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O espaço literário… a coisa mais próxima da vida

Morreste-me. Fazes-me falta. Copo vazio. Um copo de cólera. A morte e o meteoro. Fahrenheit 451. O jardim de cimento. Flores artificiais. As brasas. Vidas secas. O que fazer quando tudo arde? Amor. Guerra e Paz. Festa no covil. Festa do Bode. A festa da insignificância. Viver. A insustentável leveza do ser. Sete anos. Cem anos de solidão. Formas de voltar para casa. Um ano depois.  Certeza do agora. Mulheres de cinzas. Mulheres que correm com os lobos. Mulherzinhas. As meninas. O gigante enterrado. O drible. Outros cantos. Meia noite e vinte. A noite da espera. De mim já nem se lembra. Ruído branco. O ruído do tempo. Espera passar o avião. Enterre seus mortos. Todos os santos. Todos os nomes. Você vai voltar pra mim. Glória. O que ela sussurra. Quando nada está acontecendo. Resta um. A tirania do amor. A um passo. Uma sensação estranha. A fera na selva. Os mortos. Submundo. Tudo é rio. Voltar para casa. Nu, de botas. Entre dois palácios. Desnorteio. Desesterro. A resistência. Enfim, imperatriz. Aos 7 e aos 40. Um, nenhum e cem mil. Eles eram muitos cavalos. É isso um homem? Segredos. Assombrações. Pássaros na boca. Becos da memória. A cidade sitiada. Vivendo sob o fogo. Aprendendo a viver. Nas vertigens do dia. Cadeira de balanço. Bonsai. O silêncio. Flores. O jardim secreto. De verdade. Se deus me chamar não vou. Nem vem. A vida pela frente. Grande sertão. Vida querida.

 

 

  • Este pequeno texto, incluindo o título, é feito apenas e exclusivamente com títulos de livros que têm me ajudado a passar pela vida, que inclui a dor da morte de pessoas queridas, como aconteceu comigo na semana passada, e como tem acontecido com milhares de brasileiros especialmente nesse último ano. Mas que também inclui a beleza da resistência, da solidariedade e da esperança por dias melhores.

Matemática do amor

Esta semana meu pai passou por mais uma cirurgia. Meu pai está com setenta e cinco anos. Eu estou com quarenta e cinco. O pai do meu pai tinha sessenta e nove anos quando morreu. Meu pai já viveu seis anos a mais que o pai dele. Meu pai tinha quarenta e quatro anos quando o pai dele morreu. Meu pai tinha um ano a menos que eu quando o pai dele morreu. Eu achava que meu avô já era velho quando morreu. E que meu pai já tinha vivido o suficiente com ele. Eu achava que meu pai era adulto e sabia lidar com a morte do pai. Meu pai é muito novo para morrer. E eu sou uma criança, apesar de um ano mais velha que meu pai quando meu avô morreu, que não acredito que pai e mãe morrem. Meu pai está bem e não vai morrer. Não agora. Mas basta estar vivo para morrer, eu sei, ainda mais em 2020 e 2021. O José Luís Peixoto escreveu um livro lindo depois que o pai dele morreu. “Morreste-me”. Os portugueses sabem dar os melhores títulos para os livros. Conhece os do Lobo Antunes? “Que farei quando tudo arde?”, “Não é meia noite quem quer”, “Os cus de Judas”, “Explicação dos pássaros”. Eu nunca consigo achar um título bom para o que escrevo. Eu queria saber escrever um livro como o José Luís Peixoto escreve. Um “morreste-me” depois que meu pai morrer, o que vai demorar. Mas o livro já foi escrito e eu não sou o José Luís Peixoto. Lobo Antunes não é desse mundo, deixa pra lá. Eu queria só conseguir terminar essa pequena crônica, no quarto de onde escrevo e posso, pela janela, ver o hospital onde meu pai está, na companhia da minha mãe, como é há cinquenta e cinco anos, sem nenhuma visita porque mais de duzentas mil pessoas já morreram, mais novos ou mais velhos que eu e meu pai. Mas há dias não consigo terminar nada que começo e estou me perguntando “que farei quando tudo arde?”. Abrir o livro do Lobo, por exemplo, pode ser uma resposta. Ser sincera e escrever aqui que não consigo achar um fim para esse texto pode ser outra. Um vento entra pela janela, as folhas de uma das árvores mais bonitas que conheço balançam. Eu fecho os olhos e puxo o ar bem fundo. Será que minha mãe e meu pai também conseguem ver o vento?

