Categoria: PALAVREIRA

Um certo tipo de solidão

Existe uma solidão que não é de falta de gente, mas de experenciar uma situação que ninguém pode compartilhar com você ou imaginar como é. É como olhar as pessoas em torno de si – mesmo as mais próximas – através de um vidro que nos separa do restante da humanidade.

Eu me senti assim durante uma crise de depressão, mas então existia uma grande dor a me desconectar até de mim mesma – não me reconhecia…  passei a desgostar de tudo o que costumava me dar prazer (música, leitura, cinema, parentes, amigos…).

Mas descobri que não existem só as solidões ruins.

Durante vários períodos de recuperação do acidente senti novamente este vidro me isolando de todos – até de quem eu dependia para as mais elementares necessidades, meus cuidadores. Mas então não havia “a grande dor”, só uma grande percepção, como um estado de alerta constante.

Acho que precisamos de vez em quando dessa solidão. Com ela passei a olhar com mais atenção para as coisas do cotidiano que fazia automaticamente antes e também para as pessoas.

Re-hierarquizei o valor de tudo.

Desenvolvi uma gratidão retardatária por tudo o que podia fazer antes – e fazia no piloto automático, sem dar grande importância -, como andar rápido, correr (não fazia muito, mas deveria), dançar (adoooooro), ir ao banheiro e tomar banhos sozinha, dirigir um carro para onde quisesse… olhar – mas olhar meeesmo! – os caminhos.


“Desenvolvi uma gratidão retardatária por tudo o que podia fazer
antes – e fazia no piloto automático, sem dar grande importância”


E me fazia feliz saber que aquela imobilidade não era definitiva, que, com tempo e esforço, eu voltaria a fazer tudo.

Havia, sim, dias em que acordava triste, com um sentimento de urgência de voltar ao mundo. Eu não os evitava. Vivenciava as tristezinhas pacientemente… esperava passar. Sabia que passariam.

Passavam!

Era fácil enquanto só tinha minha recuperação para me preocupar.

Mas será que conseguirei manter isso? É a questão que tem me vindo muito ultimamente, conforme se aproxima a data da volta ao trabalho e, com ela, todos os gatilhos das antigas ansiedades.

Procuro me abastecer de leituras para a alma… tudo o que me cai nas mãos para lembrar-me que podemos escolher como viver e que teremos sempre ajuda (se a pedirmos).

Por indicação da querida Solange Bataglion, comecei a ler “Todo Mundo Tem um Anjo da Guarda”, do médium católico (sim, católico!) Pedro Siqueira.

Desde então tenho reservado o último momento de minhas orações de antes de dormir para tentar estabelecer contato com o meu. Por ora, tenho lhe endereçado pedidos de ajuda para manter os “ganhos” e administrar as perdas do último ano, mas tenho fé de que chegará o momento de só agradecer.

Que assim seja.

‘Harry Potter’ é universal e atemporal

Logo que a febre em torno da saga Harry Potter chegou ao Brasil, torci o nariz pensando: “se é best-seller, não deve ser bom” (nós e nossos preconceitos!). Mas minha auto-regra, de só me permitir criticar o que conheço, salvou-me, porque fui ler. E não consegui parar! Passei até a experimentar uma espécie de “síndrome de abstinência” (uma tristezinha misturada com um desejo louco de “quero mais”) cada vez que terminava um livro, tão viciada ficava na leitura.

Apesar de a obra estar catalogada como infanto-juvenil, eu já tinha uns 30 e poucos anos quando aderi a seu fã-clube. Conheci, desde então, algumas dezenas de amigos da mesma geração ou mais velhos que também a adoram. Somos a prova de que as obras de qualidade dialogam com todas as faixas etárias. E eu explico a seguir como Rowling consegue isso:

Além de muito bem escritos e cuidadosamente bem traduzidos (Deus sabe como isso é importante!), os livros da saga Harry Potter agregam vários gêneros sob o guarda-chuva da ficção infanto-juvenil: suspense, romance, toques de terror e doses cavalares de críticas social e política – estas últimas explicitadas no universo/cenário que a autora constrói para seus personagens atuarem.

