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Meu primeiro amor

Meu primeiro amor foi um menino de não mais de 13 anos. E eu, bem, deveria ter 11. Nunca conversamos. Apenas nos olhávamos de longe e quando o via meu coração dava pulos que eu não sabia reconhecer, pois nunca sentira nada igual.

Isso aconteceu em uma de minhas férias da escola passadas na casa de uma tia querida, em uma cidadezinha, quase uma vila, não muito longe daqui.

Para mim, aquele menino não era um príncipe, porque eu não acreditava em contos de fadas, pois em minhas tardes de domingo eu assistia ao seriado do Zorro no cinema do bairro. Ele era uma pessoa que eu sempre soubera existir em algum lugar me esperando, mas só me dei conta disso quando o vi pela primeira vez. Voltei para casa e pensava nele todas as noites antes de fechar os olhos para dormir. E sonhava com o dia em que voltaria a vê-lo. E o via diante de mim cada vez que meu pai colocava um disco do Caruso na vitrola. Alguém sabe o que é vitrola?

Nas férias seguintes, voltei à casa de minha tia e tudo se repetiu. Nos víamos e parecia haver entre nós um entendimento como se pertencêssemos um ao outro e nada pudesse quebrar aquele encanto. E assim foram três anos seguidos até que minha tia se mudou daquela cidadezinha linda para outra muito, mas muito longe dali. Quando soube da mudança comecei a chorar e ninguém entendia o motivo.

Nunca mais quis passar as férias na casa de minha tia porque naquela outra cidade não havia nada que eu pudesse amar mais do que aquele menino.

Quando adulta, um dia voltei lá. Fiquei dando voltas pela cidade como se fosse possível encontrá-lo e, mesmo se isso acontecesse, será que nos reconheceríamos? E o que eu diria a ele? Eu que nunca ouvi sua voz, nem sei a cor de seus olhos.

Vivi outros amores, com intensidades diferentes porque o coração tem compartimentos onde sentimentos se alojam e um não interfere no outro, como caixas bem trancadas, e mesmo quando esse amor acaba, na verdade não acaba, fica sempre um resquício, como fímbrias em uma janela fechada.

Sim tive outros amores, mas nenhum como aquele que me fez conhecer esse maravilhoso e inexplicável sentimento, capaz de permanecer intacto, preservado, envolvido em uma cápsula e, quando quero me certificar de que estou viva, eu abro e sinto que, como disse Jean Cocteau, “amar é descer bem depressa de elevador”.

Acho que ele disse isso. Se não disse, eu digo.

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Ângelo de Jesus

Um homem tentou invadir a entrada principal do Palácio do Planalto.

A manchete é antiga. Mas ficou gravada. Os jornais, os sites e blogs remetem a um terrorista, munido de fuzil e granadas para passar por cima de quem quer que encontrasse pela frente, disposto a chegar ao gabinete presidencial e fazer sabe-se lá o quê com o presidente.

Um atentado? Jogar uma bomba? Nada disso. A cena era outra.

O que queria o  lavrador baiano Ângelo de Jesus, de Pindobaçu, nas salas refrigeradas do Palácio? Que mal poderia fazer um Ângelo, ainda mais de Jesus, ao presidente popular, a não ser pedir socorro, como pediu ao ser dominado pelos seguranças bem nutridos, no chão e algemado como mostra a foto? “Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo.

De qualquer forma, entrando ou não na sala do presidente, seu pedido seria de socorro. Um homem que se aporta da Serra das Esmeraldas até Brasília e passa quatro dias sem comer para falar com o chefe da nação só pode estar em desespero. O desespero que ainda se avizinha de milhões de brasileiros diariamente, desempregados, subempregados, assistindo aos desmandos e à indiferença oficial, ao desvio de dinheiro público, às obras abandonadas de estradas, escolas e hospitais, enquanto nos ambulatórios superlotados de doentes e lamentos  os médicos não sabem a quem socorrer primeiro, a quem escolher para viver.


“Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo


Por que um lavrador estava há quatro dias sem comer? Justo um lavrador, um homem que aduba a terra, planta e reza para a seca não matar e sobrar um saco de feijão para alimentar a família durante o ano?

Alguma alma boa, um bombeiro talvez (os bombeiros têm alma boa), deve ter dado a ele um prato de comida, um sanduíche algum pão com ou sem manteiga….

Será que deram? Prefiro pensar que sim. E um copo d’água. A reportagem não diz.

Os jornais não contaram a história de Ângelo de Jesus, aquela bela matéria de interesse humano, com uma trajetória comum a todos os pobres e esquecidos nos rincões de norte a sul, ainda mais esquecidos nos nordestes.

Não. Foi só um fait divers. Quem se importa com a vida de Ângelo? Quem se importa com o Brasil?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.