A Grande Dor

Ela se lembra da primeira vez em que a sentiu. Tem lembranças visuais desse tempo, quando os móveis da casa de sua infância eram mais altos que o alcance de seu olhar.

Passou a ser regra: sempre que a Grande Dor chegava, a menina registrava a memória visual do momento, como uma câmera interna movida a tristezas.

A mais antiga é a de ver a mãe ainda jovem, barriguda, curvada sobre si mesma e sacudida em soluços lá no alto, sobre o sofá da sala escurecida por cortinas, embora ainda fosse dia.

Não sabia o que havia acontecido, mas certamente algo terrivelmente ruim, sem volta, que acabara com toda a esperança de a vida no mundo voltar a ser boa de algum modo. O desespero da mãe era a prova disso e não lhe ocorria pedir – ou pensar que tinha direito a – melhor explicação que aquela.

A visão seguinte está emoldurada pela sombra do alpendre, que dava para a calçada e a rua – a casa não tinha portões e as portas ficavam sempre abertas para quem quisesse entrar ou sair, a qualquer hora do dia. Um homem sai de um carro compriiiiiido e entra corredor, alpendre e sala adentro levando em cada mão um pilar prateado, feito colunas jônicas.

Lembra-se de quatro pilares como aqueles sustentando, lá no alto, acima de seu olhar, uma caixa de formato estranho e com babados de tule caindo dos lados, bem no meio da sala cheia de gente… de enxergar saias e calças compridas passarem por ela em direção ao quarto da mãe, contíguo à sala… da mãe deitada sobre a grande cama de casal, respondendo em prantos aos que entravam em fila para vê-la. À esquerda, a penteadeira de cerejeira – tão linda! – vazia dos artigos de perfumaria, mas tomada por dezenas de chuquinhas de borracha, aquelas que se punham nos bicos das mamadeirinhas de dar chás aos bebês. Viu muitas pessoas presentearem a mãe com elas durante semanas, meses, sempre com expressões de tanta alegria…


‘Não sabia o que havia acontecido, mas certamente algo
terrivelmente ruim, sem volta, que acabara com toda a esperança’


“Nunca mais qualquer alegria”, gritava a angústia dentro de si.

Lembra de alguém sugerir que a vizinha do lado a levasse para a casa de uma parente, do outro lado do rio. Assim deve ter sido feito, pois sua próxima lembrança visual é a dos próprios pezinhos pedalando um Velotrol, no quintal da tal parente, ainda sentindo por dentro a Grande – agora tão maior! – Dor.

A memória seguinte é a de assistir – não sabe se no mesmo dia ou em outro – seu pai chegar em Fusca azul (ou vermelho? Às vezes as lembranças lhe enganam), entrar pelo mesmo caminho do “homem das colunas jônicas” e, com o olhar perdido, como se não a enxergasse ali na frente dele, ir direto ao quarto do casal.

A partir de então, a Grande Dor só registrou pequenos flashes de memórias, agora com sons e nos quais o olhar da menina já pairava acima dos móveis da casa. Ela ouve vizinhos e conhecidos da família lhe perguntarem – uns em tom de brincadeira, outros de preocupada investigação – se não lhe agradaria a mãe encomendar outro irmãozinho para si. Guiada pela Grande Dor, sua resposta era sempre a mesma: “Não quero outro bebê pra fazer minha mãe sofrer”.