A narrativa é cheia de camadas, que convivem sobrepostas. Cada leitor alcança um número delas, conforme o tamanho de seu repertório interno. Vejamos:

As crianças, por exemplo, alcançam a camada mais exposta dessa construção, que é a aventura em si.

Os adolescentes avançam uma além, ao reconhecerem (e se reconhecerem) nos personagens as motivações que os movem por cada aventura.

E os adultos mais intelectualozados são aptos a enxergar arquétipos contemporâneos e representações de estruturas sociais e de poder – tudo disfarçado por uma embalagem de fantasia.

E os cultos ainda podem se divertir identificando fontes culturais onde Rowling foi buscar referências. Por exemplo: o latim é usado na obra para nomear feitiços (“crucio” = eu torturo, “accio” = eu conjuro, “diffindo” = eu reparo) e personagens (“Severus” = severo, “Lupin” = lobo, “Albus” = branco, todos boas descrições de seus donos);

A autora foi buscar na cultura greco-romana nomes para criaturas fantásticas (centauros, basiliscos, mantícoras, esfinges, fênix, por exemplo) e personagens cujas características têm tudo a ver com os mitos que referenciam. Exemplos: Minerva, deusa da sabedoria, nomeia na saga a professora mais sábia da escola de magia Hogwarts, McGonagall; e a deusa da lua empresta seu nome a Luna Lovegood, a colega de Harry considerada meio “lunática” pelos bullyers de plantão.

Já a jornada do próprio Harry Potter se encaixa no conceito do pensador norte-americano Joseph Campbell (vide livro “A Jornada do Herói”).

Entre as representações sociais mais didáticas da saga está a de uma muito familiar à nossa história recente. No quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix (ALERTA DE SPOILER!!!), a autora descreve brilhante e didaticamente um regime de opressão, quando o Ministro da Magia, determinado a manter seu poder, envia uma inquisidora a Hogwarts, que adota medidas autoritárias para sufocar liberdades de opinião e  livre expressão.

A criança pode não fazer a analogia com a realidade logo que lê a história, mas seu inconsciente o fará quando seu cérebro atingir a idade certa. Adolescentes e adultos o farão em seus próprios termos e conforme (repito)  seus repertórios internos e disposições  à reflexão (nem todos estão dispostos).

Todas essas camadas e referências, em minha opinião, tornam a obra universal é riquíssima. Estimulam o leitor a buscar mais conhecimento – parece que está só entretendo, mas está também enriquecendo seu repertório..

E a fantasia é de respeito! Criativa e inteligente, também apreciável por todas as idades.

Atemporal

Considero genial a autora distribuir a saga Harry Potter por sete livros, sendo um para cada ano da vida de seu protagonista, durante um período nevrálgico da formação humana (dos 11 aos 17 anos). Sobretudo nas culturas ocidentais, é a fase em que ocorrem os ritos de passagem da infância para a adolescência, que, em si, já é uma preparação para a entrada na vida adulta. Todo ser humano, em qualquer era da história conhecida, passa por esses ritos, o que também torna a saga atemporal.

Assim é que, no primeiro livro, o bruxinho e toda sua geração assemelham-se a “telas em branco” prestes a terem iniciada a “pintura” do adulto que serão. As tintas são as experiências pelas quais passarão, e os pincéis, as escolhas que cada um fará diante de cada situação.

O padrinho Sirius Black lida com as dúvidas de Harry: ‘todos temos o bem e o mal dentro de nós’

Não por acaso a autora bate muito na tecla das escolhas como determinantes do “destino” – acima da genética e da crença no pré-determinismo. Harry, por exemplo, passa grande parte da saga atormentado pelo medo de estar condenado ao mal, como Voldemort, já que teve uma primeira infância muito similar à do vilão e carrega uma ligação interna com ele desde o episódio traumático da morte de seus pais. É lindo ver como ele vai, aos poucos, chegando à conclusão de que pode escolher e que tudo o que viveu até ali o municiará em cada tomada de decisão.

