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Os Olhos de Bob

Seus olhos eram o que primeiro me ganhavam a atenção quando o via. Amarelados, contornados de preto, incisivos e insistentes, continuavam a encarar mesmo após desistirmos de encará-lo de volta.

O gato a quem chamei Bob – como em “Um Gato de Rua Chamado Bob” – foi minha relação mais curta, mas talvez tenha sido a mais emocionalmente intensa.

Ele viveu apenas seis dias em minha casa, sendo cuidado como uma criança doente. Dei-lhe banho, remédios, alimentei, troquei fraldas, levei quase todos os dias fazer exames…

Dócil, deixava-se manipular por mim. Guerreiro, até o terceiro dia arrastava-se em duas patas para tomar água, comer e tentar – sem sucesso – usar a caixinha de areia que lhe preparei.

Mas no quarto dia desistiu de tudo… comer, beber, deixar-se trocar…. Ficava só deitado no fundo da caixa que lhe comprei, perdido em tremores. Ficou agressivo, mordeu a veterinária na última consulta e começou a sibilar quando eu tentava limpá-lo e trocá-lo.

Quando a profissional disse que, mesmo fazendo cirurgia para retirada de seu tumor na bexiga, ele continuaria piorando – o exame deu positivo para Felv (leucemia felina) -, busquei segunda e terceira opiniões. Todas resultaram parecidas e decidi pela eutanásia com um profundo sentimento de inutilidade – no final das contas, de pouca ajuda fui pra mudar seu destino.

No sexto dia, eu o levei para morrer. Fiquei a seu lado até o último instante, mesmo após ele ter me mordido ao colocá-lo sobre a mesa da clínica – será que adivinhava?

“É muita dor que ele está sentindo”, consolou-me a querida Iara (Deus a abençoe!), amiga gateira e fisioterapeuta que cancelou todos os seus compromissos daquela manhã para me acompanhar à eutanásia. Chorou comigo durante todo o processo.

Porque as pupilas de Bob seguiam todos os meus movimentos pelo consultório, não consegui desviar meus olhos dos dele. Na primeira injeção de anestésico, apenas relaxou o formato deles; na segunda, vi suas pupilas dilatarem-se gradualmente. Na injeção derradeira, foram ficando vítreas… duas bolas de gude enormes devolvendo meu próprio reflexo embaçado pelo choro.

Não fechou os olhos nem no último suspiro.

Aqueles olhos voltariam a me visitar em sonho. Acordada também.

Agora mesmo, enquanto aguardo uma sorologia entrar-me veias adentro – estou tendo que tomar vacinas e soros antirrábicos e antitetânicos -, a lembrança deles me vem de novo.

Pergunto-me para onde devem ir os espíritos dos animais quando deixam a carne. Será que têm acolhida em um lar só pra eles no céu? Será que chegam lá sãos e sem dores? Será que reencarnam perto de nós?

Uma amiga médium – e psicóloga amadora nas horas vagas – disse-me que o Bob apareceu em minha vida, neste momento, porque eu precisava cuidar de alguém e entender que nem sempre podemos evitar o sofrimento alheio, mas que amar basta (tomara!).

Como ensinar seus gatos a gostarem de rock

“Mamãe, o monstro ‘Rock’ já foi embora?”

Primeiro contato da audição sensível de meus gatos com nosso som reinstalado na sala, com as caixas mais altas, para dar uma acústica melhor.

Tacamos logo “Daughter”, do Pearl Jam, em alto volume.

Pulos, sustos e correria de patinhas pelo corredor em direção ao refúgio no quarto de casal.

Loki é o primeiro a vir voltando devagarinho, todo encolhido encostado à parede, como que investigando de longe um inimigo.

Corajoso, atravessa a sala, passando em frente ao som, e dá uma corridinha até a mesa onde Márcio estuda em frente a seu laptop. Sobe à cadeira ao lado da dele e usa seu miado “lamento-pedido-de-socorro” para chamar a atenção.

Márcio para e sorri pra ele: “E aí, cara?”.

Ele continua a miar, como se conversasse. Na certa reclamando com o “pai” sobre aquela barulheira desconhecida, enquanto se esfrega pra cá e pra lá nas costas da cadeira.

“É rock, bicho. Vai ter que se acostumar!”, diz o Ma.

A esta altura já está tocando “Lightining Bolt”. Na hora dos solos de guitarra mais irados, Lóki escancara os olhos de pupilas dilatadas e corre para a outra extremidade da sala, como se fugisse de um inimigo invisível.

