‘É o que tem para hoje’

Desfilava, re-desfilava, tirava sapatos, calçava chinelos, trocava palmilhas e voltava, teimosamente, a desafiar seu reflexo no espelho, ensaiando duas, três, quatro, cinco, dez vezes a marcha manquitola.

Ruminou essa fixação por alguns dias após pegar o resultado da última  escanometria – exame radiológico que mede o cumprimento exato de cada perna.

Não acreditou de primeira no laudo: “Como assim encurtamento de 2,4 cm da perna esquerda em relação à direita?” Pois não passou um mês inteiro arrastando (literalmente) um ferro extensor acoplado ao fêmur para forçá-lo a alongar-se? “Não, não é possível, não pode ser verdade”, falava para si mesma.

Mas era!

O exame, seu médico – e o espelho – confirmaram: duas cirurgias, uma infecção e três meses de fisioterapia depois, o ganho foi de apenas 4mm de alongamento.

E pensar que foi preciso quebrar (propositalmente) o fêmur uma segunda vez, para que suas duas partes fossem forçadas a se separarem 1 cm por dia…! O vão entre elas deveria ser preenchido com calcificação natural, mas, segundo o ortopedista, a haste de titânio que sustentava o osso desde o acidente não conseguiu impedir que  voltassem a colar antes do preenchimento.

Depois da negação, veio a frustração – e uma pitadinha de auto-piedade, vá, que ninguém é de ferro! -, mas não demorou a chegar à fase seguinte: aceitação.

Agarrou-se ao lema do último ano e meio de recuperação do acidente – “é o que tem para hoje” – e passou à ação.

Começou por concluir um exercício de desapego que iniciara antes do exame: devolver todos os acessórios que a ajudaram a se locomover durante a recuperação – cadeira de banho, andador, par de muletas.

Como ainda necessita de apoio para subir degraus e transpor obstáculos de calçadas, concedeu-se o uso de apenas uma muleta, mas, para se compensar, comprou uma da cor preferida – um lilás vivo que chama atenção há uns dois quarteirões de distância, pra desespero da amiga fashionista-clássica.

Agora está empenhada no trabalho interior de administrar a própria vaidade feminina ante as perspectivas de mancar para sempre e de nunca mais permitir-se um impulso de comprar qualquer sapato lindo de uma vitrine qualquer. De agora em diante, só calçados que possam segurar palmilhas e suportem adaptações em um salto – é isso ou sofrer mais dores na coluna desalinhada pelas mancadas.

Como boa aprendiz de Pollyanna, quando sente aproximar-se a auto-piedade (esse atraso de vida!), evoca o mantra da gratidão – por andar, por manter autonomia de locomoção, por ter saído viva de tão grave acidente -, respira fundo e dá as costas para o espelho.

Afinal, “’é o que tem para hoje”!

 

2 comentários

    • Rita em 3 de novembro de 2017 às 18:31

    É isso ai
    Essa é a Silvia Pereira
    Vai vai vai sempre pra frente
    haaaaaa vezes breca ,resmunga e depois …….. vai
    descobriras muitas coisas interessantes neste novo caminhar
    bjjjjjj

    • Regiane Ramos em 29 de outubro de 2017 às 10:52

    Resiliência. …seu outro nome é Sil. E by the way … amei a muleta colorida! ?

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