Amizade e amor: norteadores de escolhas

Seus coadjuvantes mais próximos – e em uma certa medida, co-protagonistas –, Roni e Hermione, atravessam os mesmo ritos, cada um a seu modo, a partir da própria bagagem interna, mas com um sentimento comum a uni-los que faz toda a diferença na hora das escolhas: a amizade. Não por acaso o mesmo sentimento necessário para seguirmos a premissa ética de “fazer ao outro o que gostaríamos que fizessem a nós mesmos” – variação racional de um ensinamento deixado por um “cara famoso” há cerca de uns 2 mil anos.

Por tudo isso, não tenho dúvidas: “Harry Potter” não é só o fenômeno editorial de uma geração, mas um clássico. Ou seja, é para sempre!

 


P.S.: No meu blog de cinema (CINÉLIDE) também tem texto sobre a saga, escrito na ocasião de lançamento do oitavo filme da franquia do cinema: “Harry Potter: lições que podem salvar uma geração


 

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Nos filmes, atores também passam da infância à adolescência sob os olhares do público

Maya (ou a gata mais linda do mundo)

O nome é Maya, os apelidos “Neguinha” ou “Gordita”… mas tanto faz… ela não atende por nenhum! Costumo dizer que seu nome só serve para sabermos como nos referir a ela.

Sua origem não explica a pose e o comportamento indolentes de “lady”. Conta sua primeira protetora (a querida Inês Rodrigues) que foi resgatada junto a um morador de rua, após ter sido abandonada pela dona de sua mãe.

Sabe-se lá o que comeu então, pois chegou já fraquinha do intestino – uma diarreia que não tinha fim com remédios e só melhorou após testarmos várias rações e acertarmos com uma (cara!) à base de arroz e frango. Ainda assim, volta-e-meia temos que corrigir uma ou outra ocorrência com pasta de aminoácidos (que ela odeia)!

Preguiçosa, Maya parece viver só pra dormir pelas camas, caixas, arranhador e pias do apartamento – ou onde bater o melhor sol.

Enquanto escrevo este post, por exemplo, Márcio tenta registrá-la pela lente do celular toda esparramada no chão, no sentido da fresta de sol que entra pela janela (foto abaixo). Mas basta ela perceber a atenção pra começar a rolar de um lado pro outro, contorcendo-se em dengos.

Abusa do charme, a gostosa!

Não costuma se dar ao trabalho nem de miar. Sabemos que está com fome quando se senta ao lado de seu pratinho vazio e nos endereça um olhar inquisidor. Quando o faz – muito raramente -, sai um sonzinho agudo, baixiiiiinho, que até duvidamos se ouvimos mesmo.

As exceções são os dias de banho… Aí sim a miadeira é alta e angustiada.

Arisca, Maya só dá atenção a um humano quando lhe interessa algum biscoito sabor carne. Blasé, interessa-se pouquíssimo pelo que acontece em torno de si – o maior dos barulhos em casa merece-lhe, no máximo, uma semi-abertura lenta dos olhinhos amarelos.

Adora uma carícia!

Adora uma carícia, mas debate-se toda quando lhe pegam no colo. Não porque não goste, mas porque é ela quem decide a hora de interagir com seus humanos. Quando quer, sobe em nossas pernas ao sofá e afofa o tecido de nossas roupas antes de enrodilhar-se em nosso colo. Na cama, quando está para amanhecer, deita em posição de esfinge sobre meu peito e assim fica até eu fazer os primeiros movimentos de levantar.

