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‘A’ de avós da Luciana

Do meu avô materno, infância e juventude na roça e vida adulta no chão de fábricas, não me lembro nem mesmo da letra. Da minha avó materna, empregada doméstica e costureira, me lembro da letra escrita com esforço em cartões de feliz aniversário e feliz natal, textos copiados da minha mãe. Nada muito além de “querida”, “Luciana”, “neta”, “desejos”, “feliz”, “vó”. Da minha avó paterna me lembro da caderneta de telefone. A letra M, de mãe, a mais cheia: “mai du Iduardo”, “mai da Ligia”, “mai da Zaide” e por aí ia. O espaço para a letra V também era disputado: “visinha du Zezinho”, “visinha da Silvia”, “visinha da Angelina”. “Ô, vó, essas mães e essas vizinhas não têm nomes, não?”. A gente ria – eu ainda não sabia que as oportunidades não são as mesmas para todos. Minha avó, sabiamente, dava de ombros. A avó que veio criança do reino da Iugoslávia, que teve os documentos falsificados pelo pai para ficar mais velha do que seus dez ou onze anos e poder trabalhar nas tecelagens da Mooca e que justificava os erros de ortografia na caderneta com a frase que ficou famosa na família: é que eu estudei na Europa. A gente ria. “Ué, tanta gente acha chique falar que estudou na Europa, eu também estudei, e daí?”. E chegou a nos mostrar uma foto da Vela Luka, um prédio mais largo que alto de frente para o mar, para o qual ela apontava: essa aqui foi a minha escola. Por um ou dois anos apenas, mas foi a escola dela. Foi toda a escola que ela frequentou a vida toda. O meu avô paterno, o único que estudou além do que seria um primário. O menino que morou na rua por tantos anos, fugido de casa, quem diria, voltou como mecânico de aviação. Mas só me lembro da letra dele em palavras cruzadas. Nenhuma letra ao lado da outra até formar uma palavra. Nenhuma palavra ao lado da outra para formar uma frase. Nenhum cartão.

Esta semana tenho sentido mais falta dos meus avós. De todos eles. O abraço forte do avô materno, que quase nos deslocava os ossos. O beijinho leve da avó materna e os telefonemas sempre depois das 20h porque era mais barato. A não ser que chovesse forte, aí ela ligava como quem não quer nada. O humor e o riso solto da avó paterna, que me explicou, quando perguntada por mim, porque não chorava: “quem já viu guerra, minha filha, não chora mais”. E a transgressão do avô paterno, dos doces antes do almoço aos xingamentos que fazia a Deus (para desespero da minha avó, católica praticante). Amei todos. Amo ainda. Muito. Mas esse avô paterno foi a grande paixão da minha vida. O único que sabia ler e escrever e que não me deixou nenhum bilhete, nenhuma cartinha. Ele me deixou muito mais, deixou tanto que posso preencher um livro com a minha própria letra, mas nessa semana eu me peguei querendo a letra dele num pedacinho de papel. Algo que eu pudesse ler e me fazer suspirar e acreditar.

Nunca falei sobre literatura com os meus avós, mas foram também as tantas histórias que me contaram e que em mim ficaram gravadas que ajudaram a formar o campo fértil para o crescimento desse amor. Há um universo paralelo onde meus avós podem ler esse meu agradecimento? Se tiver, saibam também que estou com saudades. Imensas.

Questões do luto

Há várias definições para luto no dicionário. Nenhuma descreve ou prepara para os sentimentos pós morte-velório-sepultamento.

Após testemunhar três perdas consecutivas de meu parceiro de vida – seu pai de câncer, em 2016; o irmão, de septicemia decorrente de diabetes, em 2017; e a mãe, também de sepse pós-cirurgia, no apagar das luzes de 2018 – sei alguma coisa sobre isso.

Quando a vida deve retomar seu curso é que a maior tristeza instala-se com todo o seu peso sobre o enlutado. É preciso remexer os pertences, percorrer os lugares e afetos repletos da “presença” de quem se foi. As lembranças e histórias que cada objeto, local ou pessoa evocam… até então ternas, felizes, acolhedoras… tornam-se opressoras. Parecem gritar a nova ausência.

