. Maya se acomoda em posição de esfinge sobre meu peito ou barriga, e Lóki se enrodilha no espaço entre minhas pernas cobertas, onde sempre tem um travesseiro para amortecer o contato de meu fêmur operado com o colchão ortopédico.

E assim ficam até eu fazer o primeiro movimento de acordar, que eles brindam com lindas espreguiçadas e miados de “bom dia”.

É enganosa a ideia de que gatos não sabem amar. Amam um amor não-servil, mas inequívoco, cheio de presenças silenciosas, olhares demorados, mordidinhas indolores e chamegos de corpo todo em nossas pernas.

Impossível não amá-los de volta com a mesma dignidade.

 

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