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Opinião

Empatia

Já vira aquele filme antes. Na verdade, já fez parte de cena parecida inúmeras vezes, mas na maioria delas estava no papel da personagem que ouvia o que não queria ouvir, o que doía, magoava, deixava marca que não se esquece.

Enchia-se agora de uma compaixão inédita por todas as pessoas que lhe fizeram mal e carregam, sem saber, o fardo de sua mágoa.

Ainda lembra-se com rancor da professora que gritava com ela ante a zombaria de toda a classe; da gerente que a humilhava por ciúmes da preferência do chefe; do superior que a espezinhava por achar que ambicionava seu posto.

A professora severa lhe fez estudar como louca para conquistar uma bolsa em colégio particular com expertise para lidar com sua dislexia; a gerente insuflou-lhe coragem para pedir a um intimidante professor seu primeiro estágio remunerado e o antigo superior a levou a procurar, como louca, um emprego melhor.

De alguma forma, cada uma daquelas pessoas que lhe fizeram mal a levaram também a colocar em movimento sua máquina de viver.

Na verdade, deveria ser grata a todas elas.

Mas não… ainda não. A mágoa continuava lá.

E agora, que tinha de tomar uma decisão dolorida, que poderia determinar o rumo da vida da pessoa que mais amava no mundo dali para frente?

E se ela não a perdoasse? E se nunca alcançasse o entendimento de que lhe negava um desejo para seu próprio bem? E se entendesse e, mesmo assim, a mágoa continuasse lá… para sempre…?

Respirou fundo, pesou o que queria e o que devia fazer, mediu alternativas, negociou com os próprios medos… mas em todas as simulações sua razão convergia para aquela decisão dolorida.

Decidiu.

E doeu…

… porque às vezes ser mãe dói mesmo.

Um cheiro de vó

Às vezes, do nada, me vem um cheiro característico da vó Ana. Dia desses o senti em local dos mais inusitados, no meio do pátio da empresa em que trabalho, praticamente vazio no final de tarde.

O cheiro da vó tinha uma mistura de pele antiga com fumo de corda, que ela costumava deixar pendurado em um gancho da sua cozinha. Às vezes eu a assistia montar seu cigarro de palha sentada numa cadeira que colocava na saída para o corredor – sempre o mesmo ritual de cortar um pedaço do rolo, desbastá-lo a canivete sobre um pedacinho de palha e depois enrolá-lo com dedos desfigurados de artrose.

Depois, segurando o cigarro entre os dedos polegar e indicador, sorver a fumaça numa primeira tragada comprida, que lhe encolhia as maçãs flácidas da face, para depois soltá-la no mundo em baforadas fartas.

O que será que ruminava sentada ali com aqueles olhos arregalados e de pupilas perdidas dentro de alguma lembrança?

A vó não era de conversar, principalmente coisas do coração. Não sabia.

Também não era de “melação” – como chamava jocosamente gestos físicos de carinhos. Não me lembro de uma vez em que eu tenha recebido um beijo gratuito seu ou mesmo um abraço.

Mas de seu fogão vintage todo branco de frisos pretos da marca Cosmopolitan sempre saíam, quando eu pedia, ainda que acompanhados de reprimendas, bolinhos de chuva (mesmo sem chuva), bolos de fubá, bananadas e – o que eu mais gostava – mingaus de fubá ou farinha de milho, para aquecer em dias de frio ou nos fazer suar em convalescenças de febre.

Seus últimos anos conosco coincidiram com minha fase de rebeldia adolescente. Jamais a desrespeitei – ai de mim se o fizesse com pais que castigavam severamente o desrespeito aos mais velhos! -, mas também nunca tive paciência com suas ranhetices e críticas indignadas com os avanços geracionais da mulher.

Arrependo-me.

Carrancuda, só vi a vó chorar uma vez, de emoção, no casamento de minha irmã do meio, Liz.

Nós a perdemos pouco tempo depois, aos 68 anos, com pele e corcunda de 90 e pulmões estragados pelos cigarros.