E que fotogenia! É linda vista de qualquer ângulo, em qualquer pose, sob qualquer luz… para o que contribuem os olhos claríssimos, em contraste com os pelos longos e eriçados, que lhe arredondam ainda mais a silhueta fofinha.

Pra mim, é a gata mais linda do mundo!


Leia também “Leia também “Loki (ou pode chamar de ‘demoninho’)


 

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I

Loki (ou pode chamar de ‘demoninho’)

Silvia Pereira

Frame do vídeo em que o vi pela primeira vez

Foi paixão à primeira vista. Quando vi o jeito curioso daquele filhote mover a cabecinha – que parecia maior que o corpo – e o olhar torneado de preto, feito kajal de maquiagem indiana, parecia que eu já conhecia aquela bolinha de pelos cinzentos com estampa de tigrinho.

Foi em um vídeo que a namorada de um amigo postou na internet que vi pela primeira vez aquela mimosura. Brincava com qualquer coisa que lhe roubasse o olhar, parecendo ter déficit de atenção – por que será que me identifiquei (rs)?

Eu não tinha gatos desde minha primeira infância, mas sempre quis – o marido proibia, cedendo ao preconceito geral de que são animais egoístas e traiçoeiros.

Então veio o acidente e aquela rotina toda. No ponto em que Márcio se prepara para voltar ao trabalho, a iminência de ficar sozinha pela primeira vez com minha convalescença me deu argumentos para exigir um bichano.

A viagem a Jaú para buscar a “bolinha de pelos cabeçuda” foi minha primeira após o acidente. Chegou toda ansiosa, miando muito de susto. Passei toda a viagem de volta cuidando de sua miadeira desesperada com cafunés e colo (com pouco sucesso).

A resistência do Márcio a gatos durou uns 10 minutos

A resistência de Márcio a gatos durou uns 10 minutos – se tanto.

Chamamos a bolinha de pelos de Maya por uma semana inteira até a primeira ida ao veterinário, quando descobrimos que “ela” era “ele” – o sexo dos filhotes demora a aparecer, favorecendo o engano.

Virou oficialmente Lóki – em homenagem ao deus da travessura e ao álbum solo do mutante Arnaldo Batista (“Cê tá pensando que eu sou lóki?”) -, mas pode chamá-lo também de “demoninho”, como Márcio faz sempre que o flagra numa traquinagem.

Explora as mais altas prateleiras

Quando entra no que chamo “modo Gremlin”, corre pela casa atrás de mosquitos e borboletas, marcando nossos móveis com seu parkour endiabrado; escala as telas que protege janelas e sacada e explora as mais altas prateleiras. Se algo cai ao chão, perto dele, esqueça! Dificilmente terá pernas para alcançá-lo antes dele se meter embaixo de uma cama com o tesouro à boca – pra ter de volta, só esperando a criatura cansar do brinquedo (praticamente um “gatorro”).

Para canalizar um pouco sua energia, gastei horas terapêuticas construindo-lhe um arranhador a partir de um banquinho alto de madeira, cordas e tapetes velhos. Tenho vídeos hilários dele brincando com o sininho que pendurei em um dos lados (assista vídeo abaixo) e fotos lindas de suas sonecas na redinha que improvisei na base (sua energia segue em alta, obrigada!).

Apesar da hiperatividade, Lóki chegou com tudo o que gosto em um pet. É carinhoso do tipo grudento mesmo – adora um colinho, segue-me pela casa e, se pego o laptop, já pula em cima para tentar roubar para ele toda a atenção. Manhoso, mia como se conversasse comigo. Sociável, nunca foge de visitas e se oferece para carinhos sem pudor nenhum. Mata de rir com sua atrapalhação e poses sem-modos.

Minhas postagens nas redes sociais ficaram monotemáticas após sua chegada, seguida pela de Maya, a gata (sobre a qual escreverei em um próximo post), porque eles encheram de alegria meu período mais solitário de recuperação.

Ainda enchem.

