‘Harry Potter’ é universal e atemporal

Logo que a febre em torno da saga Harry Potter chegou ao Brasil, torci o nariz pensando: “se é best-seller, não deve ser bom” (nós e nossos preconceitos!). Mas minha auto-regra, de só me permitir criticar o que conheço, salvou-me, porque fui ler. E não consegui parar! Passei até a experimentar uma espécie de “síndrome de abstinência” (uma tristezinha misturada com um desejo louco de “quero mais”) cada vez que terminava um livro, tão viciada ficava na leitura.

Apesar de a obra estar catalogada como infanto-juvenil, eu já tinha uns 30 e poucos anos quando aderi a seu fã-clube. Conheci, desde então, algumas dezenas de amigos da mesma geração ou mais velhos que também a adoram. Somos a prova de que as obras de qualidade dialogam com todas as faixas etárias. E eu explico a seguir como Rowling consegue isso:

Além de muito bem escritos e cuidadosamente bem traduzidos (Deus sabe como isso é importante!), os livros da saga Harry Potter agregam vários gêneros sob o guarda-chuva da ficção infanto-juvenil: suspense, romance, toques de terror e doses cavalares de críticas social e política – estas últimas explicitadas no universo/cenário que a autora constrói para seus personagens atuarem.

A narrativa é cheia de camadas, que convivem sobrepostas. Cada leitor alcança um número delas, conforme o tamanho de seu repertório interno. Vejamos:

As crianças, por exemplo, alcançam a camada mais exposta dessa construção, que é a aventura em si.

Os adolescentes avançam uma além, ao reconhecerem (e se reconhecerem) nos personagens as motivações que os movem por cada aventura.

E os adultos mais intelectualozados são aptos a enxergar arquétipos contemporâneos e representações de estruturas sociais e de poder – tudo disfarçado por uma embalagem de fantasia.

E os cultos ainda podem se divertir identificando fontes culturais onde Rowling foi buscar referências. Por exemplo: o latim é usado na obra para nomear feitiços (“crucio” = eu torturo, “accio” = eu conjuro, “diffindo” = eu reparo) e personagens (“Severus” = severo, “Lupin” = lobo, “Albus” = branco, todos boas descrições de seus donos);

A autora foi buscar na cultura greco-romana nomes para criaturas fantásticas (centauros, basiliscos, mantícoras, esfinges, fênix, por exemplo) e personagens cujas características têm tudo a ver com os mitos que referenciam. Exemplos: Minerva, deusa da sabedoria, nomeia na saga a professora mais sábia da escola de magia Hogwarts, McGonagall; e a deusa da lua empresta seu nome a Luna Lovegood, a colega de Harry considerada meio “lunática” pelos bullyers de plantão.

Já a jornada do próprio Harry Potter se encaixa no conceito do pensador norte-americano Joseph Campbell (vide livro “A Jornada do Herói”).

Entre as representações sociais mais didáticas da saga está a de uma muito familiar à nossa história recente. No quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix (ALERTA DE SPOILER!!!), a autora descreve brilhante e didaticamente um regime de opressão, quando o Ministro da Magia, determinado a manter seu poder, envia uma inquisidora a Hogwarts, que adota medidas autoritárias para sufocar liberdades de opinião e  livre expressão.

A criança pode não fazer a analogia com a realidade logo que lê a história, mas seu inconsciente o fará quando seu cérebro atingir a idade certa. Adolescentes e adultos o farão em seus próprios termos e conforme (repito)  seus repertórios internos e disposições  à reflexão (nem todos estão dispostos).

Todas essas camadas e referências, em minha opinião, tornam a obra universal é riquíssima. Estimulam o leitor a buscar mais conhecimento – parece que está só entretendo, mas está também enriquecendo seu repertório..

E a fantasia é de respeito! Criativa e inteligente, também apreciável por todas as idades.

Atemporal

Considero genial a autora distribuir a saga Harry Potter por sete livros, sendo um para cada ano da vida de seu protagonista, durante um período nevrálgico da formação humana (dos 11 aos 17 anos). Sobretudo nas culturas ocidentais, é a fase em que ocorrem os ritos de passagem da infância para a adolescência, que, em si, já é uma preparação para a entrada na vida adulta. Todo ser humano, em qualquer era da história conhecida, passa por esses ritos, o que também torna a saga atemporal.

Assim é que, no primeiro livro, o bruxinho e toda sua geração assemelham-se a “telas em branco” prestes a terem iniciada a “pintura” do adulto que serão. As tintas são as experiências pelas quais passarão, e os pincéis, as escolhas que cada um fará diante de cada situação.

O padrinho Sirius Black lida com as dúvidas de Harry: ‘todos temos o bem e o mal dentro de nós’

Não por acaso a autora bate muito na tecla das escolhas como determinantes do “destino” – acima da genética e da crença no pré-determinismo. Harry, por exemplo, passa grande parte da saga atormentado pelo medo de estar condenado ao mal, como Voldemort, já que teve uma primeira infância muito similar à do vilão e carrega uma ligação interna com ele desde o episódio traumático da morte de seus pais. É lindo ver como ele vai, aos poucos, chegando à conclusão de que pode escolher e que tudo o que viveu até ali o municiará em cada tomada de decisão.

Amizade e amor: norteadores de escolhas

Seus coadjuvantes mais próximos – e em uma certa medida, co-protagonistas –, Roni e Hermione, atravessam os mesmo ritos, cada um a seu modo, a partir da própria bagagem interna, mas com um sentimento comum a uni-los que faz toda a diferença na hora das escolhas: a amizade. Não por acaso o mesmo sentimento necessário para seguirmos a premissa ética de “fazer ao outro o que gostaríamos que fizessem a nós mesmos” – variação racional de um ensinamento deixado por um “cara famoso” há cerca de uns 2 mil anos.

Por tudo isso, não tenho dúvidas: “Harry Potter” não é só o fenômeno editorial de uma geração, mas um clássico. Ou seja, é para sempre!

 


P.S.: No meu blog de cinema (CINÉLIDE) também tem texto sobre a saga, escrito na ocasião de lançamento do oitavo filme da franquia do cinema: “Harry Potter: lições que podem salvar uma geração


 

GALERIA (clique numa foto para ampliá-la e abrir a galeria)
Nos filmes, atores também passam da infância à adolescência sob os olhares do público