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De São José a Olavo – A Trajetória de Um Casal Inesquecível

JORGE RODINI *

Um amor de amoreira. E mangueiras, limoeiros e tantas árvores frutíferas naquele pomar enorme que circundava nosso mundo. Cavalos de vassoura “Aiô Silver”, o cinema paradiso, a praça da Igreja, os bancos marcados com nomes das famílias.
E o quadro do São Jorge? Imponente na sala pequena ao lado da Mor. Pilhas de revistas hoje antigas, com fotos de mulheres belas de cabelos armados, de produtos inovadores à época. Na cozinha, um fogão de lenha impecável. Inesquecíveis momentos da velha senhora que sofria com feridas na perna e jamais desistia.
De tempos em tempos, repouso. Mas aquilo só lhe fazia bem quando os netos a paparicavam. E brincavam e escondiam debaixo da cama, agora já na cidade grande. Cama de ferro, fabricado pelo dono do cartório, seu marido, ex-presidente da Câmara da cidade de onde vinham.
Agora, uma casa menor, que abrigava cada vez mais gente. É uma casa árvore, onde a raiz foi se solidificando e gerando frutos e frutos dos frutos e sempre frutos. O portão branco, fácil dos pequenos pularem, o pinheiro que se empolgava, a netaiada que chegava. Na calada do dia, no silêncio da noite. E o senhor da casa árvore, lendo seus jornais, agora já de lupa, com um terno que lhe conferia austeridade, uma credibilidade patriarcal. Terminava as refeições pela salada, fazia contas enormes de somar começando pelos algarismos da esquerda. Era tradicional com o básico, mas liberal com o importante.
Aquele casal, com quadro emoldurado na sala principal, era só um. Único, imponente, humilde. Doce mulher, homem guerreiro. Um sem o outro, só pelos filhos e pelos netos.
Daquela harmonia, uma história fincou na terra. E parece que todos são pautados pela mesma fome de família.
Em todos os 25 de dezembro desde 1966, o Natal é realizado naquela casa árvore, já sem pinheiro, sem portão baixo, sem os donos legítimos, sem um par de tios, sem um par de primos, mas com alegria ímpar. A admiração é de muitos com aquela festa-bagunça organizada na varanda, na sala, na copa-cozinha, no quintal e na calçada. Sem perder a foto do meio da rua.
Cada vez mais família, cada vez menos rua. E a cada novo membro, a árvore, em forma de concreto, cuida e acolhe. Parece que a porta da casa é aberta a cada nova vida que se inicia, pelos que nunca serão esquecidos.
E, lá pelas três, a mesa está servida! Saúde! TIM TIM!

 

* Jorge Rodini é engenheiro, empresário, pai de quatro filhos e avô de quatro netos,
que gosta  de números, palavras e pessoas


Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

O nascimento de um pai

ALEX MENDES *

Ela chegou durante o frio de uma das cidades mais quentes do Estado de São Paulo.

Na escura madrugada de um dia de semana, minha mulher deu à luz.

Eu, que nunca na vida havia podido ver sangue sem sentir tontura, tremi. Tremi ao ver minha reação contrária.

Com a câmera fotográfica na mão enchi minhas veias de coragem e controlei o ímpeto de sair correndo da sala de cirurgia.

E olha que tudo me levava a isso. O histórico com as agulhas, o cheiro de hospital e, principalmente, o que eu via.

Ali na minha frente, a mulher que eu tinha jurado proteger no altar estava amarrada, com os braços esticados, nua e com uma pessoa prestes a abrir-lhe a barriga com um objeto cortante.

Mas eu estava decidido. Eu estava preocupado em buscar o melhor ângulo.

Eu.

Ali foram os últimos momentos da existência do “eu” que eu conhecia desde que me entendi por gente.

Não foi o barulho dos instrumentos, aquele tec tec com precisão cirúrgica para deixar qualquer um ligado à área de humanas desesperado que me atordoou. Foi outro som. O de um choro engasgado. Era aquele negócio pequenininho, sujo de líquidos e gosmas que eu nem sabia direito o que eram, que eu deveria amar?

Talvez a preocupação com o foco da máquina tenha tirado o meu próprio. Eu não pensava racional ou emocionalmente. Era um robô. Tinha de fotografar e fazer exatamente como eu vira antes nas novelas e nos filmes.

Confesso, mesmo ali, vendo minha herdeira com olhos fechados e boca arreganhada tão perto, ainda não sentia o que a minha esposa carregara durante nove meses. O bebê, até aquele momento, era dela. A mãe. Que alimentava, que dava segurança, que garantia vida a cada vez que respirava.

Já eu, fotografava. Achando que aquilo era o máximo. Que “eu” era o máximo. Um marido que agora tinha uma filha.

‘Eu”. Algo que em poucos minutos iria viver só no passado.

Depois de receber os cumprimentos de dois corajosos parentes que enfrentaram uma noite sem sono, fui para o berçário. Mais preocupado em evitar o sumiço da criança que qualquer outra coisa.

Paula nasceu de oito meses. Foi uma luta diária entre diagnósticos receosos e esperanças religiosas. Graças a Deus, a segunda venceu. Vitória que estava agora à minha frente. Um cisquinho de gente encolhido numa estufa. Um frágil ser com um poder enorme. Algo que eu descobri num abrir de olhos.

Eu – ainda era eu – sentei-me numa cadeira do lado de fora do berçário. Paula na estufa, com dois vidros nos separando. Meu olhar fixo conferia tudo com atenção. Se ela respirava, se parecia comigo, se abriria os olhos.

A última resposta foi avassaladora. Ela parecia ter lido meu pensamento. E ao levantar as pequenas pálpebras, abriu duas bolas negras.

E um coração.

O olhar me atingiu como um raio. Desses de filme de ficção. Transformou-me na hora. Daquele momento em diante tinha sido promovido de duas para três letras.

O “EU” virou “PAI”.

Demoraria vários meses até ouvir a palavra da boquinha dela. Mas aquele primeiro olhar, naquela madrugada fria, me chamou de pai com toda a força do mundo.

Um grito silencioso com o tom de um amor até então desconhecido. Inimaginável pra mim. Um sentimento incondicional, incansável, indissolúvel. Egoísta e ao mesmo tempo coletivo.

Sei que cada um de vocês, leitores, tem uma Paula pra olhar nos olhos. Pra dizer com palavras, gestos, responsabilidades ou simplesmente com um abraço: Sim, sou seu pai.

Temos datas de aniversários diferentes, mas posso afirmar que nasci no mesmo dia que você.

Um pai. E uma filha.

Que possamos crescer juntos por muito tempo aproveitando cada fase.

A pequenina que dormia no meu antebraço.

A gigante que andava sobre minha barriga.

A loirinha que cruzava os braços e fazia biquinho quando queria algo que não podia.

A princesa que segurava a minha mão no cinema.

A adolescente que até hoje faz questão de beijar meu rosto num boa noite impossível de ser contaminado pela rotina.

Paula e Alex. Um pai e uma filha.

Olho no olho. Coração com coração.

Amor.

E nada mais que se compare a isso.

 

* Alex Mendes é jornalista, cinéfilo, escritor talentoso, amigo querido e pai amoroso da Paula


 

 

 

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