 

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‘Melhor a cada dia’

Silvia Pereira

Sempre invejei as respostas de meu colega José Manuel Lourenço àquelas protocolares perguntas “Como vai?” ou “Tudo bem?” (para a qual ninguém quer uma resposta de verdade):

“Eu estou sempre bem, estou sempre bem!”, responde nosso Mané. E está mesmo. Por escolha, vontade, chamamento, que o universo entende e obedece.

Fiz yoga, cresci no espiritismo e sou uma curiosa das filosofias que o livro “O Segredo” compilou, por isso acredito que a palavra é uma forma-pensamento com o poder de transformar a nós e nosso entorno.

Na prática, porém, eu nunca conseguia responder aos cumprimentos como o Mané. Se tentasse, tinha certeza de que me sentiria ridícula e falsa aos olhos de todos, porque não basta dizer qualquer coisa da boca pra fora. Apesar de toda teoria que eu engolia, nunca fui, assim, uma otimista – pense numa espírita sem muita fé.

Saber não é acreditar.

Daí que, concentrada na recuperação de minhas fraturas, desenvolvi uma percepção de como a melhora física respondia a meu esforço fisioterápico devagar e muito sutilmente… cada dia um movimentinho novo, uma dor um pouco menor, um músculo começando a acordar.

Tudo a conta-gotas, mas acontecendo… e eu vendo/sentindo.

Passei a acreditar que toda e qualquer melhora continuaria vindo assim, um pouquinho por dia, contanto que eu continuasse fazendo minha parte.

E veio.

De repente – e sem perceber, juro – já estava respondendo àquelas perguntas-cumprimento das pessoas com um: “Melhor a cada dia”. E sempre me lembrava rapidamente do Mané ao responder.

Eu, que sempre temia o pior, aprendia assim a acreditar no melhor.

Quase posso sentir os machucados de dentro começarem a melhorar também.

O universo encontrou seu jeito de me ensinar.

As lições que a dor oferece

Silvia Pereira

Dia desses minha terapeuta perguntou, à queima-roupa, o que aprendi com as experiências do último ano de recuperação de fraturas nas pernas.

Emudeci. Não tinha a menor ideia.

Desde então fico esquadrinhando memórias recentes pra tentar entender o que ficou para além dos fatos.

Ontem, na volta do médico, enquanto revivia o esforço de obrigar braços e perna boa a impulsionar meu corpo escada acima, trombei com a consciência de uma das lições que as dores físicas me ofereceram (nem sempre a gente aceita o que é ofertado, que fique claro): a de conseguir manter foco no momento presente – objetivo de toda meditação.

Antes do acidente havia tantos “e se” nublando minha consciência enquanto o cérebro tocava as ações do presente no automático: e se a renda do mês ficar aquém das contas a pagar? E se o mês que vem eu não tiver mais emprego? E se eu não for suficientemente capaz? E se nada der certo… etc e etc?

Foi assim que acabei por não enxergar um sinal vermelho.

Mas lembro-me agora de que, no período pós-acidente, às voltas com dores frequentes, imobilidade forçada e dependência total de outros, meu pensamento era completamente desligado das preocupações comezinhas do cotidiano.


“Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava
liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo”


Assim, do acordar até o adormecer, eu focava única e exclusivamente nos desafios do dia: conseguir fazer todos os exercícios da fisioterapia, lidar com o trabalhoso processo de usar a comadre, suportar os medicamentos abrirem um caminho de fogo nas minhas veias, vencer os esforços e dores do banho, exercitar a paciência esperando pela ajuda necessária para fazer tudo isso.

De certa forma, era libertador acordar e sentir-me comprometida apenas com o “agora” de cada dia. Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo. E como o sono era melhor!

Talvez por isso tenha sido relativamente leve meu fardo, o que faz eu me sentir uma impostora sempre que alguém elogia minha força. Não foi consciente e nem por esforço meu. Simplesmente não havia escolha. Foi como se o cérebro tivesse ligado um botão de “funcionamento de emergência” à minha própria revelia.