Mas tenho pra mim que seu espírito ainda está por aí a velar por nós deixando de aviso seu cheiro de pele antiga e fumo.

Sobre a importância de uma imprensa forte

No mesmo dia em que a grande imprensa voltava toda a sua atenção à cobertura do deplorável assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, dava no Fórum Econômico Mundial para a América Latina uma chocante declaração, que acabou passando despercebida: a de que os numerosos esquemas de corrupção dados a conhecer pela operação Lava Jato é apenas “10%, a ponta do iceberg” comparado às fraudes que ocorrem nos municípios brasileiros. Ele corroborou tais afirmações com dados de auditorias feitas pela Controladoria Geral da União – uma delas prova que dois terços dos municípios fraudam a compra de merendas escolares, por exemplo.

Nos dias seguintes a essas duas notícias, haters começaram a multiplicar fake news (notícias falsas) redes sociais afora com as mais chocantes calúnias sobre a vida e a atuação de Marielle. Acusaram-na de ex-mulher de traficante a integrante de facções criminosas, quando até organismos internacionais como ONU (Organização das Nações Unidas), OEA (Organização dos Estados Americanos) e Anistia Internacional conheciam seu trabalho em prol dos direitos humanos, especialmente entre as minorias LGBT, de negros, favelados e mulheres.

O que a morte de Marielle tem em comum com a declaração do ministro da Justiça sobre a corrupção no Brasil?

A imprensa!

Explicando melhor: um e outro caso fornecem exemplos de como a imprensa é determinante em nossa apreensão da realidade e tomada de posição do lado certo ou errado da história.

Vejamos:

O importante trabalho que era desenvolvido pela vereadora do PSOL só pôde ser conhecido, para além da órbita de militância social em que ela gravitava, graças à grande imprensa. E a elucidação de seu assassinato, com consequente punição dos responsáveis, só se dará quanto maior for a pressão exercida sobre os poderes pela opinião pública, cuja voz é ampliada… PELA IMPRENSA.

Ao mesmo tempo, a disseminação de notícias falsas sobre ela podem exercer uma pressão contrária, e os assassinos e/ou mandantes poderão continuar mantendo os esquemas que fazem do Rio de Janeiro o inferno que é hoje SE a imprensa “se esquecer” de cobrar soluções para o caso.

Voltando ao alto grau de corrupção nos municípios brasileiros, o ministro da Justiça o atribui ao fato de o jornalismo independente ficar concentrado em apenas cinco dos 26 estados do País – “não há jornais fazendo cobranças sobre ética no setor público em 80% do território nacional”, disse ele com todas as letras.

Dito tudo isso, fica claro o quanto o jornalismo sério e independente pode ampliar a voz de heroínas como Marielle e o como o “marrom” pode calá-las. Mais… sem o primeiro, não enxergamos as causas de nossas misérias sociais. Até dois anos atrás, só sofríamos seus sintomas: saúde, educação e segurança sucateados e ineficientes, criminalidade descontrolada, etc, etc, etc… Já hoje sabemos, graças à operação Lava Jato, com ampla cobertura da imprensa, que muito do dinheiro de nossos impostos tem sido desviado para esquemas corruptos.

E, segundo o próprio ministro da Justiça, ainda há muito a ser denunciado.

Então, que a Polícia Federal consiga desnudar todos e o jornalismo independente amplie-se para todos os estados brasileiros.

Que os jornalistas que estão se formando nas faculdades preocupem-se menos com a via mais rápida de serem bem-sucedidos na vida e mais com o que podem fazer para ajudar nesta ampliação da voz de suas comunidades. Que enxerguem-se mais como instrumentos a serviço de seu entorno, como o fez Marielle e o fizeram grandes jornalistas antes deles.

E que, por fim, os consumidores de notícias, POR FAVOR, sejam menos preguiçosos e procurem por fontes confiáveis de informação antes de compartilhar qualquer coisa que passe por sua timeline.

Uma imprensa forte não se faz apenas com bons jornalistas, mas com leitores que lhe valorizem!

