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Saudades de mim

“Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; (…) mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

Este trecho de “Dom Casmurro” teima em soar em minha cabeça desde que o Facebook me apresentou como lembrança esta foto de quatro anos atrás, feita pela querida Mariana Martins. Sorrio leve sobre minha moto seminova – a mesma que acabo de “internar” na oficina mecânica para ser consertada e vendida.

A “Laranjinha” sofreu muito menos que eu no acidente de seis meses atrás. “Quem vê a moto não fala do estrago que fez em você, né?”, brincou meu vizinho Júlio apontando pra ela, aparentemente intacta, na garagem de nosso prédio.

Ver a foto de nós duas inteirinhas me trouxe um sentimento incômodo, acompanhado de um desconforto no estômago que demorei a interpretar. Por isso escrevo (minha auto-terapia).

Não me entendam mal. Sou grata desde o primeiro dia de acidentada – por estar viva, por minha família, por meu marido-enfermeiro-secretário-anjo, por meus amigos -, mas este sentimento não anula o outro que me assalta agora: uma saudade doída de mim… a que dirigia a moto, que precisava de uma coisa e ia sozinha comprar, que podia jogar vôlei se alguém chamasse, andar de bicicleta, fazer yoga, cozinhar em pé…

Eu sei… é uma situação passageira, mas, como dizem, a gente só tem o hoje. E HOJE, andando pior do que uma senhorinha de 70 anos, sinto-me tão tão tão tão longe daquela motociclista sorridente de rosa-choque!

E eu sei que, por melhor que me recupere, aquela “eu” nunca mais vai voltar.

Acidente

Lembro de ver o sinal vermelho por milésimos de segundo… a visão embaçada de um carro… Escuro… Dor.

O impacto das costas no asfalto me tira o ar. Tusso muito para puxá-lo e recupero uma respiração sôfrega de engasgada.

Passos. Gritos.

Um gelo imenso cresce na boca do estômago e um gosto de sangue me vêm à boca.

“Água. Preciso de água”, ouço minha voz dizer.

“Alguém busca água pra ela”, um homem grita.

“De jeito nenhum”, proíbe uma voz de mulher. “Está tudo bem”, agora pra mim. “Sou enfermeira. Não se mexa”.

Chega outra – também enfermeira. As duas se ajudam na retirada de meu capacete sem perigo. Improvisam-me algum tecido de travesseiro.

Choro. Odeio-me. “Por que fui deixar o carro na garagem para dar carga na bateria arriada da moto?

Pedem o número de meu marido. Ouço a enfermeira Patrícia ligar. Entendo que ele duvida – despachou-me de carro de Jaú – e mando explicar a “péssima decisão”.

Soluço de medo. Não por mim. Não tenho dores… ainda. Adivinho o desespero de meus pais, do Márcio…

“Meu Deus, o que eu fui fazer?! ”, choramingo alto sem noção de vergonha.

As lágrimas lavam a visão do céu emoldurado de galhos e folhas de árvore. Não me deixam olhar dos lados, mas ouço o burburinho de gente rodeando.

Um policial me pergunta o que ocorreu. Confesso.

Choro. Odeio-me. Tenho medo.

O policial se apieda de minha preocupação com o Márcio na estrada.

“Qual o número de seu marido? Pode deixar que eu acalmo ele”, oferece-se numa voz compassiva, que admiro agradecida.

Colocam meu celular ao ouvido. Minha irmã mais velha questiona, irada, a “péssima escolha”. “Eu sei, eu sei…”, soluço humilhada.

Choro. Tenho medo.

O celular de novo. Virginiana (como eu), a outra irmã pede calma com voz de mãe (que é). Avisa que já escalou quem busque a moto. “Tudo vai ficar bem”, ordena com autoridade que é dela.

Choro.

Não me lembro de quanto me perguntaram ou respondi nos 40 minutos que o socorro demorou pra chegar. Confusa, autorizei me levarem para a UPA.

Enquanto me instalam na maca ouço o cumprimento de Edilson – o cunhado de minha irmã – que chegou para resgatar a moto.

Ao me levantarem do chão, ouço meu próprio urro de dor como se de dentro de um túnel.

Na ambulância, maldigo cada buraco do asfalto.

Já não penso em nada mais além da dor.

Na chegada à UPA a visão querida do cunhado Batista. Compartilho a preocupação com os pais e ele me acalma.

Na sala de acidentados, respondo perguntas idênticas a diferentes pessoas de branco. Suporto injeções e manipulações na sala de raios X.

Uma hora de espera e descubro que vão me transferir de novo, desta vez para o hospital de meu convênio.

Na saída para a nova ambulância, minha irmã Liz me dá a mão. Estendo-lhe meu celular e solto um urro de dor no estender do braço.

