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Só não peçam entusiasmo… (*)

JOSÉ EDUARDO GOMES DE CARVALHO **

Consta que não há clima de Copa nas ruas do Brasil. É um dos poucos pontos em que coincidem tanto a minúscula mídia que presta quanto a gigantesca mídia que não presta. Me fio mais nas pessoas que circulam por São Paulo muito mais do que circulei por toda a vida e que são testemunhas de que há mesmo uma indiferença enorme de P. a P. e de J.A. a J.A., de Pirituba ao Pari, do Jardim América ao Jardim Ângela. No Rio, então, nem sinal de Neymar e companhia, muito populares no Twitter e no Instagram, mas sem praticamente empatia com a vida real. No Brasil inteiro, nada de vendas em massa de telas planas, nada de camisas amarelas bombando, quase nada de calçadas e paredes pintadas.

Alguém se surpreende? Só protozoários e amebas.

Quando a manada começou a agir para transformar as instituições brasileiras em um depósito de dejetos há pouco mais de quatro anos, quem tinha um pingo de consciência social – infelizes que somos – já vislumbrava uma falta de perspectiva que destruía toda a capacidade de alimentar alguma esperança. Só não sabíamos que aqueles movimentos claros de deterioração eram só uma sensação térmica de fundo do poço: o fundo do poço de verdade não chega nunca.

Vamos fazer nosso papel de sujeito médio, com um mínimo de capacidade de reflexão e que é apaixonado por futebol. Essa pessoa acorda todo dia, se é que conseguiu dormir, e tenta projetar como serão suas próximas horas. Nesse trabalho insano de tentar manter o equilíbrio no cotidiano, busca uma saída diante do que tem visto: “Farsantes, golpistas, facínoras com poder, perseguição ideológica, a sociedade em decomposição…. Já deu, né?” Mas não deu, parece que nunca dá, porque a manada descobre sempre um jeito de piorar. Que lugar tem hoje a euforia provocada pelo futebol nosso de cada dia nesse contexto?

Mais para ‘Mad Max’
Mesmo o sujeito que raramente reflete, e que sequer cogita que é possível viver em comunidade de forma civilizada, está levando bordoada de todo lado. Esse tipo faz parte dos milhões de estúpidos que foram para as ruas pedir a destituição/prisão/linchamento de gente inocente e que, agora, não podem se eximir da crua verdade: são os  diretamente responsáveis pelo buraco em que o país foi jogado pelas criaturas que eles produziram. Esses que agora dizem “não era bem isso que eu queria” também estão longe de entrar na vibe de uma Copa do Mundo. Neste momento, aliás, estão mais para Mad Max do que para Shangri-La, nem conseguem imaginar como vai ser o amanhã, se vai ter água, se o ônibus vai circular ou se o carro vai sair da garagem, quanto mais sonhar com o mês que vem.

Não digo que o futebol, com sua capacidade aglutinadora e poder de acender paixões, não opere milagres. Pode até ser que, por alguns instantes, a Copa faça o papel de anestésico para uma sociedade doente, fraturada e transtornada, um amontoado de gente que é réu e ao mesmo tempo vítima da avacalhação geral em que se transformou a nação. Mas que ninguém se engane: o momento hoje nada tem a ver com a Copa que a ditadura militar tentou capitalizar em 1970, gestando uma euforia artificial. O país dos Dorias, Moros e Bolsonaros não tem minimamente o perfil do Brasil que os militares controlavam à base de tortura e repressão. Hoje, a ditadura vem das entranhas da sociedade civil, é uma ditadura orgânica e terminal, uma serpente de várias cabeças, cercada por gremlins que se multiplicam conforme a mediocridade avança. Não é um monstro que cresce nos quartéis, mas um câncer generalizado, que invadiu as esquinas, os bares, as escolas. Não há ideias, não há projetos e os últimos bastiões, como o Judiciário, já não garantem nada e se aparelharam como instrumentos ideológicos de punição implacável a uns poucos.

Neste panorama podre e repugnante, pouco podem fazer os rapazes de Tite, até porque esses moços recebem centenas de milhares de euros todos os anos, vivem no universo paralelo que é hoje o futebol de elite e em matéria de consciência social são basicamente uma lástima.

Vou assistir a Copa da Rússia com gosto, você provavelmente também, como boa parte dos brasileiros, estúpidos ou não. Mas não peçam entusiasmo, por favor.

 

(*) Crônica originalmente publicada no site ChuteiraFC/CartaCapital

 

** José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, “explorador do mundo”, mentor e amigo daqueles que são para sempre


 

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