Sobre a estranha ordem das coisas

Ler sobre o novo livro do neurocientista António Damásio, “A Estranha Ordem das Coisas” (editora Temas e Debates), fechou minha garganta com um sentimento de urgência. Faz todo sentido o que ele diz sobre a necessidade de se educar massivamente as pessoas para que não nos matemos uns aos outros, pois é preciso contrariar nossos instintos mais básicos, que nos impelem a pensar primeiro em nossa sobrevivência.

“O que eu quero é proteger-me a mim, aos meus e à minha família. E os outros que se tramem. […] É preciso suplantar uma biologia muito forte”, exemplifica ele à reportagem da revista Prosa e Verso, associando este comportamento a situações como as que têm levado a um discurso anti-imigração e à ascensão de partidos neonazistas pelo mundo.

Antonio Damasio: o neurocientista das emoções

Ele não se refere, porém, àquele modelo alienante de educação doutrinária, em que o educado não questiona nada. Percorremos as últimas décadas lendo e escrevendo livros, compondo e cantando canções contra ela, mas passamos reto pelo ponto de equilíbrio e fomos parar no outro extremo.

Nosso país elegeu um presidente que age como se estivesse sempre em guerra – contra os opositores, contra a imprensa, contra quem discorda – e que defende o armamento da população contra a violência sem perceber o brutal e infeliz paradoxo que isso encerra.

Temos sido educados pela cartilha do individualismo exacerbado, que também é um modo de alienação, pois ignora tudo o que for o outro.

Se não, como explicar que lemos todos os dias, sem nos abalar muito, sobre bandidos que atiram com facilidade em grávidas desarmadas, executam cidadãos comuns por meros bens materiais, promovem chacinas ordenadas por facções do crime organizado e sobre jovens que atiram a esmo em escolas e se suicidam em seguida?

Lemos e assistimos sobre essas selvagerias e continuamos tocando nosso dia, agradecendo intimamente que não aconteceram conosco.

Será que tornamo-nos indiferentes ao que ocorre ao outro?

Se não, por que não estamos nas ruas exigindo educação de qualidade para todos, em vez de ficarmos praguejando nas redes sociais contra esta “estranha ordem das coisas”?

Sobre a doença do Rio (e de nós todos)

Todos temos assistido perplexos à escalada da violência no Rio de Janeiro, que levou à convocação de tropas do Exército para reforçar a segurança no Estado e, na última sexta, à intervenção federal em sua segurança pública.

Repete-se, no Rio, o raciocínio que levou, há alguns anos, à instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nos complexos de favelas. Novamente investe-se em um “remédio” com capacidade de atuar apenas nos sintomas da “doença” do Rio, que é a criminalidade.

Ao contrário do que possa parecer, suas numerosas causas não passam pela vulnerabilidade de polícias mal equipadas e mal pagas – esta é, antes, um dos sintomas, ao lado dos números crescentes de mortes de policiais e inocentes em crimes com abordagem violenta e tiroteios entre facções ou entre policiais e criminosos.

As verdadeiras causas são sociais e todas de responsabilidade de um Estado mal gerido e contaminado pela corrupção, que não cumpre seus deveres constitucionais de garantir direitos essenciais (saúde e educação no topo da lista) a todos os cidadãos, sem distinção de classe ou credo.

Excluídos, os mais pobres têm de escolher entre passar a vida toda dependendo da prestação ineficiente ou quase inexistente desses serviços públicos ou tornar-se parte do problema juntando-se ao crime organizado, que lhe proverá o que o Estado lhe nega (sensação de pertencimento inclusa). Da mesma forma, o policial é confrontado com sua própria escolha: trabalhar honestamente, com salário que não lhe permite morar muito longe das favelas, ou também fazer parte do problema tornando-se corrupto.