Ela não se lembra quando ou quem – se é que alguém – lhe esclareceu, mas acabou entendendo, em algum momento, que nem todos os bebês morrem. Mas então a Grande Dor já havia instalado outras câmeras em seu cérebro.

 

Olhos de ternura (Seo Dema)

Não me lembro exatamente da primeira vez que  conheci.

Sei que a simpatia foi imediata.

Saquei de cara que seu jeito quieto e sério escondia uma ternura caudalosa que lhe saia pelos olhos.
De rotinas sólidas, por anos Seo Dema acordou sempre à mesma hora, tomou seu café na mesma cadeira da mesa da cozinha, leu os dois jornais do dia – um nacional e um local – e foi trabalhar.

Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação.

Não era de reclamar de nada. Os filhos afligiam-se por isso, pois enxergavam, às vezes, abusos de quem sabia aproveitar-se de seu temperamento humilde e trabalhador.

Também viviam comentando que nunca foi de conversar. Mas era, sim, de gestos, reparei logo.

Meu marido conta, emocionado, das idas para o sítio em sua infância, quando o pai fazia questão de parar no início da trilha de terra entre os canaviais, descarregar a bicicleta e ir guiando o carro na frente, com filho feliz da vida voando pelos barrancos de seu bicicross particular.

O sobrinho lembra com carinho de quando quis treinar futebol contra a vontade do pai e o tio ofereceu-se para ser seu motorista. Aparecia sempre pontualmente para pegá-lo em casa, acompanhava o treino inteiro e o entregava são, salvo e feliz aos pais.


“Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito
e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação”


Tudo sem uma palavra. Apenas uma presença mansa, constante… e os olhos ternos.

Crescidos os filhos, cada um pra sua casa, surpreendia-os durante as visitas deles limpando o carro de um antes que acordasse; enchendo o tanque de gasolina do outro sem que percebessem. Chegando no endereço dos pais um imposto de qualquer filho, ele corria ao banco pagar.

Não era para agradar. É que precisava colocar pra fora de alguma forma o carinho que represava no peito. Era sua forma de “amar” sem precisar falar.

Quando sabia que um filho estava pra chegar de visita, ia para a frente da casa esperar. Não saudava. Abria o portão e cumprimentava como se tivesse acabado de vê-los e entrava junto. Mas nos sentíamos bem-vindos.

E quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio.

Também não conversava muito comigo, mas nem precisava.

Um dia, o vi cuidando de uma família de passarinhos que montou ninho no xaxim de planta que descia pendurado do teto da área de serviço. Minha sogra contava que ele os visitava todos os dias, zeloso dos filhotes que a mãe-passarinha alimentava.

Saquei de uma máquina com lente zoom que trazia emprestada e emparelhei com ele pra “assistir” o ninho. Quietinhos, respeitando a distância, esperamos a família se acostumar com a companhia e disparei a fotografar.


“quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura
nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio”


Como ele não sabia sequer entrar no computador à época – depois que o descobriu, virou habituè do jogo Paciência na tela -, imprimi a melhor foto e confiei a meu marido entregar.

E esqueci.

Em uma de minhas visitas seguinte, muitos meses depois – demorava pra voltar por causa do trabalho –, admirei um quadro de passarinhos pregado na parede atrás da sua cadeira predileta. Não reconheci de pronto, mas ele veio logo em meu socorro. “É a foto que você fez”.

E me senti assim envolvida naquele mar de ternura que até então eu só assistia de longe, feliz de sentir-me no rol dos merecedores de seus gestos.

Em suas últimas semanas, ele não pode mais sentar-se. Não conseguia nem falar e os olhos de ternura quedavam, às vezes, inexpressivos, outras doloridos. Tentava falar às vezes, mas a voz não saía. O que será que diria?

Impotente, só rezo pra que tenha lido em nós todo o amor que líamos nele, para que seu olhar parado signifique que enxerga os anjos que devem estar a velá-lo e para que descanse em paz.

  • ao meu sogro, com carinho, aonde estiver.