Arquivo por tag: frio

Gemada no frio

E hoje aquele braço de vento frio, velho conhecido de minhas lembranças, evocou noites de julho em férias, em nossa casa humilde daquela rua de terra à beira do rio. Papí só estava em casa aos finais de semana e, em alguns, conseguíamos convencê-lo a fazer sua famosa gemada, que espalhava cheiros de canela através dos cômodos sem portas.

Eu acompanhava quieta todo o processo, que começava com a separação das claras das gemas – não me lembro de quantos ovos, mas deviam ser dois. Ainda enxergo em minha mente a imagem dele em frente ao fogão, em um agasalho esportivo que o deixava ainda mais parecido com o jogador atlético que foi e o pai mais lindo do mundo!

As mãos morenas e grandes de goleiro batiam as claras em um prato fundo, usando dois garfos juntos – naquela época ter batedeira, para nós, era um luxo tão distante quanto uma viagem à lua – até elas ganharem um aspecto de espuma perolada. Papí virava o prato pra baixo provocando a espuma a cair e ela não caía. Era o sinal de que estava pronta para receber o açúcar. Batia mais um tanto, perseguindo a consistência de suspiro, que eu salivava de vontade de comer daquele jeito mesmo, mas papí, bravo, não deixava!

Àquela época nosso leite vinha em saquinhos fechados a vácuo e liberava um cheiro doce e atraente quando fervido. Pra fazer a gemada, papí colocava dois a três paus de canela pra ferver junto. Apagava o fogo quando o leite começava a subir no canecão, milímetros antes de derramar e se espalhar pelo fogão, formando uma crosta grudenta.

Na última fase do processo, acrescentava ao prato do suspiro as gemas e pitadas de canela em pó. Batia mais um pouco e ia despejar aquele creme amarelado e pintassilgado de laranja dentro do leite quente, mexendo sempre pra misturar bem direitinho.

O resultado era uma bebida cremosa, quase uma espuma aerada, super quente, que rendia um copão para cada um de nós cinco – também não tínhamos canecas de louça. O vidro quente queimando nossos dedos e a gemada abrindo um caminho de fogo pelo nosso esôfago, após inundar de prazer nossas papilas.

Até hoje faço esta receita de gemada nos dias de frio, só pra mim mesmo – não temos filhos e o marido não é muito amigo de ovos. O gosto nunca resultou o mesmo de minha infância. Talvez porque a qualidade dos leites, hoje vendidos em garrafas plásticas ou caixinhas, já é outra. Ou porque adquiri uma predileção por acrescentar uma colher de Ovomaltine sabor Chocolate à mistura. Mas tenho pra mim que, mesmo que assim não fosse, o prazer nunca haveria de se repetir como naquela época. Faltariam a inocência e felicidade com que sorvíamos aquele mimo, acreditando-nos sortudas por sermos filhas daquele pai que sabia fazer gemada finalizada com claras em neve.

Acreditávamos, então, em pais sem defeitos, em finais felizes, em nós como centros do mundo. Eu não sabia ainda como é ter saudade de mim mesma numa versão mais pura e simples.

Leia também a crônica que deu origem a esta: ‘Um braço de vento frio cutucador de memórias’

Verão, outono, inverno e inverno

O cenário lá fora está branco e cinza. Eu gosto. Acho que combina com xícara de chá, lâmpada amarela e um livro. Pena que não posso passar o dia assim. Meu filho não entendeu a lição sobre classe dos números no milhar, milhão, centena, dezena, valor relativo e absoluto. Mentira, quem não entendeu fui eu e já devo ter escrito tudo errado aqui, mas me esforcei para ajudá-lo, até que disse: “se estiver errado tua professora te explica e tudo bem não aprender isso agora, isso agora é um valor relativo, entendeu, filho?” E o dia cinza com uma camada de ar branca e espessa cortando o horizonte de prédios. Quantas pessoas morreram nas últimas 24 horas? Parei de ver. E me sinto mal por isso. E se vejo também me sinto mal, literalmente fico sem saída dentro de mim e desse apartamento. E que bom que eu tenho um apartamento. Pare de carregar as dores da humanidade nas costas, Luciana, minha terapeuta já cansou de me falar. Mas como faz?, ainda não aprendi.

Está muito frio hoje. Será que o Sr. Wilson, que costuma dormir na calçada, vem hoje? Onde ele estará agora? Ontem ele disse que não queria lanche nenhum. “Mas eu trago pro senhor, Sr. Wilson”. “Traz não, taz não”, a voz dele saía fraca como sempre. Talvez ele me quisesse distante para poder ler.  Já percebi que ele prefere os clássicos. E que não gosta muito de conversa. Em dias como o de hoje gosto de ler os russos. E já vi o Sr. Wilson com “Crime e Castigo”.