É claro que a intervenção do Exército diminuirá os números da criminalidade em um curto prazo, pois é treinado para a guerra – que é o que está ocorrendo hoje no Rio. Mas, assim que terminar, é muito provável que, em poucos anos, esses números voltem ao patamar de descontrole de hoje. Foi assim com o projeto das UPPs e assim será com a intervenção federal se nenhuma “vacina” social começar a ser colocada em prática pelo Estado desde já.

 

Publicado no jornal A Cidade em 21/2/2018

Estamos prontos? *

Entramos em 2018 como em todos os anos anteriores: saboreando ceia, assistindo a fogos, superlotando shows da Virada, sujando praias no Réveillon e curando ressacas. Nos noticiários, o que tornou-se comum nos últimos quatro anos de atuação exemplar de Ministérios Públicos e Polícia Federal: denúncias e acusações de corrupção em todas as instâncias dos poderes Executivo e Legislativo.

Pergunto-me se todos nós, que formamos a grande massa de trabalhadores a arcar com as consequências dos desvios de verbas públicas, já nos conscientizamos de que 2018 não é um ano qualquer… que as eleições marcadas para o segundo semestre não têm a mesma importância das anteriores.

Serão as primeiras eleições presidenciais de uma época em que começamos a enxergar… a ter evidências da corrupção que sempre suspeitamos existir nos bastidores dos poderes que regem nossas vidas cidadãs, e que esse modus operandi contamina a máquina pública muito além do que imaginávamos ou temíamos.

“Minha dor é perceber que apesar de terem feito tudo o que” fizeram, os políticos ainda são os mesmos e vivem como seus antecessores (com o perdão da paráfrase remendada, mestre Belchior!). Ainda vemos um presidente pagar desgaste atrás de desgaste político para atender a fisiologismos partidários; a legisladores votarem – ou não – em projetos que mexem com nossas vidas motivados por acordos e barganhas que os beneficiam pessoalmente, sem a menor preocupação conosco, mas com nossos votos.

Fico pensando se estamos prontos – e, mais importante, se temos coragem – para trocar essa “escola política” por novos rostos e nomes. Mais: será que teremos outros rostos e nomes para formar uma “nova escola política”, na qual possamos depositar confiança e esperança?

2018 será o primeiro ano do resto de nossas vidas cidadãs. Estamos prontos para fazê-lo melhor?

 

* Artigo publicado no jornal A Cidade, em 1º de fevereiro de 2018

Nada a comemorar

Quando uma condenação por corrupção ocorre em um desses países orientais supercivilizados, como a China, as reações, tanto da população quanto dos acusados, costumam ser de vergonha genuína. Pais perguntam-se: “o que fizemos de errado?” Políticos desculpam-se (quando não se suicidam).

No Brasil, os políticos negam tudo até a mais amarga condenação e a população divide-se em um “fla-flu” político. No caso específico da de Lula, muitos foram para a rua comemorá-la com fogos e pixulecos, como numa final de campeonato vencido por seu time – se o resultado tivesse sido outro, os partidários de Lula teriam feito o mesmo.

Desculpem se soo petista para uns e “coxinha” para outros (o “fla-flu” tende a essas simplificações), mas não consigo enxergar motivo para comemorar em nenhum dos casos. Não torci para o livramento de Lula, mas tampouco estou feliz com o que sua condenação e a de tantos outros dizem sobre nosso País e sobre nós mesmos. Nem com como isso reflete em nossa identidade cidadã ou em nossas noções internas de justiça, que influenciam nossas tomadas de decisões no dia a dia – de respeitar uma lei de trânsito a ensinar um filho que não se deve fingir uma falta no futebol.

Além do mais, a punição de um ou dez corruptos não acaba com toda a corrupção. Em estruturas de poder contaminadas, como as nossas têm se mostrado, sempre há os que ficam para inventar novos modos de corromper sem ser pego ou chegam novos corruptos para substituir os antigos.

O que rompe esse ciclo é educação e não estou falando só da formal – até porque esta muitos corruptos tiveram e da mais cara que o ensino particular pode fornecer -, mas da moral, que vem de berço e sofre uma grande influência do consciente coletivo, formado por um conjunto de práticas em sociedade.