Reconheço a anjinha Vivi – secretária na redação onde trabalho – ordenando providências.

No trajeto, novos e numerosos solavancos de buracos no asfalto.

“Que dor, meu Deus!”.

Choro. Odeio a cidade esburacada.

Chego ao Hospital São Francisco. Liz já me espera na Emergência – calma, confiante, mãe.

Novas perguntas respondidas a pessoas de branco. Novas manipulações. As dores nos membros são indescritíveis.

Chegam os anjos Vivi e Elielton, do RH da empresa. Vão-se pelo mesmo lado em que, instantes mais tarde, sorvo a visão de Márcio chegando calmo, carinhoso, acolhedor, envolvendo-me numa nuvem de prazer e alívio.

Choro. Sinto dores. Ele me mima. Mas precisa sair para tomar providências burocráticas.

Começo a sentir dores no estômago vazio – almoçaria no refeitório da empresa. Em seguida, uma ducha invisível de gelo me escaneia dos pés à cabeça e minha visão falha.

“Vou desmaiar”, aviso alto, enquanto sinto meu corpo perder-se numa tremedeira involuntária. Uma náusea violenta sacode meu peito em esgares de vômito. Parece que vomitarei para sempre.

Enfermeiros se arvoram. A médica corre pra mim gritando ordens. Pessoas de branco me cercam. Uma agulha injeta na veia do meu braço esquerdo uma solução qualquer que faz todo o processo parar instantaneamente.

A médica decide minha transferência para a sala de observação, para onde meus parentes não podem me acompanhar.

Ali me aguardam solitárias horas de espera, entrecortadas por dolorosas escalas em salas de raios X e ressonância.

Passo o tempo em rezas, pedindo por meus pais, por Márcio, por mim. Barganho com Deus. Prometo que, saindo dessa sem sequelas permanentes, aguento tudo o que vier.

Tenho o segundo daqueles ataques de vômito e ondas de gelo, novamente interrompido com a tal solução na veia. Desta vez a tremedeira não passa.

“É a dor”, comenta um enfermeiro com o outro, como se eu não estivesse ali.

Márcio consegue autorização para me ver. Finge não se impressionar com a tremedeira e me diz carinhos ao ouvido. Sai.

Quando o ortopedista finalmente chega para me ver já estou há oito horas sofrendo com fome e dores, sem direito a anestesia – compromete a avaliação, explicaram.

Mais manipulações. Dores insuportáveis e a terceira daquela crise de gelo-vômito-tremedeira.

Decide-se por cirurgia naquela noite mesmo e sigo para a preparação.

Na mesa de operações, quase choro de gratidão ao sentir o sedativo avançando por minhas veias para trazer o sono sem sonhos, que rouba a passagem do tempo.

Quando acordo na sala de recuperação, o rosto de Márcio – que desafiou proibições para estar ali – é o primeiro que vejo.

Já não sinto medo.

O dia em que morri

Ontem eu morri.
Durante os poucos segundos em que um carro que saía do portal de um condomínio fechou minha moto, vi um trailer da minha vida sem mim – vi o carro que vinha em alta velocidade à minha esquerda não conseguir frear e me pegar em cheio após eu desviar em cima da hora do que me fechou; meu corpo voando e caindo sobre o asfalto; as fraturas ou – pior, um fatal traumatismo craniano… minha família chorando no hospital… meu marido assustado, perdido… tudo passou pela minha cabeça naqueles poucos segundos.
Mas o carro que vinha à esquerda conseguiu frear a tempo e nasci de novo.
Parei no semáforo 50 metros à frente trêmula, com mãos suando frio e batimentos no ritmo da bateria da Mangueira, bem ao lado do carro que me fechou. Ao volante, uma mulher elegante, de cabelos escovados e maquiagem impecável, aparentando ter mais ou menos a minha idade.
– Você podia ter me matado… disse eu alto, para que ela ouvisse através dos vidros fechados.
Ela riu…
Riu!!!
Não foi para mim, mas de mim e não era um riso simpático de desculpas, mas um desdenhoso, daqueles que dizem: “não estou nem aí pra você, que não é nada pra mim, segura e linda que estou dentro de meu semi-novo branco com ar-condicionado e vidros com insulfilm.”
Pensei: que tipo de pessoa ri de alguém que quase matou?
Que tipo de pessoa para ao portão de seu condomínio, olha para o trânsito e decide sair, va-ga-ro-sa-men-te, ciente de que está fechando uma moto que vem em sua direção? – “a moto que desvie, fechando o carro que vêm à sua esquerda”… “o mundo que mude para que eu siga meu caminho sem ser incomodada!”.
A bela no veículo branco seguiu seu caminho deixando em mim um sentimento de ser nada.