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‘Bela Vingança’ não poupa ninguém

Já disse neste espaço que minha torcida para o Oscar 2021 de Melhores Filme e Diretor estava com a chinesa Chloe Zhao, que assina roteiro e direção do sensível “Nomadland” (EUA, 2020). Pois, aos 45 segundos do segundo tempo, minha torcida mudou para Emerald Fennell, de “Bela Vingança” (Young Promising Woman, EUA, 2020), e por motivos justificadíssimos.

Estreante nos papeis de roteirista e diretora, a também atriz Emerald fez um filme absolutamente necessário nestes tempos em que movimentos como o #MeeToo jogam no ventilador a impunidade dos crimes sexuais praticados contra a mulher.

Carey Mulligan está excepcional no papel da protagonista, Cassie

“Bela Vingança” vai além ao narrar a história de Cassie (Carey Mulligan excepcional!), a jovem promissora do título original – uma alusão ao fato dela já ter sido uma brilhante estudante de Medicina. Mostra que esse tipo de abuso ocorre muito mais do que nós, como sociedade, conseguimos enxergar – ou admitir – e não é cometido só pelo sociopata violento, que age em becos escuros ou domicílios invadidos.

Ao passar suas noites em bares a fingir-se de bêbada para flagrar homens prestes a se aproveitarem sexualmente de sua vulnerabilidade, Cassie demonstra que o abuso pode ser praticado pelo “cara legal” ao lado. Ou seja, basta a oportunidade se apresentar que, de dentro do vizinho respeitador, do crush de faculdade ou do “date” sedutor, pode emergir o estuprador em potencial, construído dentro deles por séculos de machismo estrutural.

Quando Cassie reencontra um colega de faculdade, agarra a chance de vingar-se do que a fez abandonar a promissora carreira universitária: o abuso cometido contra a amiga de infância, Nina, que acaba morrendo (supostamente por suicídio) após não conseguir acolhimento nem dos amigos, nem da faculdade e ainda ser culpabilizada pelo ocorrido – como se embriaguez constituísse uma licença para o estupro.

A genialidade de Fennell revela-se na forma didática e inacreditavelmente leve e bem-humorada com que narra essa história de vingança. Ela consegue construir uma justiceira que foge ao estereótipo da psicopata, que acaba sendo moralmente reprovada mesmo tendo se tornado uma devido a um trauma sofrido. Sua Cassie é uma vingadora “do bem”, pois não usa de violência, e se faz algum mal é só a si mesma.

Uma amostra genial de seu didatismo (e aqui entra um alerta de semi-spoiler) é a cena em que Cassie prepara o cenário de sua vingança final. Repare em algumas respostas que ela dá à presa da vez ante seus protestos contra avanços aparentemente sexuais… Há frases que as mulheres estão cansadas de ouvir em rituais de assédio, como a clássica “não farei nada que você não queira”.

Porque, SIM, TODAS NÓS já sofremos assédio alguma vez (ou muitas) na vida, em diferentes níveis, ambientes e condições de vulnerabilidade. Ou seja, é sistêmico mesmo, e tão naturalmente praticado que chegamos a legitimá-lo, como faz a reitora de faculdade (mais um alerta de spoiler) ao dizer que não podia estragar a vida de um jovem promissor porque uma garota decidiu se colocar numa posição “vulnerável”. Em outras palavras, entre a palavra do menino e da menina, e entre estragar a vida do jovem agressor e da jovem vítima, a mulher que lute!

Assim, “Bela Vingança” não poupa ninguém – nem as próprias mulheres – ao retratar como todos contribuímos para a cultura do estupro, não só quem o pratica, mas  também quem se omite em denunciá-lo ou puni-lo e até quem nem consegue enxergá-lo, tão entranhado ele está em nossos usos e costumes.

Por fim, destaco a ótima interpretação entregue pela jovem Carey Mulligan: econômica, mas exata, calcada mais na modulação de voz e no olhar. Mesmo concorrendo ao Oscar com veteranas já laureadas, como Viola Davis e  Frances MdDomand, não será nenhuma injustiça se ela vencer. Torcendo por ela!

 

‘Acusados’: ninguém é inocente!

Desde que começou toda a polêmica sobre o estupro coletivo no Rio de Janeiro tenho me lembrado cada dia mais do filme “Acusados” (The Accused), de Jonathan Kaplan. Por ter sido dirigido lá pelos idos de 1988, ingenuamente acreditei, no começo de todo o processo no Brasil, que estávamos muito à frente dos exemplos de sexismo e preconceito abordados naquele filme.

Só que não.

A Sarah Tobias que Jodie Foster interpreta em “Acusados” é uma sensual jovem de classe média baixa na casa dos 30 anos, que vai a um bar se divertir para esquecer a briga com o “namorido”. Acaba estuprada por um grupo de homens sobre uma mesa de bilhar. E, para seu horror, ela não passa pela experiência desacordada como a jovem brasileira filmada com suas partes íntimas sendo manipuladas e expostas para uma câmera de vídeo.

O filme começa na cena em que um jovem liga para a polícia de um orelhão para denunciar a “curra” (gíria para o estupro coletivo) no exato momento em que a vítima consegue sair correndo do bar, machucada e em choque. Daí até assistirmos à cena crucial de que trata todo o filme, demora quase o filme todo.

Parece enfadonho, mas acredite, não é.

A escolha do diretor por uma narrativa fragmentada obedece ao nobre propósito de municiar o espectador com os pontos de vistas de todos os envolvidos no fato, para que possamos refletir sobre as motivações tanto dos acusados quanto da vítima. O expediente, que acaba por humanizar (não isentar”) os acusados, evita pra nós a armadilha fácil de escolher um lado logo de cara.

No julgamento, a acusação faz o comportamento extrovertido de Sarah – que após alguns goles de álcool dança sensualmente para a plateia masculina – parecer um incentivo e um indício de que ela queria o que aconteceu a seguir. Até parece que é ela a julgada. Entendemos que tentar criminalizar Sarah não é só uma estratégia dos acusados, mas um senso comum de que uma mulher que dança e flerta em um bar está “pedindo” para ser estuprada.

O primeiro julgamento parece anunciar o final do filme, mas então assistimos a Sarah enfrentar o escárnio e desrespeito da sociedade em seu dia a dia. Isso faz a advogada decidir comprar mais uma briga, desta vez contra quem aplaudiu e incentivou o estupro e até quem simplesmente estava lá e nada fez para impedi-lo.

O recado de “Acusados” é claro: absolver e  aprovar o estupro sob pretexto de que a vítima “o provocou” tem o mesmo peso de praticá-lo. Desse ponto de vista, condenar os acusados não só faz  justiça, mas educa uma sociedade ainda inconsciente do seu machismo estruturado.

Acho que tão importante quanto saber o resultado do segundo julgamento do filme é ouvir os argumentos de defesa e acusação, novamente incentivando-nos a refletir e a nos questionar: a qual grupo pertenceríamos naquele julgamento se também tivéssemos estado naquele bar?