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Matemática do amor

Esta semana meu pai passou por mais uma cirurgia. Meu pai está com setenta e cinco anos. Eu estou com quarenta e cinco. O pai do meu pai tinha sessenta e nove anos quando morreu. Meu pai já viveu seis anos a mais que o pai dele. Meu pai tinha quarenta e quatro anos quando o pai dele morreu. Meu pai tinha um ano a menos que eu quando o pai dele morreu. Eu achava que meu avô já era velho quando morreu. E que meu pai já tinha vivido o suficiente com ele. Eu achava que meu pai era adulto e sabia lidar com a morte do pai. Meu pai é muito novo para morrer. E eu sou uma criança, apesar de um ano mais velha que meu pai quando meu avô morreu, que não acredito que pai e mãe morrem. Meu pai está bem e não vai morrer. Não agora. Mas basta estar vivo para morrer, eu sei, ainda mais em 2020 e 2021. O José Luís Peixoto escreveu um livro lindo depois que o pai dele morreu. “Morreste-me”. Os portugueses sabem dar os melhores títulos para os livros. Conhece os do Lobo Antunes? “Que farei quando tudo arde?”, “Não é meia noite quem quer”, “Os cus de Judas”, “Explicação dos pássaros”. Eu nunca consigo achar um título bom para o que escrevo. Eu queria saber escrever um livro como o José Luís Peixoto escreve. Um “morreste-me” depois que meu pai morrer, o que vai demorar. Mas o livro já foi escrito e eu não sou o José Luís Peixoto. Lobo Antunes não é desse mundo, deixa pra lá. Eu queria só conseguir terminar essa pequena crônica, no quarto de onde escrevo e posso, pela janela, ver o hospital onde meu pai está, na companhia da minha mãe, como é há cinquenta e cinco anos, sem nenhuma visita porque mais de duzentas mil pessoas já morreram, mais novos ou mais velhos que eu e meu pai. Mas há dias não consigo terminar nada que começo e estou me perguntando “que farei quando tudo arde?”. Abrir o livro do Lobo, por exemplo, pode ser uma resposta. Ser sincera e escrever aqui que não consigo achar um fim para esse texto pode ser outra. Um vento entra pela janela, as folhas de uma das árvores mais bonitas que conheço balançam. Eu fecho os olhos e puxo o ar bem fundo. Será que minha mãe e meu pai também conseguem ver o vento?

O nascimento de um pai

ALEX MENDES *

Ela chegou durante o frio de uma das cidades mais quentes do Estado de São Paulo.

Na escura madrugada de um dia de semana, minha mulher deu à luz.

Eu, que nunca na vida havia podido ver sangue sem sentir tontura, tremi. Tremi ao ver minha reação contrária.

Com a câmera fotográfica na mão enchi minhas veias de coragem e controlei o ímpeto de sair correndo da sala de cirurgia.

E olha que tudo me levava a isso. O histórico com as agulhas, o cheiro de hospital e, principalmente, o que eu via.

Ali na minha frente, a mulher que eu tinha jurado proteger no altar estava amarrada, com os braços esticados, nua e com uma pessoa prestes a abrir-lhe a barriga com um objeto cortante.

Mas eu estava decidido. Eu estava preocupado em buscar o melhor ângulo.

Eu.

Ali foram os últimos momentos da existência do “eu” que eu conhecia desde que me entendi por gente.

Não foi o barulho dos instrumentos, aquele tec tec com precisão cirúrgica para deixar qualquer um ligado à área de humanas desesperado que me atordoou. Foi outro som. O de um choro engasgado. Era aquele negócio pequenininho, sujo de líquidos e gosmas que eu nem sabia direito o que eram, que eu deveria amar?

Talvez a preocupação com o foco da máquina tenha tirado o meu próprio. Eu não pensava racional ou emocionalmente. Era um robô. Tinha de fotografar e fazer exatamente como eu vira antes nas novelas e nos filmes.

Confesso, mesmo ali, vendo minha herdeira com olhos fechados e boca arreganhada tão perto, ainda não sentia o que a minha esposa carregara durante nove meses. O bebê, até aquele momento, era dela. A mãe. Que alimentava, que dava segurança, que garantia vida a cada vez que respirava.

Já eu, fotografava. Achando que aquilo era o máximo. Que “eu” era o máximo. Um marido que agora tinha uma filha.

‘Eu”. Algo que em poucos minutos iria viver só no passado.

Depois de receber os cumprimentos de dois corajosos parentes que enfrentaram uma noite sem sono, fui para o berçário. Mais preocupado em evitar o sumiço da criança que qualquer outra coisa.

Paula nasceu de oito meses. Foi uma luta diária entre diagnósticos receosos e esperanças religiosas. Graças a Deus, a segunda venceu. Vitória que estava agora à minha frente. Um cisquinho de gente encolhido numa estufa. Um frágil ser com um poder enorme. Algo que eu descobri num abrir de olhos.

Eu – ainda era eu – sentei-me numa cadeira do lado de fora do berçário. Paula na estufa, com dois vidros nos separando. Meu olhar fixo conferia tudo com atenção. Se ela respirava, se parecia comigo, se abriria os olhos.

A última resposta foi avassaladora. Ela parecia ter lido meu pensamento. E ao levantar as pequenas pálpebras, abriu duas bolas negras.

E um coração.

O olhar me atingiu como um raio. Desses de filme de ficção. Transformou-me na hora. Daquele momento em diante tinha sido promovido de duas para três letras.

O “EU” virou “PAI”.

Demoraria vários meses até ouvir a palavra da boquinha dela. Mas aquele primeiro olhar, naquela madrugada fria, me chamou de pai com toda a força do mundo.

Um grito silencioso com o tom de um amor até então desconhecido. Inimaginável pra mim. Um sentimento incondicional, incansável, indissolúvel. Egoísta e ao mesmo tempo coletivo.

Sei que cada um de vocês, leitores, tem uma Paula pra olhar nos olhos. Pra dizer com palavras, gestos, responsabilidades ou simplesmente com um abraço: Sim, sou seu pai.

Temos datas de aniversários diferentes, mas posso afirmar que nasci no mesmo dia que você.

Um pai. E uma filha.

Que possamos crescer juntos por muito tempo aproveitando cada fase.

A pequenina que dormia no meu antebraço.

A gigante que andava sobre minha barriga.

A loirinha que cruzava os braços e fazia biquinho quando queria algo que não podia.

A princesa que segurava a minha mão no cinema.

A adolescente que até hoje faz questão de beijar meu rosto num boa noite impossível de ser contaminado pela rotina.

Paula e Alex. Um pai e uma filha.

Olho no olho. Coração com coração.

Amor.

E nada mais que se compare a isso.

 

* Alex Mendes é jornalista, cinéfilo, escritor talentoso, amigo querido e pai amoroso da Paula


 

 

 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

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