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‘Todos os dias é um vai e vem…’

por Márcia Intrabartollo   

O casalzinho se foi carregando quatro malas enormes e chegou na outra parte da América só com isso, os longos cabelos lisos dele e os olhos de rolinha dela. Ela começará a dizer “I love you”, como ele faz há tempos. Seus pés dançantes logo acharão um lugar para ensinar seu tango, fato que me atrevo a contestar de leve: brasileiros ensinando tango reforçará a ideia de que Buenos Aires é a capital do Brasil.

‘Brasileiros ensinando tango reforçará a idéia de que Buenos Aires é a capital do Brasil’

Podia ser frevo, mas quem sou eu para dar palpites? A vida é que vai ensinar aos dois o novo ritmo e passo, e a nós também, que ficamos aqui com parte da vida que eles deixam para trás.

Diz o Chico Buarque que “chega a roda viva e carrega o destino para lá”, mas retifico sua composição: carrega o destino para lá e para cá. Nós, aqui, teremos a sensação de sermos um pouco eles, aguando suas plantas, temperando a comida com seus condimentos, como se de repente tivéssemos entrado em uma casa habitada da qual pudéssemos dispor como quiséssemos, desde que mantendo a salvo os discos.

Herdamos orquídeas, rosa do deserto e um pé de erva-doce com botões. Veio um saquinho plástico com um pouco de cúrcuma fresca e uma caixa de temperos que levei no colo. O carro se perfumou de mercadões. A pimenta preta. A canela em pó. A páprica, o orégano, o chimichurri.

No Carnaval, fritamos o anis-estrelado antes de pôr o cogumelo na panela. Ficou bom. Coloquei cravo em pó no leite quente para aproveitar o frescor das chuvas. Nem sei se estou fazendo certo. Estou cintilando nossas comidas de Cintia, a de cabelos escorridos. As flores do pé de erva-doce nasceram loiras como o Paulo. Ponho água nas plantas torcendo para que fiquem saudáveis e floresçam, e eu possa mandar fotos para San Diego e alegrá-los. Está tudo bem.

Ontem tiramos o pó dos discos, acomodamos a coleção de Chico Buarque, Belchior, Milton, Clube da Esquina e tantos outros em um armário. Vimos que alguns devem ter sido anteriormente de outras pessoas, desconhecidos que agora compõem nosso mosaico musical. Encontros e despedidas, não é Milton? “E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”.

Meu bem vai comprar na José Bonifácio o cabo para a caixa de som que ficou sobre uma antiga mesa de costura, que, por sua vez, também herdamos de quem precisou abrir mão para se mudar. Quando a vitrola funcionar, porei, de vez em quando, os discos de tango para que as plantas matem a saudade do casalzinho. Tocarei um disco diferente por dia e pensarei que as vibrações daquelas músicas chegarão a todos aqueles a quem pertenceram.

“A plataforma dessa estação é a vida”, tocará. A vida que voa, circula, muda de mãos, se embrica, se esfrega nas outras e faz intersecções.

Enquanto eu escrevia, eles cruzavam, aventureiros, o Atlântico.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina mundo afora e aprendiz de escritora

Crônica pra consolar gente grande

Balanço os músculos doridos de biribol abrigada numa rede à beira de uma piscina. Após meses (anos?) de perdas e lutos eu e Márcio nos soltamos, gratos, à rede invisível de novos afetos…

Leio ao celular notícias do mundo lá fora… a tristeza de notícias sobre governantes obtusos, o ódio vexatório destilado sobre a memória de um anjo chorado pelo avô encarcerado…

Mas a esperança também me alcança pelas letras de sambas-enredos cantados na maior folia do mundo.
Cantam Marielles, Dandaras, bodes expiatórios e todo o bom-senso.

Vendeu-se o Brasil num palanque da praça
E ao homem serviu ferro, lodo e mordaça
Vendeu-se o Brasil do sertão até o mangue
E o homem servil verteu lágrimas de sangue”

Penso, afinal, que existe esperança no mundo porque, mais uma vez, os gritos de alerta sobre o absurdo das coisas vêm pela Cultura, que o novo governo quer tanto sufocar.

As histórias “pra ninar gente grande” evocam “a história que a história não conta” nos versos verde-e-rosa de Mangueira, cantados na passarela carioca do samba.

É a manifestação do povo que sustenta a maior festa do mundo… uma porção do povo que convive com exclusões de todos os níveis, imprensada entre fuzis de criminosos (com e sem farda) entregue a poderes paralelos, milícias sem lei…

Há esperança afinal.

E ela também se entranha em mim daqui de nosso oásis rural, com nomes de Márcia, Paula, Adriano, Silvana, Beto, Luís, Tati, Tânia, João Paulo, Mateuses… ecoando amores de mães, pais, irmãos, santos, deuses, Jesus e tudo o mais que rima com afeto.

Penso que enquanto houver voz, amor e amigos sempre haverá esperança.

Maior que o mundo

Du, Clara e eu em Granada: felicidade pura

Meu mundo cresceu!

Depois de ter encolhido ao tamanho de cinco centímetros de um salto fino de mulher, como explicado em crônica anterior, ele se ampliou para além de um oceano.

Foi graças a Du e Clara, aqueles mesmos, que desmontaram a vida no Brasil para viver na Espanha, lembram? Mais que inspiração para enfrentar os medos que me encolhiam, eles foram suporte carinhoso na realização de um sonho que eu sequer imaginava ao meu alcance: conhecer o Velho Mundo.