Ainda assim, houve momentos de rendição à melancolia e às lágrimas. Mas até esses tinham prazo de validade, pois sempre chegava a hora de ligar o foco no desafio seguinte.

Se aprendi a lição para todo sempre? Eis a questão… Hoje já me flagrei cedendo a ansiedades antigas, conjecturas de futuro… novos “e se”.

Já não sei se conseguirei reproduzir este “funcionar mais leve” quando voltar à minha rotina de antes – Deus sabe que somos convidados a nos sabotar o tempo todo -, mas é certo que não tenho mais desculpas.

Se voltar ao “sonambulismo” não será por falta de escolha, mas total incompetência.

Um braço de vento frio cutucador de memórias

Hoje acordei com um braço de vento frio me cutucando na cama. Entrou rápido, logo que o Márcio Pelegrina abriu a janela pra deixar entrar a luz do dia, e foi direto me acordar pra sua presença.

Os elementos devem saber da gente. De consciências indissociáveis, devem compartilhar fofocas sobre o que vai dentro de nós e que é primal, parecido com a matéria de que são feitos.

Este braço de frio chegou sabendo que gosto de como o amálgama de tantos dele trazem os dias de inverno, tão raros em minha cidade.

Sempre fui de avessos: gosto de ver o mundo molhado de chuva quando todos preferem o sol e me agrada nosso inverno ameno, com seus cheiros umedecidos.


Tenho saudades de conseguir ver o belo onde os adultos só viam pobreza e lama


O frio enclausura as pessoas entre paredes – a esta hora eu deveria estar ouvindo gritos de adolescentes jogando bola na quadra da escola com muro de frente para o meu prédio -, mas não. Não me enclausura.

Tanjo muletas e hastes de titânio para a sacada do apartamento pra sentir o mundo, que me parece mais limpo banhado em neblina e sol pálido. Parece também mais calmo. Deito olhos e ouvidos para além do parapeito e não encontro a mesma algazarra de buzinas e gente tanta passando pra lá e pra cá.

O cutucador deve me conhecer de outros tempos, pois acendeu memórias antigas de mim em nossa casa à margem de um Ribeirão Preto margeado por mato alto e a avenida de terra. Pra economizar agasalho, mamãe tirava os corta-febre dos armários pra nos cobrir no sofá, onde eu gostava de ficar aconchegada assistindo “Sessão da Tarde”, nas férias de julho. Algumas noites convencíamos o papi a fazer sua famosa gemada, com cheiro de canela em rama que se espalhava pela casa.

Também guardo uma imagem de abrir a janela do quarto de minha mãe, que dava para a garagem sem muros, e ver uma senhora arrastando seu carrinho de feira no meio da rua – usava-se pouco as calçadas em ruas mansas como aquela. Os matinhos das sarjetas ainda brilhavam de gotículas de sereno e o cheiro de terra molhada inundava de prazer minhas narinas!

Tenho saudades de conseguir enxergar o belo onde os adultos só viam pobreza e lama. Com o tempo, adquiri um mau costume de ver o mundo pelos olhos dos outros e acabou que este jeito de olhar se transformou também no meu.

Mas hoje o cutucão do tempo trouxe de volta lembranças daquela criança que o frio e seus cheiros deixavam feliz e tive vontade de contar.

Sobre a chuva e memórias de infância

* Silvia Pereira

Sempre adorei ver e sentir o mundo molhado de chuva. Gosto de como fica o ar, do cheiro de agradecimento das plantas, do verde vibrante que elas espreguiçam ao toque dos pingos, do barulho deles caindo mansos no chão quando chuva fina e do seu cochicho quando garoa.