As três perdas de Márcio foram doloridas, mas a do pai foi amortecida pelo luto solidário do irmão e a consciência de que era preciso cuidar da mãe. Logo em seguida, meu acidente de moto meio que o distraiu das tristezas (com ambas as pernas fraturadas, fiquei meses dependente dele para tudo).

A perda do irmão foi, de longe, a mais difícil. Repentina, implacável, trazendo no bojo muita culpa por não termos notado o quão necessitado de atenção estava o Nando. Mas a força espiritual de dona Jovelina, a mãe, também amorteceu as tristezas. E a evidência de que, mais do que nunca, ela demandaria companhia e atenção constantes distraiu-lhe, mais uma vez, das grandes dores. Ele deixava para chorar comigo, não só para poupar a mãe, mas para não envergonhar-se ante sua grande força.

Agora dona Jovelina também se foi. Os primos, tios e amigos acolhem-no com carinho e afeto incondicionais, mas sempre chega a hora de retomar o tal “curso da vida” para todo mundo – aliás, como deve ser.

É quando o enlutado sente-se separado do resto do mundo por uma divisória invisível. Já escrevi sobre isso: por mais que os afetos vivos entendam e já tenham passado pelo mesmo, é solitária a dor do luto em cada um.

Daí que, mesmo juntos, vivemos, eu e Márcio, lutos diferentes. O meu é temperado de impotência e compaixão. O dele pesado de saudades irremediáveis. Não há palavra que minore, abraço que atenue, afeto que substitua a dor de ausências inexoráveis.

Na casa de dona Jô, cada parede reclama sua “presença/ausência”. É dolorido encarar a grande interrogação que cada objeto e cômodo parece nos esfregar na cara. Para mim é difícil manusear os utensílios domésticos impecavelmente limpos e ariados, que ela não deixava ninguém mais orquestrar (para sua noção muito particular de hospitalidade, era impensável deixar uma visita ter qualquer trabalho em sua casa, mesmo tratando-se da companheira de 21 anos do filho).

Pergunto-me como ela aguentava o calor de fornalha da cozinha mal arejada. Aliás, faltam correntes de ar por toda a grande e velha casa, o que parece intensificar a sensação de sufocamento que vai no íntimo de Márcio.

De sua tristeza emergem, agora, muitas e novas perguntas: Por que a partida dos três tão perto? O que explica este plano de Deus? Estariam todos juntos? Estão todos bem?

Atrás de alguma resposta ou consolo, fomos assistir a palestra em um Centro Espírita. Foi melhor para mim do que para ele, pois as questões de seu luto permanecem. Também fazem parte desta fase pós-morte-velório-sepultamento.

Opino que o melhor remédio é “sair para o mundo”, esforçarmo-nos para retomarmos também o curso de nossas vidas, atualmente em um limbo cinza por conta do desemprego de ambos (mais esta!). Ele aquiesce.

Hoje arrumou-se, penteou o escasso cabelo recém-cortado e perfumou-se. Vestiu o sorriso de sempre – para todos os efeitos e aparências, é um exemplo de resignação – e saiu tratar de providências práticas: certidões, inventário, possibilidade de renda…

Amanhã começamos a remexer guarda-roupas e armários.

Que Deus nos ajude!

Estamos todos bem

Querido Nando,

Hoje faz um ano que você partiu.

O dia não está diferente. O céu não está nublado. Faz só um friozinho bom à sombra, que valoriza o beijo do sol em nossas peles nos pedaços desabrigados das calçadas.

Estamos todos bem.

Márcio tem cuidado com extremo carinho e atenção da mãe de vocês. A idade tem cobrado dela algumas faturas, mas nada com que ela não saiba lidar com a força e – invejo ao dizer – o humor jovial de sempre.

Ela nos dá lições de resiliência todos os dias.

Confesso que não sou das melhores alunas. Márcio sim.