Até o início de minhas férias, em abril deste ano, eu e a amiga Marcinha – outra querida, citada por ter me feito o convite para o Chile – tínhamos feito planos para uma viagem por cidades de Minas Gerais. Mas sua tia adoeceu e ela reconsiderou.

Após uma consulta “hipotética” ao Du, pelo WhatsApp, fui convencida (ele é muito bom nisso) a me lançar na aventura além-mar. Daí que, entre decidir que ia, comprar passagens – em um processo dificílimo que consumiu um dia inteiro do querido Du na internet – e preparar bagagem, foram menos de TRÊS (!!!) dias.

Puerta del Sol, em Madri

Embarquei na madrugada de um domingo rumo a São Paulo e, depois, Madri, onde Du e Clara já me aguardavam com outro de seus impagáveis carinhos: um apartamento alugado via Air Bnb para nos hospedar por três dias na capital espanhola.

Lá eles me guiaram por um tour maravilhoso, que incluiu belezas arquitetônicas e delícias gastronômicas. No restante dos dez dias de minha viagem, só fizeram ser meus guias por Granada, a linda e adorável cidade da Andaluzia – Sul da Espanha – que escolheram para viver.

E eu, que mal andava meio quarteirão, encarei 10 km por dia de passeios – gastei tempo e alguns euros em curativos e escalda-pés para acalmar inchaços e bolhas, mas valeu a pena!

Descobri que os andaluzos são os brasileiros da Espanha; que Paella valenciana se come junto, em torno de um mesmo tacho; que vinhos maravilhosos podem ser comprados por 4 euros em um mercado de esquina e que a Andaluzia tem azeites tão deliciosos que eu tomaria de caneca se não temesse as calorias.

Márcio, meu marido, que não pôde me acompanhar na viagem, ainda encomendou-me o contato com um parente espanhol que só conhecia por Facebook. Pepe Pelegrina, que nem me conhecia até então, provou sua hospitalidade andaluz levando-me para conhecer a neve na estação de esqui de Sierra Nevada.

Eu com Clara, Du e Pepe em Granada

Detalhes sobre os maravilhosos passeios deixo para a matéria de turismo que estou preparando. Este texto é para falar sobre como a amizade, esse “amor” sem posse tão gostoso de sentir, tem o poder de ampliar mundos e transbordar o coração de felicidade.

E eu que não sabia que as minhas transcendem oceanos… e me fazem sentir maior que o mundo.

 

 

Diário de Viagem: Granada

Sierra Nevada: a primeira visão

Dormia no ônibus que nos trouxe de Madri quando a desaceleração me despertou. Entrávamos em Granada, a milenar cidade espanhola (desde o século 13, pois sua origem é árabe) que hoje é o lar de Clara e Eduardo – desses amigos que a gente sabe que terá (e amará) para a vida toda.

A primeira visão que tive da janela foi de um ajardinado colado a um pequeno viaduto, donde se destacou, para meus olhos, uma arvorezinha de flores liláses. Brotou-me um sorriso involuntário (“bom presságio!”).

Logo que o ônibus livrou-se do pequeno congestionamento à entrada, Clara chamou minha atenção para a visão dos picos sempre brancos da Sierra Nevada, que – eu descobriria – pode-se buscar de qualquer ponto da cidade.

Depois o metrô de superfície, que os usuários pagam eletronicamente ao entrar – nenhuma roleta ou fiscal obrigando a cobrança, apenas a consciência dos usuários -… a primeira caminhada por ruas que conjugam arquitetura milenar e contemporânea… o espaço urbano amplo, limpo, calmo… o trânsito “silencioso” apesar de intenso.

Por uma e outra calçada, bicicletas amarelas que se pode pegar, usar e deixar em qualquer outro ponto para serem usadas por outras pessoas – nunca são furtadas ou vandalizadas.

Não vi carros velhos pelas ruas. “Não vale a pena manter os com mais de cinco anos, com todas as revisões exigidas por lei e impostos”, explica Clara.

Com Du e Clara em ruela do bairro Albaicín, de origem árabe

Mas o casal não tem carro aqui. Tampouco usa muito o barato, eficaz e confortável sistema de transportes da cidade. Desde que se mudaram em definitivo, em novembro de 2017, Clara e Du fazem todos os percursos por Granada a pé – inclusive os passeios pelos bairros íngremes, que expandem-se colinas acima dos rios Genil e Darro e que mantêm os traçados de ruelas estreitas do período medieval, proibindo o trânsito de automóveis.

Eu os tenho seguido alegremente desde a última quarta, a despeito das canelas ressentidas pelo prolongado sedentarismo e das bolhas causadas por um tênis novo (erro primário!).

Percebo que observam com amoroso prazer meus sustos emocionados, minhas descobertas do quão lindo pode ser o mundo.

Hoje o domingo amanheceu frio, finalmente – a primavera na Espanha é feita de dias ensolarados e temperaturas amenas, em torno dos 24 graus -, convidando-me a esta escrita, que “costuro” no sofá da sala, devidamente aconchegada sob uma mantinha felpuda.

Evoco as saudades de meus entes queridos, que a estas horas de nossa manhã aqui devem estar mergulhados no sono da madrugada de lá. Envio-lhes uma prece amorosa e peço que me aguardem “un poquito más”.

Quando voltar, cheia de saudades e histórias, lhes contarei tudo sobre o quão lindo (e civilizado) ainda pode ser o mundo.

Granada (Espanha), 29 de abril de 2018.

 

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