Tantas condenações mostram o quanto estamos falhando nisso e que não temos, na verdade, nada a comemorar.

* Artigo publicado no jornal A Cidade em 25/1/2018

 

Carta aberta a um deputado

Caro deputado Beto Mansur:

Entendo que, como vice-líder do governo Temer na Câmara Federal, o senhor tenha lá que defender as decisões do mandatário, mas saiba que isso não lhe dá o  direito de subestimar nossa inteligência.

Suas últimas declarações sobre as decisões judiciais que têm impedido a ministra Cristiane Brasil de tomar posse na pasta do Trabalho chegaram a me dar ânsias de indignação (“Não importa que um ministro do Trabalho algum dia teve uma ação judicial no Ministério do Trabalho. Senão nós vamos ficar preocupados agora que o ministro da Saúde não vai poder ser fumante, que o Ministro dos Transportes não vai poder ter multa de trânsito… Aí nós vamos ficar loucos no Brasil”).

Com o perdão do vocabulário, deputado, a quem o senhor acha que engana com esse papinho “malandro 171” versão “colarinho branco”?

É claro que um ministro do Trabalho com histórico de desrespeito às leis trabalhistas e um Ministro dos Transportes com multas de trânsito não têm moral nenhuma para assumir tais cargos e merecem toda a nossa desconfiança, por motivos óbvios (se não fazem a “lição de casa”, muito menos os deveres principais) – a analogia ao “ministro da Saúde fumante”, o senhor me desculpe, mas é digna de ignorar, pois fumar é uma escolha pessoal que não agride a lei nenhuma que um ministro da Saúde deva defender.

Mas é claro que o senhor sabe muito bem disso tudo, pois duvido que confiaria, por exemplo, o seu rico dinheirinho de parlamentar a um consultor de investimentos com histórico de perdas financeiras.

Da mesma forma, senhor Mansur, nós não temos que engolir diretores de Ciretran com 120 pontos na CNH ou ministras do Trabalho com R$ 74 mil em dívidas trabalhistas.

Sobre “ficar loucos no Brasil” à procura de ministeriáveis sem histórico desabonador o senhor fale apenas por si mesmo, pois este país tem, sim, gente honesta, competente e capaz de assumir cargos de gestão. Mas, claro, o senhor e seus pares não devem conhecer mesmo (cheguem, eleições!).

(*) Artigo publicado no jornal A Cidade em 18/1/2018

O dia em que morri

Ontem eu morri.
Durante os poucos segundos em que um carro que saía do portal de um condomínio fechou minha moto, vi um trailer da minha vida sem mim – vi o carro que vinha em alta velocidade à minha esquerda não conseguir frear e me pegar em cheio após eu desviar em cima da hora do que me fechou; meu corpo voando e caindo sobre o asfalto; as fraturas ou – pior, um fatal traumatismo craniano… minha família chorando no hospital… meu marido assustado, perdido… tudo passou pela minha cabeça naqueles poucos segundos.
Mas o carro que vinha à esquerda conseguiu frear a tempo e nasci de novo.
Parei no semáforo 50 metros à frente trêmula, com mãos suando frio e batimentos no ritmo da bateria da Mangueira, bem ao lado do carro que me fechou. Ao volante, uma mulher elegante, de cabelos escovados e maquiagem impecável, aparentando ter mais ou menos a minha idade.
– Você podia ter me matado… disse eu alto, para que ela ouvisse através dos vidros fechados.
Ela riu…
Riu!!!
Não foi para mim, mas de mim e não era um riso simpático de desculpas, mas um desdenhoso, daqueles que dizem: “não estou nem aí pra você, que não é nada pra mim, segura e linda que estou dentro de meu semi-novo branco com ar-condicionado e vidros com insulfilm.”
Pensei: que tipo de pessoa ri de alguém que quase matou?
Que tipo de pessoa para ao portão de seu condomínio, olha para o trânsito e decide sair, va-ga-ro-sa-men-te, ciente de que está fechando uma moto que vem em sua direção? – “a moto que desvie, fechando o carro que vêm à sua esquerda”… “o mundo que mude para que eu siga meu caminho sem ser incomodada!”.
A bela no veículo branco seguiu seu caminho deixando em mim um sentimento de ser nada.