E como tenho saudades do cheiro de terra molhada de minha infância! (não o encontro mais pela cidade impermeabilizada)

Cresci numa avenida sem asfalto que margeava o córrego que dá nome à minha cidade natal. Lembro-me de correr para a janela do quarto de mamãe, que dava para a rua, para aspirar os cheiros e cores da terra molhada – para os adultos, compunham um quadro desolador de lama, mato e água suja.


“E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na
chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas”


Sempre achei aconchegante o escurinho que ficava na sala de nossa casa, toda fechada – uma raridade em um tempo de baixa criminalidade, quando as portas passavam o dia abertas, com vizinhos entrando e saindo sem bater palmas (campainhas eram luxo) e as crianças brincando na rua.

Às vezes, em dias de chuva, eu improvisava uma sala de cinema, reforçando a proteção das cortinas da sala com cobertores. Sentia-me protegida naquele escurinho temperado pelo barulho da água caindo fora.

E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas que algumas casas apontavam para as calçadas, pulando poças ou aterrissando nelas!

E não me resfriava. Mamãe recolhia conformada a roupa ensopada que eu deixava cair no canto do banheiro antes de me atirar sob o chuveiro quentinho. Eu dormia feliz em dias de chuva!

Enchentes

É uma ironia que eu tenha aprendido a amar a chuva tendo tido bons motivos para temê-la na infância. A avenida em que cresci era a Álvaro de Lima, que aguardou asfalto por décadas de promessas de políticos em campanha e um pouco mais por obras de contenção de enchentes no córrego Ribeirão Preto, que margeia.

Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio. Quando o transbordamento ganhava a rua, era uma correria geral em casa para dar conta de erguer móveis sobre cavaletes e subir utensílios para cima de camas, guarda-roupas e sofás antes da “grande invasão”.

Após anos de perdas valiosas – de móveis a lembranças afetivas insubstituíveis -, minha família ganhou uma eficiência espantosa em preparar-se para a enchente com um mínimo de prejuízo.

Eu me ressentia de ser mandada para casa de vizinhos de ruas mais altas, enquanto minhas irmãs ficavam para ajudar na operação. Lembro-me de assistir com inveja, no colo de um vizinho, à minha irmã do meio nadando na rua alagada como se numa piscina.


“Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe
abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio”


Anos mais tarde soube – porque não revelavam muita coisa à caçulinha da família – que a “diversão” lhe rendeu uma nefrite (na certa engolira a água contaminada). Até hoje seus rins guardam memória da nefropatia, que quase a levou de nós, marcando um período de sofrimento para meus pais.

E pensar que as enchentes de minha infância são lembradas como as dos “bons tempos” pela família, porque a água nunca subia acima de meio metro dentro de casa – passávamos o ano inteiro olhando para aquela faixa marrom que a invasão do córrego deixava em nossas paredes.

Minha família conseguiu mudar-se para uma Cohab em minha adolescência, mas alguns anos depois a mesma irmã que quase morrera de nefrite foi morar com o marido na casa de nossa infância. A fachada ganhou grades altas e, quando suas filhas chegaram, já não tinham permissão de brincar na rua.

A cada ano, as enchentes deixavam uma faixa mais alta de sujeira nas paredes – resultado de adensamento populacional sobrecarregando os córregos com esgoto sem tratamento.

Eu trabalhava fora da cidade quando recebi, desesperada, a notícia de que a família de minha irmã fora resgatada de sua própria casa por um bote do Corpo de Bombeiros, após assistir do telhado a água engolir todos os seus pertences.

Aprendi, enfim, a odiar enchentes.

