Silvia Pereira
Dia desses minha terapeuta perguntou, à queima-roupa, o que aprendi com as experiências do último ano de recuperação de fraturas nas pernas.
Emudeci. Não tinha a menor ideia.
Desde então fico esquadrinhando memórias recentes pra tentar entender o que ficou para além dos fatos.
Ontem, na volta do médico, enquanto revivia o esforço de obrigar braços e perna boa a impulsionar meu corpo escada acima, trombei com a consciência de uma das lições que as dores físicas me ofereceram (nem sempre a gente aceita o que é ofertado, que fique claro): a de conseguir manter foco no momento presente – objetivo de toda meditação.
Antes do acidente havia tantos “e se” nublando minha consciência enquanto o cérebro tocava as ações do presente no automático: e se a renda do mês ficar aquém das contas a pagar? E se o mês que vem eu não tiver mais emprego? E se eu não for suficientemente capaz? E se nada der certo… etc e etc?
Foi assim que acabei por não enxergar um sinal vermelho.
Mas lembro-me agora de que, no período pós-acidente, às voltas com dores frequentes, imobilidade forçada e dependência total de outros, meu pensamento era completamente desligado das preocupações comezinhas do cotidiano.
“Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava
liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo”
Assim, do acordar até o adormecer, eu focava única e exclusivamente nos desafios do dia: conseguir fazer todos os exercícios da fisioterapia, lidar com o trabalhoso processo de usar a comadre, suportar os medicamentos abrirem um caminho de fogo nas minhas veias, vencer os esforços e dores do banho, exercitar a paciência esperando pela ajuda necessária para fazer tudo isso.
De certa forma, era libertador acordar e sentir-me comprometida apenas com o “agora” de cada dia. Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo. E como o sono era melhor!
Talvez por isso tenha sido relativamente leve meu fardo, o que faz eu me sentir uma impostora sempre que alguém elogia minha força. Não foi consciente e nem por esforço meu. Simplesmente não havia escolha. Foi como se o cérebro tivesse ligado um botão de “funcionamento de emergência” à minha própria revelia.
Ainda assim, houve momentos de rendição à melancolia e às lágrimas. Mas até esses tinham prazo de validade, pois sempre chegava a hora de ligar o foco no desafio seguinte.
Se aprendi a lição para todo sempre? Eis a questão… Hoje já me flagrei cedendo a ansiedades antigas, conjecturas de futuro… novos “e se”.
Já não sei se conseguirei reproduzir este “funcionar mais leve” quando voltar à minha rotina de antes – Deus sabe que somos convidados a nos sabotar o tempo todo -, mas é certo que não tenho mais desculpas.
Se voltar ao “sonambulismo” não será por falta de escolha, mas total incompetência.
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