Ele sente muito sua falta. Manda dizer que você está sempre em seus pensamentos e que encontrou seu pai outro dia, em um sonho. Seo Dema estava bem. Descontraído, sorriu um riso velhaco de quem é pego numa traquinagem e depois se foi, tranquilo.

Sua mãe sonhou outro dia com pessoas de branco entrando em sua casa e sentando-se ao sofá da sala, indiferentes aos questionamentos que ela fazia a um e outro. Tenho para mim que são os anjos que sempre a rodearam e agora sentiram ser hora de dar testemunhos de suas presenças.

É que ela precisou ser internada outro dia, por conta de uma infecção urinária e um quadro de desidratação e anemia – tem comido como um passarinho e, como é praxe em sua idade, já não sente tanta sede.

Você pode imaginar o susto que o Márcio deve ter levado ao deparar-se com o diagnóstico da infecção que desencadeou todo o processo da sua partida.

Mas ele herdou de sua mãe a fé (a calma apaziguadora é dele mesmo!). Assumiu que o susto só ocorreu para que os médicos pedissem os exames que acabaram constatando o problema maior, que, silencioso, poderia sequestrá-la de nós sem aviso: um aneurisma da aorta que requer procedimento urgente.

Márcio já providenciou tudo: exames, consultas, dieta reforçada, solicitações ao convênio…

Você se orgulharia de ver como ele tem lidado com tudo sem revolta – só uma tristezinha aqui e ali, como lembrança das saudades de vocês.

Você e seu pai estão sempre em nossas orações, ao lado de minha família. Por falar nela, minha mãezinha tem convivido com dores diárias de sua artrose, também com a resignação exemplar de sempre. Papí segue com qualidade de vida melhor, embora desconfortável com a bolsa de ileostomia que tornou-se sua companheira.

Já eu vou como Deus quer e minhas ansiedades permitem. Também sigo toureando saudades de vivos e desencarnados, ligando meu barco de viver diariamente na carga extra, enquanto ele não aprende a velejar sozinho, com vento próprio.

Espero em Deus que você esteja mesmo bem, Nando. Márcio tem certeza de que está. Diz que lembra de você sempre com muita gratidão. Por tudo – por ajudá-lo, apoiá-lo, lhe dar rumo na vida, por ter sido seu segundo pai… – e que tenta, todos os dias, ser o ser humano “do bem” que você sempre foi. Sou prova de que tem conseguido.

Obrigada por tudo. Fique com Deus e todo nosso amor!

Até mais…

 

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“Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; (…) mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

Este trecho de “Dom Casmurro” teima em soar em minha cabeça desde que o Facebook me apresentou como lembrança esta foto de quatro anos atrás, feita pela querida Mariana Martins. Sorrio leve sobre minha moto seminova – a mesma que acabo de “internar” na oficina mecânica para ser consertada e vendida.

A “Laranjinha” sofreu muito menos que eu no acidente de seis meses atrás. “Quem vê a moto não fala do estrago que fez em você, né?”, brincou meu vizinho Júlio apontando pra ela, aparentemente intacta, na garagem de nosso prédio.

Ver a foto de nós duas inteirinhas me trouxe um sentimento incômodo, acompanhado de um desconforto no estômago que demorei a interpretar. Por isso escrevo (minha auto-terapia).

Não me entendam mal. Sou grata desde o primeiro dia de acidentada – por estar viva, por minha família, por meu marido-enfermeiro-secretário-anjo, por meus amigos -, mas este sentimento não anula o outro que me assalta agora: uma saudade doída de mim… a que dirigia a moto, que precisava de uma coisa e ia sozinha comprar, que podia jogar vôlei se alguém chamasse, andar de bicicleta, fazer yoga, cozinhar em pé…

Eu sei… é uma situação passageira, mas, como dizem, a gente só tem o hoje. E HOJE, andando pior do que uma senhorinha de 70 anos, sinto-me tão tão tão tão longe daquela motociclista sorridente de rosa-choque!

E eu sei que, por melhor que me recupere, aquela “eu” nunca mais vai voltar.