Nasce Bernardo, um virginianinho

Em um dia triste para nossa jovem democracia, chegou Bernardo, meu sobrinho-neto, rodeado de muita alegria e emoção.
Nasceu virginiano, às 9h20 de 31 de agosto de 2016.
Diz a astrologia que seu ascendente em Libra (signo de seu papai, Matheus) amenizará o caráter rígido de Virgem (MEU SIGNO), aumentando sua delicadeza, sensibilidade, diplomacia, o amor pela arte e pelo belo.
Eu aposto cá com meus botões que a batuta firme de sua mamãe canceriana, Giulia Luiz, regerá com maestria a inteligência analítica e crítica, o poder de decisão, o senso prático e a capacidade estratégica do nativo de Virgem.
Que mistura encantadora será de “razão e sensibilidade” (com sua licença, mestra Jane Austen).
Como não ter esperança ante seu rostinho lindo e com tanto amor no ar?
Lanço ao universo minha prece para que ele integre uma geração com valores muito mais intransigentes de honestidade e humanidade.
Você não herdará um país justo, Bernardo (perdoe nossa geração por isso), mas posso garantir que, com os pais e avós que tem, será bem municiado de amor e princípios para sobreviver e ajudar a fazer dele um Brasil melhor.
Vem querido, vem inebriar de amor esta família louca!
E que a vida siga conforme a vontade Dele.

Sobre os anjos entre nós

O colega Regis Martins costumava repetir uma frase na redação com a qual sempre concordávamos ante cada notícia sinistra: “o ser humano foi um projeto que não deu certo”. Eu mesma trabalhava sob esta vibração até o acidente ocorrer e ser apresentada a uma nova lição: a de que Deus não mantém apenas anjos invisíveis pra cuidar de nós, mas também utiliza pessoas encarnadas para atuar como tais quando nos abrimos para a ajuda.

O acidente que me fraturou as duas pernas não me deixou outra escolha senão a de me abrir feito paraquedas. Fui rodeada por vários “anjos” desde o primeiro segundo do acidente, quando, deitada no asfalto, as primeiras pessoas que vieram ter comigo foram duas enfermeiras que passavam pelo local (coincidência?).


“Deus não mantém apenas anjos invisíveis pra cuidar de nós, mas também pessoas encarnadas para atuar como tais quando nos abrimos para a ajuda”


Foram elas que, calmamente e com muita técnica, tiraram meu capacete e guardaram minha imobilidade até o socorro chegar. Não me lembro dos rostos, mas das vozes de Mônica e Patrícia me acalmando, consolando, ligando para meus familiares.

Em dado momento, até o policial que veio lavrar a ocorrência, sensibilizado por minha preocupação, ligou para meu marido, ao meu lado, para me assegurar de que ele dirigia razoavelmente controlado pela estrada Jaú-Ribeirão.

Levada para a UPA por um ruído de comunicação, nosso anjo da redação Vivi Renosti providenciou célere minha transferência para o Hospital São Francisco, onde me encontrei com o Elielton Martins, que cuidou de toda a burocracia com eficiência e disponibilidade.

Durante os 21 dias em que fiquei internada, fui manipulada e consolada por tantos anjos de branco! A enfermeira Adriana, as auxiliares de enfermagem Regina, Jéssica, Débora, Gabi, Raissa, Patrícia – entre tantas outras cujos nomes não me vêm agora – mostraram-me a “santidade” de suas profissões, que lida diretamente com a dor alheia.


“minha parte nessa história tem sido a mais fácil:
a de ser ajudada, pelo que sou muito, muito grata”


Quantas vezes me abraçaram após uma manipulação dolorosa e me felicitaram por algum progresso ou pequeno ato de coragem!

Elas são pagas para cuidar, mas fazem muito mais que isso. Doam-se!

E o que dizer sobre os anjos de minha família? Não haveria tempo/espaço suficiente para descrever tudo o que têm feito, tirando de seus cotidianos um tempo que sequer acreditavam ter.

Quando penso em toda a ajuda que tenho recebido, sinto-me uma impostora por receber eu os parabéns pela “minha força”. O que me traz a obrigação de esclarecer que, mesmo com toda a dor e impotência, minha parte nessa história tem sido a mais fácil: a de ser ajudada, pelo que sou muito, muito grata.

É, Regis, tem muito ódio no mundo, mas também tem muito amor e solidariedade. É que esses atuam em silêncio.