Olhos de ternura (Seo Dema)

Não me lembro exatamente da primeira vez que  conheci.

Sei que a simpatia foi imediata.

Saquei de cara que seu jeito quieto e sério escondia uma ternura caudalosa que lhe saia pelos olhos.
De rotinas sólidas, por anos Seo Dema acordou sempre à mesma hora, tomou seu café na mesma cadeira da mesa da cozinha, leu os dois jornais do dia – um nacional e um local – e foi trabalhar.

Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação.

Não era de reclamar de nada. Os filhos afligiam-se por isso, pois enxergavam, às vezes, abusos de quem sabia aproveitar-se de seu temperamento humilde e trabalhador.

Também viviam comentando que nunca foi de conversar. Mas era, sim, de gestos, reparei logo.

Meu marido conta, emocionado, das idas para o sítio em sua infância, quando o pai fazia questão de parar no início da trilha de terra entre os canaviais, descarregar a bicicleta e ir guiando o carro na frente, com filho feliz da vida voando pelos barrancos de seu bicicross particular.

O sobrinho lembra com carinho de quando quis treinar futebol contra a vontade do pai e o tio ofereceu-se para ser seu motorista. Aparecia sempre pontualmente para pegá-lo em casa, acompanhava o treino inteiro e o entregava são, salvo e feliz aos pais.


“Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito
e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação”


Tudo sem uma palavra. Apenas uma presença mansa, constante… e os olhos ternos.

Crescidos os filhos, cada um pra sua casa, surpreendia-os durante as visitas deles limpando o carro de um antes que acordasse; enchendo o tanque de gasolina do outro sem que percebessem. Chegando no endereço dos pais um imposto de qualquer filho, ele corria ao banco pagar.

Não era para agradar. É que precisava colocar pra fora de alguma forma o carinho que represava no peito. Era sua forma de “amar” sem precisar falar.

Quando sabia que um filho estava pra chegar de visita, ia para a frente da casa esperar. Não saudava. Abria o portão e cumprimentava como se tivesse acabado de vê-los e entrava junto. Mas nos sentíamos bem-vindos.

E quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio.

Também não conversava muito comigo, mas nem precisava.

Um dia, o vi cuidando de uma família de passarinhos que montou ninho no xaxim de planta que descia pendurado do teto da área de serviço. Minha sogra contava que ele os visitava todos os dias, zeloso dos filhotes que a mãe-passarinha alimentava.

Saquei de uma máquina com lente zoom que trazia emprestada e emparelhei com ele pra “assistir” o ninho. Quietinhos, respeitando a distância, esperamos a família se acostumar com a companhia e disparei a fotografar.


“quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura
nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio”


Como ele não sabia sequer entrar no computador à época – depois que o descobriu, virou habituè do jogo Paciência na tela -, imprimi a melhor foto e confiei a meu marido entregar.

E esqueci.

Em uma de minhas visitas seguinte, muitos meses depois – demorava pra voltar por causa do trabalho –, admirei um quadro de passarinhos pregado na parede atrás da sua cadeira predileta. Não reconheci de pronto, mas ele veio logo em meu socorro. “É a foto que você fez”.

E me senti assim envolvida naquele mar de ternura que até então eu só assistia de longe, feliz de sentir-me no rol dos merecedores de seus gestos.

Em suas últimas semanas, ele não pode mais sentar-se. Não conseguia nem falar e os olhos de ternura quedavam, às vezes, inexpressivos, outras doloridos. Tentava falar às vezes, mas a voz não saía. O que será que diria?

Impotente, só rezo pra que tenha lido em nós todo o amor que líamos nele, para que seu olhar parado signifique que enxerga os anjos que devem estar a velá-lo e para que descanse em paz.

  • ao meu sogro, com carinho, aonde estiver.