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Sobre Anjos – parte II

Subo as escadas sentindo uma dorzinha nova no tornozelo direito, vinda não sei de onde, não sei por que raios! Passa das 23h30 quando viro a chave para entrar no apartamento vazio já sentindo a falta de Márcio, de quem me despedi na hora do almoço para mais uma separação de 15 dias (longa história).

Estou cansada e ainda é só quarta-feira!

Levo um susto ao encontrar a sala iluminada – tenho certeza de que não deixei a luz acesa – ao mesmo tempo em que um cheiro surpreendente de comida bem temperada me assalta o olfato – sequer cozinhei nos últimos dias!

(medo)

Avanço taquicárdica até a cozinha, onde encontro sobre o fogão uma panela com arroz novo, outra com feijão recém-temperado, uma assadeira com torta de frango sobre o microondas, a salvo dos gatos.

Abro a geladeira sentindo-me o pequeno Charlie entrando no jardim feito de doces da Fantástica Fábrica de Chocolate de Willy Wonka. Encontro, já acondicionados em vidros, filés de frango assados, purê de batatas e uma carne moída refogada com legumes.

Desconfio, antes de ouvir um certo recado de áudio deixado no WhatsApp, a identidade de minha fada-madrinha… no caso, faxineira-madrinha.

Kelly fazia faxinas para mim já há dois anos quando sofri o acidente de moto que me quebrou as duas pernas. Acompanhou discretamente meus esforços de recuperação e, quando ocorreu a última tragédia de nossa vida – a morte de meu cunhado e a consequente “mudança” de meu marido de volta à casa de sua mãe, em Jaú –, revelou-se sua inestimável solidariedade. Ante minha locomoção ainda limitada, ofereceu-se para cozinhar para mim nos dias de faxina sem cobrar nada a mais.

Claro que acrescentei um adicional ao valor de sua diária, mas o que ela passou a fazer por mim não tem preço. A cada dia de faxina, preocupa-se em cozinhar uma quantidade de comida variada que dure a semana toda – tudo separadinho em vidros que podem ser congelados e descongelados individualmente.

Nesta semana, avisou que não poderia vir na quarta, como de hábito, pois tinha algum compromisso. Viria na quinta. Mas apareceu sem avisar  no fim da tarde da quarta (tem sua própria chave da porta) e fez toda essa adorável comida.

Não resisti ao carinho… digo, ao cheirinho… e jantei àquela hora mesmo.

Quase meia noite, eu “batendo” um prato de arroz com feijão novos – muito mais feijão que arroz – e um generoso pedaço de torta de frango, quando percebo um novo aviso de mensagem no Whatsapp.

O áudio de minha irmã mais velha avisa que nossa mãe acaba de sofrer um infarto e aguarda vaga em algum hospital do SUS para internação.

Esqueço a comida.

Em uma conversa rápida e nervosa ao telefone descubro que mamãe começou a sentir dores à tarde e foi levada para a UPA de Araraquara pela amiga que lhe fazia companhia – graças a Deus! -, mas ainda carecia de cuidados e tratamento. Minha irmã passa o celular para ela, que faz uma voz calma, com a qual tenta me tranquilizar (ELA… A MIM!).

Tento disfarçar os sintomas de pânico que costumam disparar meu coração e acionar reações desmedidas aos mais variados acontecimentos. Desligo e ligo chorosa para o Márcio, que me acalma e lembra das coisas que tenho de agradecer antes de me desesperar.

De fato, Deus, ou seja lá qual força governe essa cadeia de causalidades que chamamos destino, achou um jeito de colocar justo nesse dia – de despedida do Márcio, de trabalho corrido, de dor nova – uma anja-faxineira-fada-madrinha para me lembrar de que sou cuidada (assim como colocou anjos-enfermeiros em meu caminho durante minha estada no hospital e em vários outros momentos). Há de colocar anjos em torno de minha mãezinha também, que tem muitíssimos mais méritos que eu nesta vida! E provavelmente em outras…

Termino meu prato de comida, tomo uma cerveja pra chamar o sono e espero por ele lendo mais um capítulo de “Todo Mundo Tem Um Anjo da Guarda” (Pedro Siqueira), que outra anja me recomendou. Antes dele chegar, vou rezar para o anjo-da-guarda de minha querida.

Parafraseando mamãe, que “seja tudo como Deus quiser!”