Maya também deixa o refúgio, mas não se arrisca pela sala. Estaca na porta do corredor, olhando em minha direção com orelhas arrebitadas para trás e olhos amarelos arregalados, mas com uma curvatura que sugere braveza, mais do que susto.

“Pode vir, neguinha! É só música”, digo.

Ela não se arrisca. Continua a me olhar fixa e diretamente, como se indagasse: “Não vai fazer nada?”.

Saco do controle remoto para procurar “Sirens”, mais calminha e sem tantos graves pra espocar pela saída do subwofer.


“Concordo com Márcio que está na hora de entenderem que
é uma casa de roqueiros. Se toda a vizinhança já sabe…”


Loki já relaxa. Esparrama-se ao chão em sua famosa pose “deitado-despreocupadamente”, mas a uma distância segura do centro da sala, onde estão as caixas.

Maya, ainda na porta do corredor, senta-se agora sobre as patas traseiras – ainda de orelhas para trás, ainda brava, ainda atirando fixa e continuamente seu olhar amarelo-preto-de-pupilas-dilatadas em minha direção.

Voluntariosa a bichinha!

Resisto. Concordo com Márcio que está na hora de entenderem que é uma casa de roqueiros. Se toda a vizinhança já o sabe…

A sequência de “Sirens” é “Infalible”, mais cadenciada, mas de riffs agudos, que fazem Lóki levantar as orelhas, mas nem por isso sair de sua pose descansada. Olha em minha direção como a perguntar: “É isso mesmo?”

Eu sorrio sem desviar o olhar e ele volta, obediente, a fechar os olhinhos pra dormitar.

“Bom garoto”!

Maya já não me olha, mas nem por isso abandona a posição estratégica. Ensaia deitar como esfinge e suspeito que já não lhe incomoda tanto o som e continua distante por pura rabugice. As pupilas já não estão dilatadas, as orelhas voltaram a apontar para o teto e o formato do olho relaxou na posição amendoada, que lhe dá aquele ar característico de descaso.

Eu a ignoro também.


“Começo a escrever este texto sobre eles, mas
mantendo uma meia atenção em minha visão periférica”


Começo a escrever este texto sobre eles, mas mantendo uma meia atenção em minha visão periférica.

Dali a pouco, percebo um vultinho negro aproximando-se à direita da tela do laptop.

Maya adianta sua posição alguns passinhos, até a porta da sala. Olha pra um lado, para o outro, observa Lóki deitado despreocupadamente, olha pra mim de novo com a cabecinha meio pendendo pra um lado, como numa interrogação.

Dou uma piscadinha. Ela não.

“Metidinha”!

Exatamente nesta hora espocam pelas caixas as guitarras nervosas de “Mind Your Manners”.

Susto!

Maya corre desenfreada de volta para o quarto e some. Lóki levanta-se calmamente e vai atrás dela. Na certa tentará acalmá-la a lambidas, como já o vimos fazer tantas vezes. Um cavalheiro cuidador este meu menino!

Espero.

Nada.

Demora dez minutos pra que Lóki comece a voltar, vencido.

“Maya teimosa”!

Na sala, Loki dá uma volta inteira de reconhecimento por toda a área de circulação, esfregando-se em pés de mesa, de sofá e em nossas pernas antes de voltar à pose “deitado-despreocupadamente” ao lado de minha poltrona. Começa a se limpar a golpes de lambidas – uma lindeza, não canso de assistir – e relaxa ao som de “Alive”.

Oooooooh… I’m still alive / Hey, hey, I, oh, I’m still alive

Eles também vão sobrevivendo.

Agora silêncio na troca de faixas. Identifico nova pasta do pen drive sendo lida…

… E o som cospe a algazarra sonora do início de “Around the World”, dos Red Hot Chilli Peppers, que o Ma reverencia de braços pra cima, achando-se em um show de rock.

Desta vez Lóki se assusta e corre desabalado para o quarto, derrapando na curva do corredor e divertindo-nos com o barulho de suas patas escorregando pelo piso frio.

“Paciência. Vão ter que se acostumar”, decreta Márcio.

Eu concedo e venho terminar este texto imaginando como será quando eu tiver de apresentá-los ao Aerosmith ou ao Queen – o que, fatalmente, vai acontecer em algum momento deste fim-de-semana de folga… Ah vai!