Proibiram a leitura livre nos presídios de São Paulo. Uma gente que nem gosta de ler, decidindo o que aqueles que já são privados de todos os direitos lerão. De preferência livros edificantes. Essa gente não entende nada de literatura. Ou entende e justamente tem medo dela. “Pra cima de mim, não, que fique tudo como está”. Estou cansada. Estamos cansados. Às vezes penso que é muita sacanagem ter que ser brasileira a viva toda. De algumas nacionalidades podíamos tirar férias. Vocês, do Brasil, têm direito a um ano, a cada década, de viver na Escandinávia. Ou também não será assim? Além de frio, que dia é hoje? Ouço meu filho terminar uma aula, “valeu, galera, até amanhã”, e as janelinhas se fechando e meu peito apertando. A galera… O frio na pandemia brasileira é ainda mais gelado. Será que em novembro vou poder fazer uma festa de aniversário com meus amigos, mãe?, o mais novo pergunta. Em março eu ri dessa pergunta feita pelo filho que aniversariou em junho. Agora não rio mais. Há meses não rio mais. Não sei nada, meu filho, não sei nada de nada.

Todos os dias um pouco do que eu era e pensava e sentia e sabia se esvai. Nada de concreto onde me segurar. A cabeça dói, a ponta do nariz dói, a lombar, o osso do nariz onde os óculos se apoiam, os dedos das mãos, os pulsos, apareceu um calombo no meu punho esquerdo e eu sei que só tenho a agradecer. Onde estará o Sr. Wilson? Se ele aparecer hoje, eu levo um lanche, mesmo ele dizendo não e não e não. E talvez “Noites Brancas”, de Dostoiévski. Se ele não leu ainda, acho que poderá gostar.

Um braço de vento frio cutucador de memórias

Hoje acordei com um braço de vento frio me cutucando na cama. Entrou rápido, logo que o Márcio Pelegrina abriu a janela pra deixar entrar a luz do dia, e foi direto me acordar pra sua presença.

Os elementos devem saber da gente. De consciências indissociáveis, devem compartilhar fofocas sobre o que vai dentro de nós e que é primal, parecido com a matéria de que são feitos.

Este braço de frio chegou sabendo que gosto de como o amálgama de tantos dele trazem os dias de inverno, tão raros em minha cidade.

Sempre fui de avessos: gosto de ver o mundo molhado de chuva quando todos preferem o sol e me agrada nosso inverno ameno, com seus cheiros umedecidos.


Tenho saudades de conseguir ver o belo onde os adultos só viam pobreza e lama


O frio enclausura as pessoas entre paredes – a esta hora eu deveria estar ouvindo gritos de adolescentes jogando bola na quadra da escola com muro de frente para o meu prédio -, mas não. Não me enclausura.

Tanjo muletas e hastes de titânio para a sacada do apartamento pra sentir o mundo, que me parece mais limpo banhado em neblina e sol pálido. Parece também mais calmo. Deito olhos e ouvidos para além do parapeito e não encontro a mesma algazarra de buzinas e gente tanta passando pra lá e pra cá.

O cutucador deve me conhecer de outros tempos, pois acendeu memórias antigas de mim em nossa casa à margem de um Ribeirão Preto margeado por mato alto e a avenida de terra. Pra economizar agasalho, mamãe tirava os corta-febre dos armários pra nos cobrir no sofá, onde eu gostava de ficar aconchegada assistindo “Sessão da Tarde”, nas férias de julho. Algumas noites convencíamos o papi a fazer sua famosa gemada, com cheiro de canela em rama que se espalhava pela casa.

Também guardo uma imagem de abrir a janela do quarto de minha mãe, que dava para a garagem sem muros, e ver uma senhora arrastando seu carrinho de feira no meio da rua – usava-se pouco as calçadas em ruas mansas como aquela. Os matinhos das sarjetas ainda brilhavam de gotículas de sereno e o cheiro de terra molhada inundava de prazer minhas narinas!

Tenho saudades de conseguir enxergar o belo onde os adultos só viam pobreza e lama. Com o tempo, adquiri um mau costume de ver o mundo pelos olhos dos outros e acabou que este jeito de olhar se transformou também no meu.

Mas hoje o cutucão do tempo trouxe de volta lembranças daquela criança que o frio e seus cheiros deixavam feliz e tive vontade de contar.